20. A providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Ele está em toda parte, tudo vê, a tudo preside, mesmo às coisas mais mínimas. É nisto que consiste a ação providencial. “Como pode Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, imiscuir-se em pormenores ínfimos, preocupar-se com os menores atos e os menores pensamentos de cada indivíduo?” Esta a interrogação que a si mesmo dirige o incrédulo, concluindo por dizer que, admitida a existência de Deus, só se pode admitir, quanto à sua ação, que ela se exerça sobre as leis gerais do universo; que este funcione de toda a eternidade em virtude dessas leis, às quais toda criatura se acha submetida na esfera de suas atividades, sem que haja mister a intervenção incessante da Providência.
21. No estado de inferioridade em que ainda
se encontram, só muito dificilmente podem os homens compreender que Deus seja
infinito. Vendo-se limitados e circunscritos, eles o imaginam também
circunscrito e limitado. Imaginando-o circunscrito, figuram-no quais eles são,
à imagem e semelhança deles. Os quadros em que o vemos com traços humanos não
contribuem pouco para entreter esse erro no espírito das massas, que nele
adoram mais a forma que o pensamento. Para a maioria, é ele um soberano poderoso,
sentado num trono inacessível e perdido na imensidade dos céus. Tendo restritas
suas faculdades e percepções, não compreendem que Deus possa e se digne de
intervir diretamente nas pequeninas coisas.
22. Impotente para compreender a essência mesma da Divindade, o homem não pode fazer dela mais do que uma ideia aproximativa, mediante comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que, ao menos, servem para lhe mostrar a possibilidade daquilo que, à primeira vista, lhe parece impossível. Suponhamos um fluido bastante sutil para penetrar todos os corpos. Sendo ininteligente, esse fluido atua mecanicamente, por meio tão só das forças materiais. Se, porém, o supusermos dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele já não atuará às cegas, mas com discernimento, com vontade e liberdade: verá, ouvirá e sentirá.
23. As propriedades do fluido perispirítico
dão-nos disso uma ideia. Ele não é de si mesmo inteligente, pois que é matéria,
mas serve de veículo ao pensamento, às sensações e percepções do Espírito. Esse
fluido não é o pensamento do Espírito; é, porém, o agente e o intermediário
desse pensamento. Sendo quem o transmite, fica, de certo modo, impregnado do
pensamento transmitido. Na impossibilidade em que nos achamos de o isolar, a nós
nos parece que ele, o pensamento, faz coro com o fluido, que com este se
confunde, como sucede com o som e o ar, de maneira que podemos, a bem dizer,
materializá-lo. Assim como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos,
tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.
24. Seja ou não assim no que concerne ao
pensamento de Deus, isto é, quer o pensamento de Deus atue diretamente, quer
por intermédio de um fluido, para facilitarmos a compreensão à nossa
inteligência, figuremo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente que
enche o universo infinito e penetra todas as partes da criação: a natureza
inteira mergulhada no fluido divino. Ora, em virtude do princípio de que as
partes de um todo são da mesma natureza e têm as mesmas propriedades que ele,
cada átomo desse fluido, se assim nos podemos exprimir, possuindo o pensamento,
isto é, os atributos essenciais da Divindade e estando o mesmo fluido em toda
parte, tudo está submetido à sua ação inteligente, à sua previdência, à sua solicitude.
Nenhum ser haverá, por mais ínfimo que o suponhamos, que não esteja saturado
dele. Achamo-nos então, constantemente, em presença da Divindade; nenhuma das
nossas ações lhe podemos subtrair ao olhar; o nosso pensamento está em contato
ininterrupto com o seu pensamento, havendo, pois, razão para dizer-se que Deus
vê os mais profundos refolhos do nosso coração. Estamos nele, como ele está em
nós, segundo a palavra do Cristo. Para estender a sua solicitude a todas as
criaturas, não precisa Deus lançar o olhar do alto da imensidade. As nossas
preces, para que ele as ouça, não precisam transpor o espaço, nem ser ditas com
voz retumbante, pois que, estando de contínuo ao nosso lado, os nossos
pensamentos repercutem nele. Os nossos pensamentos são como os sons de um sino,
que fazem vibrar todas as moléculas do ar ambiente.
25. Longe de nós a ideia de materializar a
Divindade. A imagem de um fluido inteligente universal evidentemente não passa
de uma comparação apropriada a dar de Deus uma ideia mais exata do que os
quadros que o apresentam debaixo de uma figura humana. Destina-se ela a fazer
compreensível a possibilidade que tem Deus de estar em toda parte e de se
ocupar com todas as coisas.
26. Temos constantemente sob as vistas um
exemplo que nos permite fazer ideia do modo por que talvez se exerça a ação de
Deus sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, conseguintemente, do
modo por que lhe chegam as mais sutis impressões de nossa alma. Esse exemplo
tiramo-lo de certa instrução que a tal respeito deu um Espírito.
27. “O homem é um pequeno mundo, que tem como
diretor o Espírito e como dirigido o corpo. Nesse universo, o corpo
representará uma criação cujo Deus seria o Espírito. (Compreendei bem que aqui
há uma simples questão de analogia e não de identidade.) Os membros desse
corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os músculos, os nervos, as
articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim se pode
dizer, localizadas em pontos especiais do referido corpo. Se bem seja
considerável o número de suas partes constitutivas, de natureza tão variada e
diferente, a ninguém é lícito supor que se possam produzir movimentos, ou uma
impressão em qualquer lugar, sem que o Espírito tenha consciência do que
ocorra. Há sensações diversas em muitos lugares simultaneamente? O Espírito as
sente todas, distingue, analisa, assina a cada uma a causa determinante e o
ponto em que se produziu, tudo por meio do fluido perispirítico. Análogo
fenômeno ocorre entre Deus e a criação. Deus está em toda parte, na natureza,
como o Espírito está em toda parte, no corpo. Todos os elementos da criação se
acham em relação constante com ele, como todas as células do corpo humano se
acham em contato imediato com o ser espiritual. Não há, pois, razão para que
fenômenos da mesma ordem não se produzam de maneira idêntica, num e noutro
caso. Um membro se agita: o Espírito o sente; uma criatura pensa: Deus o sabe.
Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos estão a vibrar; o
Espírito ressente todas as manifestações, as distingue e localiza. As
diferentes criações, as diferentes criaturas se agitam, pensam, agem
diversamente: Deus sabe o que se passa e assina a cada um o que lhe diz
respeito. Daí se pode igualmente deduzir a solidariedade da matéria e da
inteligência, a solidariedade entre si de todos os seres de um mundo, a de
todos os mundos e, por fim, de todas as criações com o Criador.” (Quinemant,
Sociedade de Paris, 1867.)
28. Compreendemos o efeito: já é muito. Do
efeito remontamos à causa e julgamos da sua grandeza pela do efeito.
Escapa-nos, porém, a sua essência íntima, como a da causa de uma imensidade de
fenômenos. Conhecemos os efeitos da eletricidade, do calor, da luz, da
gravitação; calculamo-los e, entretanto, ignoramos a natureza íntima do
princípio que os produz. Será então racional neguemos o princípio divino,
porque não o compreendemos?
29. Nada obsta a que se admita, para o
princípio da soberana inteligência, um centro de ação, um foco principal a
irradiar incessantemente, inundando o universo com seus eflúvios, como o Sol
com a sua luz. Mas onde esse foco? É o que ninguém pode dizer. Provavelmente,
não se acha fixado em determinado ponto, como não o está a sua ação, sendo
também provável que percorra constantemente as regiões do espaço sem fim. Se
simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, em Deus há de ser sem limites essa
faculdade. Enchendo Deus o universo, poder-se-ia ainda admitir, a título de
hipótese, que esse foco não precisa transportar-se, por se formar em todas as
partes onde a soberana vontade julga conveniente que ele se produza, donde o
poder dizer-se que está em toda parte e em parte nenhuma.
30. Diante desses problemas insondáveis,
cumpre que a nossa razão se humilhe. Deus existe: disso não poderemos duvidar.
É infinitamente justo e bom: essa a sua essência. A tudo se estende a sua
solicitude: compreendemo-lo. Só o nosso bem, portanto, pode ele querer, donde
se segue que devemos confiar nele: é o essencial. Quanto ao mais, esperemos que
nos tenhamos tornado dignos de o compreender.
Allan Kardec, A gênese, cap. II
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