Padre.
— A Igreja, com efeito, reconhece hoje que o inferno material é uma figura, mas
isso não exclui a existência dos demônios; sem eles, como explicar a influência
do mal, que não pode vir de Deus?
A.
K. — O Espiritismo não admite os demônios no sentido vulgar da palavra, porém,
sim, os maus Espíritos, que não valem mais do que aqueles e que fazem
igualmente o mal, suscitando maus pensamentos; somente ele diz não serem eles
seres à parte, criados para o mal e perpetuamente votados a isto, espécie de
párias da criação e algozes do gênero humano; são seres atrasados, ainda
imperfeitos, mas aos quais Deus reservará o futuro. Nisso concorda o
Espiritismo com a Igreja Católica Grega, que admite a conversão de Satã, alusão
ao melhoramento dos maus Espíritos. Notai também que a palavra demônio não
implica a ideia de mau Espírito, que lhe é dada pela acepção moderna, porque a
palavra daimónion, grega, significa gênio, inteligência. Seja como for, hoje
ela exprime um Espírito mau. Ora, admitir a comunicação dos maus Espíritos é
reconhecer, em princípio, a realidade das manifestações. A questão está em
saber se são eles os únicos que se comunicam, como afirma a Igreja para motivar
a proibição, feita por ela, de se comunicar com os Espíritos. Aqui, nós
invocamos o raciocínio e os fatos. Se os Espíritos, quaisquer que eles sejam,
se comunicam, não pode ser senão com a permissão de Deus; é possível que Ele só
o tivesse permitido aos maus? Como?! Deixando a estes toda a liberdade de virem
enganar os homens, Deus poderia impedir que os bons lhes viessem fazer um
contrapeso, neutralizar suas doutrinas perniciosas? Crer que seja assim, não
seria pôr em dúvida seu poder e bondade, e fazer de Satã um rival da Divindade?
A Bíblia, o Evangelho, os padres da Igreja reconhecem perfeitamente a
possibilidade das comunicações com o mundo invisível, e desse mundo não estão
excluídos os bons; por que, pois, havemos hoje de excluí-los? Além disso, a
Igreja, admitindo a autenticidade de certas aparições e comunicações de santos,
rejeita assim a ideia de só podermos entrar em relação com os maus Espíritos.
Seguramente, quando nos trabalhos obtidos só encontramos coisas boas, quando
nos pregam neles a mais pura e sublime moral evangélica, a abnegação, o
desinteresse e o amor ao próximo; quando neles se combate o mal, qualquer que
seja o aspecto sobre que se mostre, será racional crer que o Espírito maligno
assim proceda?
Padre. — O Evangelho ensina que o anjo das trevas, ou Satã, se transforma em anjo de luz para seduzir os homens.
A.
K. — Satã, segundo o Espiritismo e a opinião de muitos filósofos cristãos, não
é um ser real; é a personificação do mal, como Saturno era outrora a do tempo.
A Igreja apega-se à letra dessa figura alegórica; é uma questão de opinião que
eu não discutirei. Admitamos, por um instante, que Satã seja um ser real; a
Igreja, à força de exagerar seu poder, tendo em vista intimidar, chega a um
resultado totalmente contrário, isto é, à destruição, não somente do medo, mas
também da crença em tal personagem, segundo o provérbio: “Quem muito quer
provar, nada prova.” Ela o representa como eminentemente fino, sagaz e
ardiloso, mas, na questão do Espiritismo, fá-lo desempenhar o papel de louco ou
de tolo.
Uma
vez que seu fim é alimentar de vítimas o inferno e arrebatar almas do poder de
Deus, compreende-se que se dirija àqueles que estão no bem para induzi-los ao
mal, e, para tal fim, se veja obrigado a transformar- -se, segundo belíssima
alegoria, em anjo de luz, isto é, que ele hipocritamente simule a virtude, mas
que deixe escapar aqueles que já estavam em suas redes, é o que não se pode
compreender. Os que não admitem Deus nem a alma, que desprezam a prece e vivem
mergulhados no vício, são dele, quanto é possível ser-se; nada mais lhe resta
fazer para sepultá-los no lamaçal; ora, excitá-los a voltar a Deus, a orar, a
submeter-se à vontade do Criador, animá-los a renunciar ao mal, mostrando-lhes
a felicidade dos escolhidos e a triste sorte que aguarda os maus, seria ato de
um simplório, mais estúpido que o de dar liberdade a aves que estejam numa
gaiola, com o pensamento de apanhá-las de novo.
Há,
pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demônios uma contradição que
fere todo homem sensato; nunca se persuadirá alguém que os Espíritos que
reconduzem a Deus aqueles que o renegavam, ao bem os que praticavam o mal; que
consolam os aflitos, dão força e coragem aos fracos; que, pela sublimidade de
seus ensinos, elevam a alma acima da vida material, sejam auxiliares de Satã, e
que, por este motivo, se deva interdizer-nos qualquer relação com o mundo
invisível.
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