Seguimos os Espíritos, desde
que deixam o corpo terreno, e esboçamos rapidamente as suas ocupações. Hoje nos
propomos mostrá-los em ação, para o que reunimos no mesmo quadro várias cenas
íntimas, cujo testemunho nos foi dado através das comunicações. As numerosas
conversas familiares de além-túmulo já publicadas nesta revista podem dar uma
ideia da situação dos Espíritos, conforme o seu grau de progresso. Aqui, porém,
há um caráter especial de atividade, que nos dá a conhecer ainda melhor o papel
que, malgrado nosso, representam entre nós. O tema de estudo, cujas peripécias
vamos relatar, se nos ofereceu espontaneamente e apresenta tanto mais interesse
quanto o herói principal não é um desses Espíritos superiores, habitantes de
mundos desconhecidos, mas um desses que, por sua natureza, ainda estão presos à
Terra; um contemporâneo que nos deu provas manifestas de sua identidade. A ação
se passa entre nós e cada um de nós tem nela um papel.
Além do mais, este estudo dos costumes espíritas tem de particular a circunstância de mostrar-nos o progresso dos Espíritos na erraticidade e a maneira de concorrermos para a sua educação.
Depois de longas experiências infrutíferas, das quais triunfou a sua paciência, um dos nossos amigos tornou-se, repentinamente, magnífico médium psicógrafo e audiente. Ocupado, certa vez, na psicografia, com outro médium seu amigo, a uma pergunta dirigida a um Espírito, obteve resposta esquisita e pouco séria, que não correspondia ao caráter do Espírito evocado. Tendo interpelado o autor da resposta, intimando-o, em nome de Deus, a dar-se a conhecer, o Espírito assinou Pierre Le Flamand. Estabeleceu-se então entre ambos, e mais tarde entre nós e o Espírito, uma série de conversas que vamos transcrever.
Primeira conversa.
1. Quem és? Não conheço
ninguém com este nome.
— Um dos teus antigos
colegas de colégio.
2. Não tenho a menor
lembrança.
— Não te lembras de um dia
ter levado uma surra?
3. É possível. Entre
escolares isto acontece às vezes. Lembro-me de algo do gênero, mas também me
recordo de ter pago na mesma moeda.
— Era eu, mas não guardei
mágoa.
4. Obrigado. Tanto quanto me
recordo, tu eras um moleque bastante mau.
— Agora te volta a memória!
Pois não mudei enquanto vivi. Eu tinha a cabeça dura, mas no fundo não era mau.
Brigava com o primeiro que aparecesse. Para mim era como se fosse uma
necessidade. Quando virava as costas já não pensava mais no caso.
5. Quando e em que idade
faleceste?
— Há quinze anos. Eu tinha
cerca de vinte.
6. De que morreste?
— Um desatino de moço. . .
consequência de minha falta de juízo. . .
7. Ainda tens família?
— Há muito que eu havia
perdido pai e mãe; morava com o tio, meu único parente. Se fores a Cambrai
aconselho-te a procurá-lo. É uma excelente criatura, de quem muito gosto,
embora me tenha tratado duramente. Mas eu o merecia.
8. Ele tem o mesmo nome que
você?
— Não. Em Cambrai não há
mais ninguém com o meu nome. Chama-se W...; reside na rua... n.º... Verás que
sou eu mesmo que falo contigo.
Nota. O
fato foi verificado pelo próprio médium, num passeio feito algum tempo depois.
Encontrou o Sr. W... no endereço indicado. Ele contou que de fato tinha tido um
sobrinho com esse nome, estroina e endiabrado, falecido em 1844, pouco tempo
depois de ter sido convocado para o serviço militar. Esta circunstância não
havia sido indicada pelo Espírito. Fê-lo espontaneamente mais tarde. Veremos em
que ocasião.
9. Por que obra do acaso
vieste ao meu encontro?
— Foi por acaso, se assim o
quiseres, mas eu prefiro acreditar que foi o meu bom gênio que me empurrou para
ti, pois me parece que ambos lucraremos com o restabelecimento de nossas
relações. Eu estava aqui ao lado, no teu vizinho, apreciando os quadros... mas
não quadros de santos... de repente eu te avistei e vim. Vi-te ocupado a
conversar com outro Espírito e quis meter-me na conversa.
10. Mas por que respondeste
às perguntas feitas ao outro? Isto não é próprio de um bom camarada.
— Eu estava em presença de
um Espírito sério e que não me parecia disposto a responder. Respondendo por
ele, eu pensava que ele desatasse a língua, mas não tive sorte. Não dizendo a
verdade, eu queria forçá-lo a falar.
11. Isto não é direito, pois
poderia ter dado resultados desagradáveis, se eu não tivesse percebido o
embuste.
— Tê-lo-ias verificado, mais
cedo ou mais tarde.
12. Dize-me, então, como
entraste aqui.
— Esta é boa! Porventura
temos necessidade de tocar a campainha?
13. Então podes ir a toda
parte e entrar em qualquer lugar?
— Mas é claro que sim, e sem
fazer-me anunciar! Não é à toa que somos Espíritos.
14. Entretanto, eu pensava
que nem todos os Espíritos pudessem penetrar em todas as reuniões.
— Pensas, por acaso, que teu
quarto é um santuário e que eu seja indigno de nele penetrar?
15. Responde seriamente à
minha pergunta e deixa-te de brincadeiras de mau gosto. Vês que não tenho
disposição para elas e que os Espíritos mistificadores não são aqui bem
recebidos.
— Há reuniões de Espíritos
onde nós outros, gente à-toa, não podemos penetrar. Lá isso é verdade, mas são
os Espíritos superiores que nos impedem e não vocês, homens. Aliás, quando
vamos a algum lugar, sabemos muito bem ficar calados e à distância, se necessário.
Escutamos, e quando a coisa nos enfastia, vamo-nos embora. . . Ora, vamos!
Parece que não estás satisfeito com a minha visita.
16. É que eu não recebo com
satisfação o primeiro que aparece e francamente, não fiquei satisfeito por
perturbares uma conversa séria.
— Não te zangues. . . não
desejo aborrecer-te. . . sou sempre bonzinho. Da próxima vez me farei anunciar.
17. Então estás morto há
quinze anos. . .
— Entendamo-nos. Quem está
morto é o meu corpo, mas eu, que te falo, não estou morto.
Nota.
Encontram-se, por vezes, mesmo entre Espíritos levianos e brincalhões, palavras
de grande profundeza. Este EU que não está morto é toda uma filosofia.
18. É assim que o
compreendo. A propósito, dize-me uma coisa: Assim como estás agora, podes
ver-me com tanta nitidez como se estivesses em teu corpo?
— Vejo-te ainda melhor. Eu
era míope. Foi por isto que me quis livrar do serviço militar.
19. Então, com eu ia
dizendo, estás morto há quinze anos e me parece que és tão desmiolado como
antes. Quer dizer que não progrediste?
— Sou aquilo que era, nem
pior, nem melhor.
20. Como passas o tempo?
— Não tenho outra ocupação
senão divertir-me ou informar-me dos acontecimentos que podem ter influência
sobre o meu destino. Vejo muitas coisas.
Passo parte do tempo em casa
de amigos, no teatro... Por vezes surpreendo coisas engraçadas. Se as pessoas
soubessem que têm testemunhas quando pensam estar sozinhas!... Enfim, procedo
de maneira que o tempo me seja o menos pesado possível... Não saberia dizer quanto
tempo isto durará, entretanto, há algum tempo que vivo assim... Tens visto
muitos casos como este?
21. Em suma, és mais feliz
do que eras quando vivo?
— Não.
22. Que é o que te falta? De
nada mais necessitas; não sofres mais; não temes ser arruinado; vais a toda
parte e tudo vês; não temes as preocupações, nem as doenças, nem os achaques da
velhice. Não será isso uma existência feliz?
— Falta-me a realidade dos
prazeres. Não sou suficientemente evoluído para gozar de uma felicidade moral.
Desejo tudo aquilo que vejo, e isto é o meu suplício; aborreço-me e procuro
matar o tempo como posso!... E como isto dura!...
Experimento um mal-estar
indefinível; preferiria sofrer as misérias da vida a esta ansiedade que me
acabrunha.
Nota. Não
está aqui um quadro eloquente dos sofrimentos morais dos Espíritos inferiores?
Invejar tudo quanto veem; ter os mesmos desejos e nada gozar de fato, deve ser
verdadeira tortura.
23. Disseste que ias ver os
amigos. Não tens aí uma distração?
— Meus amigos não percebem a
minha presença. Além disso, não se lembram mais de mim. E isto me dói.
24. Não tens amigos entre os
Espíritos?
— Desatinados e inúteis como
eu, que como eu se aborrecem. Sua companhia não é muito agradável. Aqueles que
raciocinam e são felizes se afastam de mim.
25. Pobre rapaz! Eu te
lamento, e se te puder ser útil, sê-lo-ei com prazer.
— Se soubesses como estas
palavras me fazem bem! É a primeira vez que as ouço.
26. Não poderias encontrar
oportunidades de ver e ouvir coisas boas e que fossem úteis ao teu progresso?
— Sim, mas para tanto seria
preciso que eu soubesse aproveitar as lições. Confesso que prefiro assistir às
cenas de amor e deboche, que não têm influenciado meu Espírito para o bem.
Antes de vir até aqui, lá estava eu observando quadros que me despertavam
certas ideias... Mas acabemos com isto... Entretanto, eu soube resistir à
vontade de pedir uma reencarnação para gozar dos prazeres de que tanto abusei.
Agora vejo quanto teria errado. Vindo à tua casa, sinto que fiz bem.
27. Pois então! Espero que
para o futuro, caso queiras a minha amizade, me dês o prazer de não mais
prestar atenção a esses quadros que podem despertar más ideias; que, ao contrário,
penses naquilo que aqui poderás ouvir de bom e de útil para ti. Sentir-te-ás
bem, acredite.
— Se é o teu propósito, será
também o meu.
28. Quando vais ao teatro
experimentas as mesmas emoções de quando vivo?
— Várias emoções diferentes.
A princípio aquelas; depois misturo-me nas conversas e escuto coisas muito
singulares.
29. Qual o teu teatro
predileto?
— “Les Variétés”.
Acontece-me, entretanto, muitas vezes, percorrer todos na mesma noite. Também
vou aos bailes e aos locais de divertimento.
30. De modo que, ao mesmo
tempo que te divertes, te instruis, por que é possível muito observar na tua
posição.
— Sim, mas o que mais
aprecio são certos colóquios. É realmente interessante ver a manobra de certas
criaturas, sobretudo daquelas que ainda querem passar por jovens. Em todo esse
palavreado, ninguém diz a verdade. Assim como se pinta o rosto, maquia-se o
coração, de tal forma que ninguém se entende. Neste particular fiz um estudo
dos costumes.
31. Pois aí está! Não vês
que poderíamos ter boas conversas, como esta, da qual ambos podemos tirar
proveito?
— Certamente. Como tu dizes,
primeiro para ti, depois para mim. Tu tens as ocupações de que necessita o teu
corpo. Eu posso dar todos os passos possíveis para instruir-me, sem prejudicar
a minha existência.
32. Já que assim é,
continuarás as tuas observações ou, como dizes, os teus estudos dos costumes.
Até aqui quase que não os aproveitaste. É necessário que eles sirvam ao teu
esclarecimento, para o que terás de fazê-lo com um objetivo sério e não para te
divertires e matar o tempo. Dir-me-ás aquilo que viste. Raciocinaremos e
tiraremos as conclusões para a nossa mútua instrução.
— Isto vai ser muito
interessante. Sim, estou a teu serviço, sem dúvida nenhuma.
33. Isto não é tudo. Eu
gostaria de proporcionar-te ocasião para a prática de uma boa ação. Queres?
— De todo o coração! Assim,
dirão que poderei servir para alguma coisa. Dize-me logo o que devo fazer.
34. Devagar! Eu não confio
missões assim delicadas àqueles em quem não tenho confiança. Tens boa vontade,
não há dúvida. Terás, entretanto, a necessária perseverança? Eis a questão. É
preciso, então, que eu te ensine a te conheceres melhor, a fim de saber aquilo
de que és capaz e até que ponto posso contar contigo. Falaremos uma outra vez.
— Verás.
35. Por hoje, então, adeus!
— Até logo.
Segunda conversa.
36. Então, meu caro Pedro,
refletiste seriamente sobre o que conversamos outro dia?
— Mais do que pensas. Tomei
a peito provar-te que valho mais do que pareço. Sinto-me mais à vontade, desde
que tenho algo a fazer. Agora tenho um objetivo e não me aborreço mais.
37. Falei de ti ao Sr. Allan
Kardec. Dei-lhe conhecimento de nossa conversa, com o que ficou muito
satisfeito. Ele deseja entrar em contato contigo.
— Eu sei. Estive na casa
dele.
38. Quem te levou?
— Teu pensamento. Voltei
aqui depois daquele dia; vi que tu lhe querias falar a meu respeito e disse com
os meus botões: Vamos lá primeiro; possivelmente encontrarei material de
observação e talvez uma ocasião de ser útil.
39. Gosto de ver-te com tão
sérios pensamentos. Que impressão tiveste da visita?
— Oh! Muito grande. Aprendi
coisas que nem suspeitava e que me esclareceram quanto ao meu futuro. É como
uma luz que se fez em mim. Agora compreendo tudo quanto tenho a ganhar com o
meu aperfeiçoamento. É preciso... é preciso.
40. Poderia eu, sem
indiscrição, perguntar o que viste lá?
— Certamente. Tanto o que vi
lá como em outros lugares, no entanto sempre direi apenas o que eu quiser... ou
o que eu puder.
41. Como assim? Não podes
dizer tudo quanto queres?
— Não. De alguns dias para
cá vejo um Espírito que parece seguir-me por toda parte, que me impele ou me
contém. Dir-se-ia que ele me dirige. Sinto um impulso, cuja causa desconheço,
mas obedeço, malgrado meu. Se quero dizer ou fazer algo fora de propósito,
posta-se à minha frente. . . olha-me. . . e eu me calo. . . eu paro.
42. Quem é esse Espírito?
— Nada sei; mas ele me
domina.
43. Por que não lhe
perguntas?
— Não ouso. Quando lhe quero
falar ele me olha e eu sinto a língua travada.
Nota. É
evidente que aqui o vocábulo língua está em sentido figurado. Os Espíritos não
têm linguagem articulada.
44. Deves perceber se ele é
bom ou mau.
— Deve ser bom, pois que me
impede de dizer tolices. Mas é severo. . . Por vezes tem um ar encolerizado;
outras vezes parece olhar-me com ternura. . . Veio-me a ideia de que poderia
ser o Espírito de meu pai, que não quer dar-se a conhecer.
45. É provável. Parece que
não está muito satisfeito contigo. Ouve bem. Vou dar-te uma informação a
respeito disto. Sabemos que os pais têm por missão educar os filhos e
encaminhá-los para o bem. Consequentemente, são responsáveis pelo bem ou pelo
mal que os filhos praticarem, conforme a educação recebida, com o que sofrem ou
são felizes no mundo dos Espíritos. A conduta dos filhos influi, pois, até
certo ponto, sobre a felicidade ou a desventura de seus pais, depois de mortos.
Como tua conduta na Terra não foi muito edificante e como, depois de morto, não
fizeste grande coisa de bom, teu pai deve sofrer com isso, caso deva
censurar-se por não te haver guiado bem. . .
— Se eu não me tornei um
homem de bem, não foi por que me tenha faltado, mais de uma vez, a adequada
corrigenda.
46. Talvez não tivesse sido
o melhor meio de corrigir-te. Seja como for, sua afeição por ti é sempre a
mesma e ele o prova aproximando-se de ti, caso seja ele, como o presumo. Deve
sentir-se feliz com a tua mudança. Isto explica suas alternativas de ternura e
de cólera. Quer auxiliar-te no bom caminho em que acabas de entrar, e quando te
vir resolutamente empenhado nisso, estou certo que se dará a conhecer. Assim,
trabalhando por tua própria felicidade, trabalharás pela dele. Eu não me
admiraria se tivesse sido ele próprio quem te impeliu a vir até aqui. Se não o
fez antes foi porque quis dar-te o tempo de compreenderes o vazio de tua
existência sem obras e de sentir-lhe os desgostos.
— Obrigado! Obrigado!. . .
Ele está aqui, atrás de ti! Pôs a mão sobre tua cabeça, como se te ditasse as
palavras que acabas de proferir.
47. Voltemos ao Sr. Allan
Kardec.
— Fui à casa dele anteontem
à noite. Estava ocupado, escrevendo em seu gabinete. . . Trabalhava numa nova
obra em preparo. . . Ah! Ele cuida bem de nós, pobres Espíritos. Se não somos
conhecidos, não é por sua culpa.
48. Estava só?
— Só, sim, isto é, não havia
lá outras pessoas. Havia, porém, ao seu redor, cerca de vinte Espíritos que
cochichavam acima de sua cabeça.
49. Ele os escutava?
— Ouvia-os tão bem que
olhava para todos os lados de onde vinha o ruído, para ver se não eram milhares
de moscas. Depois abriu a janela para ver se não seria o vento ou a chuva.
Nota. O fato é absolutamente
exato.
50. Reconheceste algum entre
tantos Espíritos?
— Não. Não são aqueles cuja
companhia eu procurava. Eu tinha a impressão de ser um intruso. Fiquei num
canto a fim de observar.
51. Os Espíritos davam a
impressão de observar o que ele escrevia?
— Penso que sim. Dois ou
três, sobretudo, sopravam aquilo que ele escrevia e davam a impressão de ouvir
a opinião dos outros. Contudo ele acreditava piamente que as ideias lhe eram
próprias, e parecia contente com isso.
52. Foi tudo o que viste?
— Depois chegaram oito ou
dez pessoas que se reuniram numa outra sala com Kardec. Puseram-se a conversar.
Faziam perguntas e ele respondia, explicava.
53. Conheces as pessoas que
lá estavam?
— Não. Sei apenas que havia
pessoas importantes, porque a um deles chamavam sempre Príncipe, e a outro,
senhor Duque. Também os Espíritos chegaram em massa. Havia pelo menos uns cem,
dos quais alguns tinham uma espécie de coroa de fogo. Os outros mantinham-se à
distância, escutando.
54. E tu, o que fazias?
— Também escutava. Mas
sobretudo observava. Então veio-me a ideia de fazer uma manobra muito útil a
Kardec. Quando eu tiver alcançado êxito, dir-te-ei o que foi. Depois deixei a
reunião e vagando pelas ruas diverti-me em frente às lojas, misturando-me com a
multidão.
55. De modo que, em vez de
ir aos teus afazeres, perdias teu tempo?
— Não o perdi, porque impedi
que fosse praticado um roubo.
56. Ah! Então tu te metes
também nos assuntos da polícia?
— Por que não? Passando em
frente a uma loja que estava fechada, notei que lá dentro se passava algo de
singular; entrei; vi um moço muito agitado, que ia e vinha, como se quisesse ir
à caixa do negociante. Havia com ele dois Espíritos, que lhe sopravam ao
ouvido: Vamos, covarde! A gaveta está cheia; poderás divertir-te à vontade,
etc. O outro tinha um rosto de mulher, belo e cheio de nobreza e qualquer coisa
de celeste e de bom no olhar. Ele dizia: Vai-te, vai-te! Não te deixes tentar;
e lhe soprava as palavras: prisão, desonra.
O moço hesitava. No momento
em que se aproximava do balcão, meti-me à sua frente, para impedi-lo. O mau
Espírito perguntou por que eu estava me metendo. Eu lhe disse que queria
impedir que o moço cometesse uma ação indigna que talvez o levasse para as
galés. Então o bom Espírito aproximou-se de mim e me disse: “É preciso que ele
sofra a tentação; é uma prova. Se sucumbir, será por sua culpa.” O meu ladrão
ia triunfar, depois que o mau Espírito empregou uma astúcia abominável, que deu
resultado: fez-lhe ver uma garrafa sobre uma mesinha. Era aguardente.
Inspirou-lhe a ideia de beber, a fim de ter coragem. O infeliz está perdido,
pensei eu. . . Procuremos pelo menos salvar alguma coisa. Eu não tinha outro
recurso senão avisar o patrão. . . Depressa! Num ápice, lá estava eu. Ele se
preparava para jogar cartas com a mulher; era preciso achar um meio de fazê-lo
descer.
57. Se ele fosse médium,
poderias tê-lo feito escrever que ia ser roubado. Ele pelo menos acreditaria em
Espíritos?
— Não tinha bastante
espírito para saber o que é isso.
58. Eu ignorava que tivesses
habilidade para fazer trocadilhos.
— Se me interrompes não
direi mais nada. Provoquei-lhe um violento espirro. Ele quis tomar uma pitada e
notou que havia deixado na loja a caixa de rapé. Chamou o filho que cochilava a
um canto e mandou que fosse buscá-la. . . Não era isto o que eu queria. O
menino levantou-se resmungando. Soprei à mãe que dissesse: Não acordes a criança,
tu bem podes ir buscá-la. Por fim ele se decidiu. . . eu o acompanhei, para que
se apressasse. Chegando à porta percebeu luz na loja e ouviu um barulho. Ficou
tomado de medo; as pernas começaram a tremer; empurrei-o para frente. Se
tivesse entrado subitamente, pegaria o ladrão como numa armadilha. Em vez disso
o imbecil pôs-se a gritar: pega ladrão! O ladrão escapuliu, mas na
precipitação, perturbado também pela aguardente, esqueceu o boné. O negociante
entrou quando já não havia mais ninguém. . . Que acontecerá com o boné? Isto
não é comigo. Aquele sujeito está metido em maus lençóis. Graças a mim não
houve tempo de consumar-se o furto, do qual o negociante se livrou pelo medo.
Isto não impediu que, ao subir, ele dissesse que tinha enfrentado um homem de
seis pés de altura. ─ “Vejam só”, disse ele, “como são as coisas! Se eu não
tivesse tido a ideia de tomar uma pitada!” ─ “Se eu não tivesse impedido que
mandasses o menino!” retorquiu a mulher. ─ “Convenhamos que nós ambos farejamos
bem!” ─ “Foi muita sorte!” Vês tu, meu caro, como nos agradecem!
59. És um bravo rapaz, meu
caro Pedro. Eu te felicito. Não percas a coragem diante da ingratidão dos
homens. Experimentarás isto muitas outras vezes, agora que te dispões a lhes
prestar serviço, até mesmo entre os que acreditam na intervenção dos Espíritos.
— Sim, e sei que os ingratos
serão pagos com ingratidão.
60. Vejo agora que posso
contar contigo, e que tornar-te-ás realmente sério.
— Verás mais tarde que serei
eu quem te ensinará moral.
61. Eu o necessito, como
qualquer pessoa, e recebo de boa vontade os bons conselhos, venham de onde
vierem. Eu te disse que queria que praticasses uma boa ação. Estás disposto?
— E duvidas?
62. Um dos meus amigos
parece estar ameaçado de grandes decepções, se continuar pelo mau caminho em
que se acha; suas ilusões poderão perdê-lo. Gostaria que tentasses reconduzi-lo
ao bom caminho, por qualquer meio que pudesse impressioná-lo vivamente. Compreendes
o meu pensamento?
— Sim. Queres que eu lhe
produza alguma boa manifestação, como, por exemplo, uma aparição. Mas isto não
depende de mim. Entretanto posso, eventualmente, e desde que tenha permissão
para isso, dar provas sensíveis de minha presença, bem o sabes.
Nota. O médium ao qual este
Espírito parece estar ligado é advertido de sua presença por uma impressão
muito sensível, mesmo quando não lhe ocorre chamá-lo.
Reconhece-o por uma espécie
de arrepio que sente nos braços, nas costas e nas espáduas. Às vazes, porém, os
efeitos são mais enérgicos. Numa reunião em nossa casa, a 24 de março último,
esse Espírito respondeu às perguntas por intermédio de outro médium. Falava-se
de sua força física. De repente, como que para dar uma prova disso, ele agarrou
um dos assistentes pela perna e por meio de violenta sacudida levantou-o da
cadeira e o atirou, atordoado, para o outro lado da sala.
63. Farás o que quiseres, ou
melhor, o que puderes. Aviso-te que ele tem alguma mediunidade.
— Tanto melhor para o meu
desígnio.
64. Que pensas fazer?
— Para começar vou estudar a
situação. Vou ver de que Espíritos está ele cercado e se há meios de algo fazer
com eles. Uma vez em sua casa, eu me anunciarei, como fiz contigo.
Interpelar-me-ão e eu responderei: “Sou eu, Pierre Le Flamand, mensageiro
espiritual. Venho pôr-me ao vosso serviço e, ao mesmo tempo, desejo servir-vos.
Ouvi dizer que alimentais certas esperanças que vos transtornam a cabeça e que
já vos levam a voltar as costas aos amigos. Em vosso interesse, é meu dever
advertir-vos de quanto vossas ideias estão longe de ser proveitosas à vossa
felicidade futura. Palavra de Le Flamand! Posso garantir que vos venho visitar
animado de boas intenções. Temei a cólera dos Espíritos e, mais ainda, a de
Deus; e crede nas palavras do vosso servo que deseja vos afirmar que a sua
missão é toda para o bem.” (sic).
Se me enxotarem, voltarei
três vezes. Depois verei o que devo fazer. É isto?
65. Muito bem, meu amigo.
Não digas mais nem menos.
— Palavra por palavra.
66. Mas se te perguntarem
quem te encarregou dessa missão, que responderás?
— Espíritos superiores. Para
o bem, posso não dizer toda a verdade.
67. Enganas-te. Desde que se
trata do bem, é sempre por inspiração dos bons Espíritos. Assim, tua
consciência pode estar tranquila, pois os maus Espíritos jamais nos levam a
fazer boas coisas.
— Está entendido.
68. Agradeço-te e te
felicito pela boa disposição. Quando queres que te chame para me comunicares o
resultado de tua missão?
— Eu te avisarei.
Revista espírita — Jornal de
estudos psicológicos, maio de 1859.
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