13. — CAPÍTULO II. — 9. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara. — O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie de árvores belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e, no meio do paraíso (*), a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (min haadama) toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e a árvore da vida (vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem e do mal.) 15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo: De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E da árvore do bem e do mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás, pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
(*) “Paraíso”, do latim paradisus, derivado do grego: paradeisos, jardim, vergel, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado na Gênese é hagan, que tem a mesma significação.
14. —
CAPÍTULO III. — 1. Ora, a serpente era o mais fino de todos os animais que o
Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: Por que vos ordenou Deus
que não comêsseis os frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente (nâhâsch) era mais astuta do que todos os
animais terrestres que Jeová Eloim havia feito; ela disse à mulher (el haïscha): Terá dito Eloim: Não
comereis de nenhuma árvore do jardim?) — 2. A mulher respondeu: Comemos dos
frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à
serpente, do fruto (miperi) das árvores do jardim podemos comer.) — 3. Mas,
quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não
comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o perigo de
morrer. — 4. A serpente replicou à mulher: Certamente não morrereis. — 5. Mas,
é que Deus sabe que, assim houverdes comido desse fruto, vossos olhos se
abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. — 6. A mulher
considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era belo e
agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que também
comeu. (Ela viu, a mulher, que ela era boa, a árvore como o alimento, e que era
desejável a árvore para compreender (léaskil),
e tomou de seu fruto, etc.) — 8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que
passeava à tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram
para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de diante da sua
face. — 9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde estás? — 10. Adão
lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, essa a
razão por que me escondi. — 11. O Senhor lhe retrucou: E como soubeste que
estavas nu, senão porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que
comêsseis? — 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste por companheira me
apresentou o fruto dessa árvore e eu dele comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher:
Por que fizeste isso? Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse
fruto. — 14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito isso, serás
maldita entre todos os animais e todas as bestas da terra; rojar-te-ás sobre o
ventre e comerás a terra por todos os dias de tua vida. — 15. Porei uma
inimizade entre ti e a mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a
cabeça e tu tentarás morder-lhe o calcanhar. — 16. Deus disse também à mulher:
Afligir-te-ei com muitos males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás
sob a dominação de teu marido e ele te dominará. — 17. Disse em seguida a Adão:
Por haveres escutado a voz de tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de
que te proibi que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e
só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante toda a tua
vida. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te alimentarás com a erva da
terra. — 19. E comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à
terra donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás. — 20. E Adão deu à
sua mulher o nome de Eva, que significa a vida, porque ela era a mãe de todos
os viventes. 21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestiduras de
peles com que os cobriu. — 22. E disse: Eis aí Adão feito um de nós, sabendo o
bem e o mal. Impeçamos, pois, agora, que ele deite a mão à árvore da vida, que
também tome do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente. (Ele
disse, Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do
bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida (veata pen ischlachyado velakach mehetz
hachayim); comerá dela e viverá eternamente.) — 23. O Senhor Deus o fez
sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no cultivo da terra
donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins (*) diante
do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem
o caminho que levava à árvore da vida.
(*)
Do hebreu cherub, keroub, boi, charab,
lavrar; anjos do segundo coro da primeira hierarquia, que eram representados
com quatro asas, quatro faces e pés de boi.
15. Sob
uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria
oculta frequentemente as maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à
primeira vista, do que a de Saturno, o deus que devorava pedras, tomando-as por
seus filhos? Todavia, que de mais profundamente filosófico e verdadeiro do que
essa figura, se lhe procuramos o sentido moral! Saturno é a personificação do
tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe;
mas, também, tudo se destrói com o tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo
da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto que se
formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria, escapa a semelhante
destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio
espiritual, que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem, que, na
linguagem moderna, sem alusão à Fábula antiga, se diz, de uma coisa que afinal
se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda
a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do que um vasto quadro
alegórico das diversas faces, boas e más, da humanidade. Para quem lhe busca o
espírito, é um curso completo da mais alta filosofia, como acontece com as
modernas fábulas. O absurdo estava em tomarem a forma pelo fundo.
16.
Outro tanto se dá com a Gênese, onde se tem que perceber grandes verdades
morais debaixo das figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão
absurdas como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e
os diálogos atribuídos aos animais.
Adão
personifica a humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem
predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir. (*)
A
árvore, como árvore de vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da
ciência, é o da consciência, que o homem adquire, do bem e do mal, pelo
desenvolvimento da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele
escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de
ser guiada unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na
responsabilidade dos seus atos.
O
fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria
da cobiça e da concupiscência; concretiza, numa figura única, os motivos de
arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue no meio
do jardim de delícias, para mostrar que a sedução está no seio mesmo dos
prazeres e para lembrar que, se dá preponderância aos gozos materiais, o homem
se prende à Terra e se afasta do seu destino espiritual.(**)
A
morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe faz, é um aviso
das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das
leis divinas que Deus lhe gravou na consciência. É por demais evidente que aqui
não se trata da morte corporal, pois que, depois de cometida a falta, Adão
ainda viveu longo tempo, mas, sim, da morte espiritual, ou, por outras
palavras, da perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada
pela sua expulsão do jardim de delícias.
(*)
Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam não é um nome próprio, mas significa: o homem em
geral, a humanidade, o que destrói toda a estrutura levantada sobre a
personalidade de Adão.
(**)
Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se encontra nas
versões infantis. O termo do texto hebreu é peri,
que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação de espécie e pode
ser tomado em sentido material, moral, alegórico, em sentido próprio e
figurado. Para os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma
palavra tem muitas acepções, cada um a entende como quer, contanto que a
interpretação não seja contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por malum,
que se aplica tanto à maçã, como a qualquer espécie de frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo melo, interessar,
cuidar, atrair.
17. A
serpente está longe hoje de ser tida como tipo da astúcia. Ela, pois, entra
aqui mais pela sua forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos
maus conselhos, que se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, o
homem, muitas vezes, não desconfia. Ao demais, se a serpente, por haver
enganado a mulher, é que foi condenada a andar de rojo sobre o ventre,
dever-se-á deduzir que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, não era
serpente. Por que, então, se há de impor à fé ingênua e crédula das crianças,
como verdades, tão evidentes alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo,
se faz que mais tarde venham a considerar a Bíblia um tecido de fábulas
absurdas?
Deve-se,
além disso, notar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da
raiz nâhâsch, que significa: fazer
encantamentos, adivinhar as coisas ocultas, podendo, pois, significar:
encantador, adivinho. Com esta acepção, ele é encontrado na própria Gênese,
44:5 e 15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco de Benjamim: “A
taça que roubaste é a em que meu Senhor bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch) (*). — Ignoras que não há quem
me iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não
há encantamentos (nâhâsch) em Jacob, nem adivinhos em Israel.” Daí o haver a
palavra nâhâsch tomado também a significação de serpente, réptil que os
encantadores tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus
encantamentos.
A
palavra nâhâsch só foi traduzida por
serpente na versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam o
texto hebreu em muitos lugares — versão essa escrita em grego no segundo século
da era cristã. As suas inexatidões resultaram, sem dúvida, das modificações que
a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto o hebreu do
tempo de Moisés era uma língua morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto
quanto o grego antigo e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos.
(**)
É,
pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher o desejo de
conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que
concorda com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro
lado, com estas palavras: “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse
fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que
era cobiçável a árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.” Não se
deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a arte da
adivinhação praticada pelos egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles
interrogassem os mortos e o Espírito Piton. ( O Céu e o Inferno segundo o
Espiritismo , cap. XII.)
(*)
Deste fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade pelo copo
d’água? (Revue spirite, de junho do
1868, pág. 161.)
(**)
O termo nâhâsch existia na língua
egípcia, com a significação de negro, provavelmente porque os negros tinham o
dom dos encantamentos e da adivinhação. Talvez também por isso é que as
esfinges, de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.
18. A
passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta
vento brando”, é uma imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou
de assinalar; mas, nada tem que surpreenda, se nos reportamos à ideia que os
hebreus dos tempos primitivos faziam de Deus. Para aquelas inteligências
frustas, incapazes de conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta
e eles tudo referiam à humanidade, como único ponto que conheciam. Moisés, por
isso, lhes falava como a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de
que se trata, tem-se personificada a Potência soberana, como os pagãos
personificavam, em figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias
abstratas. Mais tarde, os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo modo que
a criança, tornada adulta, procura o sentido moral dos contos com que a
acalentaram. Deve-se, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria,
figurando a Divindade a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande
rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno Deus, percorrendo
o jardim, do lado donde vem o dia.”
19. Se
a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido um fruto, ela não poderia,
incontestavelmente, pela sua natureza quase pueril, justificar o rigor com que
foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o fato seja
qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos Deus, considerando-o
irremissível crime, a condenar a sua própria obra, pois que ele criara o homem
para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no
fruto da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria
a humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus
não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas
próprias palavras que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles
ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e
multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.” (Gênese,1:28.)
Uma vez que a multiplicação era lei já no paraíso terrenal, a expulsão deles
dali não pode ter tido como causa o fato suposto.
O
que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva
manifestaram ante o olhar de Deus e que os levou a se ocultarem. Mas, essa
própria vergonha é uma figura por comparação: simboliza a confusão que todo
culpado experimenta em presença de quem foi por ele ofendido.
20.
Qual, então, em definitiva, a falta tão grande que mereceu acarretar a
reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o
fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir
logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram dentro de um círculo
vicioso.
Sabemos
hoje que essa falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que
compreende, sob um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a
humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem
nisto: infração da lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro homem,
simbolizando este a humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
21.
Dizendo a Adão que ele tiraria da terra a alimentação com o suor de seu rosto,
Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas, por que fez do trabalho uma
punição? Que seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse pelo
trabalho? Que seria da Terra, se não fosse fecundada, transformada, saneada
pelo trabalho inteligente do homem?
Lá
está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda não havia feito chover sobre
a Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O Senhor formou então, do
limo da terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas destas outras: Enchei a
Terra, provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda a
Terra e a cultivá-la, assim como, ao demais, que o paraíso não era um lugar
circunscrito, a um canto do globo. Se a cultura da terra houvesse de ser uma
consequência da falta de Adão, seguir-se-ia que, se Adão não tivesse pecado, a Terra
permaneceria inculta e os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por
que disse ele à mulher que, em consequência de haver cometido a falta, pariria
com dor? Como pode a dor do parto ser um castigo, quando é um efeito do
organismo e quando está provado, fisiologicamente, que é uma necessidade? Como
pode ser punição uma coisa que se produz segundo as leis da natureza? É o que
os teólogos absolutamente ainda não explicaram e que não poderão explicar,
enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram. Entretanto,
podem justificar-se aquelas palavras que parecem tão contraditórias.
22.
Notemos, antes de tudo, que se, no momento de serem criados os dois, as almas
de Adão e Eva tivessem vindo do nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser
bisonhos em todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer. Estando
sós na Terra, como estavam, enquanto viveram no paraíso, não tinham assistido à
morte de ninguém. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a
ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como teria Eva podido compreender que
parir com dor seria uma punição, visto que, tendo acabado de nascer para a
vida, ela jamais tivera filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum
sentido, portanto, deviam ter, para Adão e Eva, as palavras de Deus. Mal
surgidos do nada, eles não podiam saber como nem por que haviam surgido dali;
não podiam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição que lhes era
feita. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como crianças que
agem sem discernimento, o que ainda mais incompreensível torna a terrível
responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a humanidade inteira.
23.
Entretanto, o que constitui para a Teologia um beco sem saída, o Espiritismo o
explica sem dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e
pela pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na
vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo
logo se justifica: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em
estado de o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos
trazem aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, ao demais, que hajam
vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho
do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra a lei de
Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e exilados, por
punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido a
um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus assistia razão para lhes
dizer: “No mundo onde, daqui em diante, ides viver, cultivareis a terra e dela
tirareis o alimento, com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás com
dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, n. os 31 e seguintes.)
O
paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra,
era, por conseguinte, a figura do mundo ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a
raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em
que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo terráqueo e a
mudança de situação foi a consequência da expulsão. O anjo que, empunhando uma
espada flamejante, veda a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que
se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores,
antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se, adiante, o cap. XIV, n. os 8
e seguintes.)
24.
Caim, depois do assassínio de Abel, responde ao Senhor: A minha iniquidade é
extremamente grande, para que me possa ser perdoada. — Vós me expulsais hoje de
cima da Terra e eu me irei ocultar da vossa face. Irei fugitivo e vagabundo
pela Terra e qualquer um então que me encontre matar-me-á. — O Senhor lhe
respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto severamente punido será quem matar
Caim.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o matassem os que
viessem a encontrá-lo.
Tendo-se
retirado de diante do Senhor, Caim ficou vagabundo pela Terra e habitou a
região oriental do Éden. — Havendo conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu
Henoch. Ele construiu (vaïehi bôné;
literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Henoch (Enoquia) do
nome de seu filho. (Gênese, 4:13 a 16.)
25. Se
nos apegarmos à letra da Gênese, eis as consequências a que chegaremos: Adão e
Eva estavam sós no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só
posteriormente tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado
para outra região depois de haver assassinado o irmão, não tornou a ver seus
pais, que de novo ficaram isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e
trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou Seth, depois de
cujo nascimento, ele ainda viveu, segundo a genealogia bíblica, oitocentos
anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando,
pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três
pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve
mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde pudera ele desposá-la? O
texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade e não: ele construiu, o que
indica ação presente e não ulterior. Mas, uma cidade pressupõe a existência de
habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse para si, sua mulher e
seu filho, nem que a pudesse edificar sozinho.
Dessa
própria narrativa, portanto, se tem de inferir que a região era povoada. Ora,
não podia sê-lo pelos descendentes de Adão, que então se reduziam a um só:
Caim.
Aliás,
a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim:
“Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da
resposta que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade
teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a
ninguém iria encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de
Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta
consequência, tirada do texto mesmo da Gênese: Adão não é nem o primeiro, nem o
único pai do gênero humano. (Cap. XI, n. o 34.) (*)
(*)
Não é nova esta ideia. La Peyrère,
sábio teólogo do século dezessete, em seu livro Preadamitas, escrito em latim e
publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas
traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão
e essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.
26.
Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo ministrou acerca das
relações do princípio espiritual com o princípio material, acerca da natureza
da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união
com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através de sucessivas
existências e através dos mundos, que são outros tantos degraus da senda do
aperfeiçoamento, acerca da sua gradual libertação da influência da matéria,
mediante o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de
suas aptidões, do fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na
erraticidade e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se
melhorar e da sua perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as
partes da Gênese espiritual.
Graças
a essa luz, o homem sabe doravante donde vem, para onde vai, por que está na
Terra e por que sofre. Sabe que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do
seu cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida da alegoria acanhada
e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade
e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a
incredulidade e triunfará.
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