Para quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão, há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. É que, em geral, os homens apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição.
21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está no invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo . Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.
Por meio do incessante
espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer
do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a
desejem como uma compensação.
Objetar-se-á: não podia Deus
chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se
entredestruírem? Desde que na sua obra tudo é sabedoria, devemos supor que esta
não existirá mais num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim,
devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos tentar a
pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este
princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em
tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o
nosso entendimento.
22. Uma primeira utilidade,
que se apresenta de tal destruição, utilidade, sem dúvida, puramente física, é
esta: os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas,
matérias que só elas contêm os elementos nutritivos necessários à transformação
deles. Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando os
corpos ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútuo
entretenimento. Eis por que os seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o
corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere. Fica
apenas despojado do seu envoltório.1
1. Veja-se: Revista Espírita
de agosto de 1864, “Extinção das raças”.
23. Há também considerações
morais de ordem elevada. — É necessária a luta para o desenvolvimento do
Espírito. Na luta é que ele exercita suas faculdades. O que ataca em busca do
alimento e o que se defende para conservar a vida usam de habilidade e
inteligência, aumentando, em consequência, suas forças intelectuais. Um dos
dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais forte ou o mais destro
tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; ulteriormente, o Espírito,
que não morreu, tomará outra.
24. Nos seres inferiores da
criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, em os quais a inteligência
ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a
satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais imperiosas dessas
necessidades é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto
é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado os
poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para
a vida.
No homem, há um período de
transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o
instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das necessidades
materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento
moral; luta então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à
sua ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar. Para
isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que o senso moral
prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir,
acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa. O homem ganha horror ao
sangue.
Contudo, a luta é sempre
necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto,
que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só à custa de
muita atividade adquire conhecimento, experiência e se despoja dos últimos
vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que
era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as dificuldades, não
mais contra os seus semelhantes.2
2. Sem prejulgar das
consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar,
mediante essa explicação, que a destruição de uns seres vivos por outros em
nada infirma a sabedoria divina e que, nas leis da natureza, tudo se encadeia.
Esse encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do princípio
espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por só se levar em conta a
matéria.
As doutrinas materialistas
trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o
antagonismo em que se acham com as aspirações da universalidade dos homens e
suas consequências morais, que farão sejam elas repelidas como dissolventes da
sociedade, mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de
tudo o que resulta do progresso. O desenvolvimento intelectual conduz o homem à
pesquisa das causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a
impotência do materialismo para tudo explicar. Como é possível que doutrinas
que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à inteligência, que deixam
problemáticas as mais vitais questões, venham a prevalecer? O progresso das
ideias matará o materialismo, como matou o fanatismo.
Allan Kardec. A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Capítulo III, itens 20 a 24.
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