“Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.”
Em torno da fé existem inúmeras afirmativas
negando-lhe o caráter racional. Segundo alguns teólogos, raciocina-se sobre a
crença, mas não sobre a fé. A fé, segundo eles, é uma virtude, um dom que
transcende a própria razão.
Por colocarem-na como virtude ou dom
transcendental, pertencente exclusivamente à área do sentimento, é que muitas
pessoas confundem emoção com fé. Por isso, é comum pessoas dizerem ter sentido
uma fé imensa, capaz de levá-las a grandes realizações, no momento em que
ouviam o relato de passagens do Evangelho, ou de ações levadas a efeito por
benfeitores da Humanidade, ou até mesmo em decorrência da simples leitura de
uma página edificante. A emoção, a vibração espiritual que os atos nobres
suscitam nas almas já portadoras de alguma sensibilidade não pode ser
confundida com fé. O estado emocional é transitório, enquanto a fé é
permanente. A emoção, se analisada e orientada pela inteligência, pode ser
auxiliar valiosa para levar a criatura a modificar-se para melhor. Entretanto,
se não for esclarecida pela razão pode conduzir ao fanatismo, à chamada fé
cega, que é a negação da própria fé.
O mundo está cheio de exemplos tristes dos frutos do fanatismo religioso. Em nome da fé, quantas perseguições, quantas mortes e até guerras? Ainda nos dias atuais, principalmente na semana santa, existem pessoas que vertem seu próprio sangue, ferindo seus corpos, ou se entregam a privações terríveis no intuito de mostrar sua fé em Deus. Se raciocinassem, veriam que Deus, como Pai amoroso, bom e misericordioso, nunca poderia ser homenageado com o derramamento do sangue dos Seus filhos. Essa concepção de um deus sanguinário, combateu-a o Profeta Elias, séculos antes de Jesus, quando enfrentou os sacerdotes adoradores do deus Baal. (I Reis, 18:22 a 40.)
Aprende-se no Espiritismo que, na sua
caminhada evolutiva, o Espírito vai conhecendo as leis de Deus, vai
percebendo-lhes a perfeição e, quanto mais as conhece, mais se identifica com
elas, mais confia na justiça e no amor do Criador, mais se conscientiza da Sua
perfeição, mais tem fé. Essa, a fé que nasce do entendimento: inabalável,
indestrutível.
Emmanuel ensina: “Ter fé é guardar no coração
a luminosa certeza em Deus, certeza que ultrapassou o âmbito da crença
religiosa, fazendo o coração repousar numa energia constante de realização
divina da personalidade. Conseguir a fé é alcançar a possibilidade de não mais
dizer eu creio, mas afirmar eu sei, com todos os valores da razão, tocados pela
luz do sentimento”.
A fé que o Espiritismo preconiza não é uma fé
contemplativa, capaz de levar uma pessoa à imobilidade, em situações de êxtase,
em que fica aguardando providências de Deus em seu favor. Ao contrário, é uma
fé dinâmica, edificada vagarosa e conscientemente pelo Espírito, à medida que
evolui, conforme ensina Emmanuel: “A árvore da fé viva não cresce no coração
miraculosamente. A conquista da crença edificante não é serviço de menor
esforço. A maioria das pessoas admite que a fé constitua milagrosa auréola doada
a alguns Espíritos privilegiados pelo favor divino”.
A fé espírita não é aquela que se fixa em
objetos materiais como cruzes, escapulários, bentinhos, talismãs, amuletos,
medalhas etc. O espírita tem fé em Deus, em Jesus, nos bons Espíritos,
entidades dotadas de sentimento e de inteligência, seres capazes de movimentar
recursos em seu favor. Essa fé é muito diferente da crença infantil num
pretenso poder mágico de objetos materiais, que não poderiam jamais movimentar,
com inteligência e sentimento, recursos a benefício de alguém.
Entretanto, é lícito se indague sobre a
origem da fé raciocinada. Teria ela nascido com o Espiritismo? Não, a fé
raciocinada nos vem de Jesus, dos ensinamentos do seu Evangelho. O Mestre mudou
completamente o próprio conceito de religião, introduzindo no campo até então
puramente emocional da fé, o componente razão, entendimento. Ninguém, até
Jesus, fez tantos apelos ao raciocínio no âmbito religioso. Kardec, conhecedor
profundo da atuação de Jesus, o conhecia, não como um místico, mas como um
educador de almas que, ao tempo em que tocava o sentimento daqueles que o
ouviam, sabia também levá-los ao entendimento das lições. Por isso, tem a
Doutrina Espírita essa característica de racionalidade. E não podia ser de
outra forma, de vez que ao Espiritismo coube o papel de reviver o Cristianismo
na sua pureza, simplicidade e pujança originais.
Jesus nunca explorou a emoção de ninguém. Sua
fala, mansa e humilde, precisa e firme, era dirigida ao sentimento e à
inteligência. Suas lições foram sempre pautadas no diálogo, através do qual
propunha o exame racional daquilo que ensinava.
Censurado por haver curado uma mulher paralítica num sábado, bem poderia deixar que a própria cura falasse por ele, mas não perdeu a oportunidade de, através de uma pergunta, fazer pensar aqueles que o ouviam:
“(...) no sábado não desprende da manjedoura cada um de vós o seu
boi, ou o jumento, e não o leva a beber? E não convinha soltar desta prisão, no
dia de sábado, esta filha de Abraão, a qual há dezoito anos Satanás a tinha
presa?” (Lucas, 13:15 e 16).
De outra feita, ele próprio perguntou aos doutores da lei, antes de curar um homem:
“É lícito curar no sábado?” (Lucas, 14:3). Como não respondessem, Jesus curou o hidrópico e o despediu. Depois, ele
volta a inquiri-los, a fim de conscientizá-los de que acima da letra morta há
uma interpretação racional, inteligente: “Qual de vós o que, caindo-lhe num
poço, em dia de sábado, o jumento ou o boi, o não tire logo?” (Lucas, 14:5).
“E, orando, não useis de vãs repetições...”
(Mateus, 6,7). Quer o Mestre dizer que devemos orar com plena consciência
daquilo que falamos, que a nossa oração não seja uma repetição emocional de uma
fórmula decorada, como se fosse algo recitado ou declamado. Ao contrário, que
seja uma mensagem conscientemente elaborada, com um conteúdo de comunicação
dirigida ao Alto, e que não seja uma simples ladainha.
Jesus, ao conversar com a samaritana, à beira
do poço de Jacó, demonstra que não necessitava inquirir alguém para informar-se
de algo. Ali deixa claro para ela que conhecia-lhe o passado como a palma de
sua mão (João, 4:17). Entretanto, frequentemente fazia perguntas para suscitar
dúvida no seu interlocutor, a fim de fazê-lo pensar, raciocinar e não receber
passivamente um ensinamento: “Qual é mais fácil? Dizer: Os teus pecados te são
perdoados; ou dizer: Levanta-te e anda?” (Lucas, 5:23).
Ao invés de fazer um discurso eloquente e
emocionado sobre a Providência Divina, o Mestre busca, através de perguntas,
levar seus ouvintes a pensarem, a raciocinarem sobre Deus. Depois de lhes ter
falado sobre os lírios do campo, dizendo que Deus os veste, e compara sua
vestimenta ao luxo do rei Salomão: “Pois, se Deus assim veste a erva do campo,
que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós,
homens de pouca fé?” (Mateus, 6:30).
“E qual de vós é o homem que, pedindo-lhe pão
o seu filho, lhe dará uma pedra? E, pedindo-lhe peixe, lhe dará uma serpente?
Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais
vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que lhos pedirem?” (Mateus, 7:9 a
11). Também por essa passagem pode-se ver que Jesus não buscava levar ninguém a
uma adoração emotiva, a uma fé cega. Ele poderia ter dito, por exemplo que se
deve ter fé em Deus, criador de tudo o que existe, que é bom, amoroso,
misericordioso, providente etc. Mas não, só isso não bastava. Se ficasse só
nessas afirmações, teria suscitado uma fé passiva. Ele queria fazer as
criaturas entenderem, através de uma comparação, que o Todo Poderoso deveria
ser, necessariamente, melhor que um pai terreno e, portanto, capaz de dar
maiores bens aos Seus filhos.
Os apelos que Jesus, nas suas lições, fazia
não só ao sentimento, mas também à inteligência, foram objeto de estudo até
mesmo fora do ambiente religioso, por um médico psiquiatra, Augusto Jorge Cury,
quando diz: “... ele não anulava arte de pensar, ao contrário, era um mestre
intrigante nessa arte. Cristo não discorria sobre uma fé sem inteligência. Para
ele, primeiro se deveria exercer a capacidade de pensar e refletir antes de
crer, depois vinha o crer sem duvidar. Se estudarmos os quatro evangelhos e
investigarmos a maneira como Cristo agia e expressava seus pensamentos,
constataremos que pensar com liberdade e consciência era uma obra-prima para
ele”.
O trecho do Novo Testamento que mais
evidencia o ambiente pedagógico, de diálogo, de liberdade de análise, na busca
de esclarecimentos, que Jesus propiciava a todos que ouviam-lhe as lições é,
certamente, o assim chamado “A Transfiguração”. Registra Mateus, no capítulo
17, que Jesus subiu a um alto monte, acompanhado de Pedro, Tiago e João. O
Mestre orou e se transfigurou, cobrindo-se de luz, ao tempo em que apareceram –
seguramente materializados, pois que os três discípulos os viram – Moisés e
Elias, que conversaram com ele. Passado o momento sublime, ao regressarem, o
Mestre ordena aos discípulos que não contem nada do que acontecera até que ele
ressuscitasse. É de se imaginar o contentamento e a emoção que devem ter
sentido aqueles discípulos ao contemplarem Jesus coberto de luz, Moisés, o pai
dos profetas, e o grande profeta Elias. Entretanto, eles não se detiveram em
atitude de contemplação mística, de deslumbramento. Pelo contrário, o
raciocínio funcionou imediatamente, na busca de resposta para algo que lhes
pareceu estranho: “E os discípulos o interrogaram, dizendo: Por que dizem então
os escribas que é mister que Elias venha primeiro?” (Mateus, 17:10). Por que a pergunta? Ora, havia sido predito
pelos profetas – e os escribas sempre o repetiam – que o Mestre seria precedido
por Elias, que voltaria para preparar-lhe o caminho. Os discípulos, vendo Elias
desencarnado, deduziram que algo estava errado: ou as profecias não espelhavam
a verdade, ou aquele que se apresentara e conversara com Jesus não era Elias,
ou Jesus não era o Messias! Jesus, com a tranquilidade daqueles que detêm a
verdade, respondendo, disse-lhes: “Mas digo-vos que Elias já veio, e não o
conheceram, mas fizeram-lhe o que quiseram. Assim farão eles também padecer o
Filho do homem” (Mateus, 17:12). E, em seguida, conclui o Evangelista: “Então
entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista” (Mateus, 17:13).
Tudo estava certo. A profecia já se havia cumprido.
Diante do que se acabou de ver, conclui-se
que Jesus foi um pedagogo e não um místico. Sabia atrair seus ouvintes com as
doces consolações da fé, mas não alimentava atitudes de deslumbramento
contemplativo, face aos apelos ao raciocínio com que mesclava suas sublimes
lições. Encaminhava-os ao entendimento lógico, racional dos fatos! Jesus, como
Mestre admirável que foi, soube criar um clima de diálogo aberto. Foi essa
liberdade que levou os discípulos a buscarem imediatamente esclarecimento sobre
a aparição de Elias, embora a pergunta formulada por eles contivesse embutido
um grave questionamento, qual seja o da própria condição de Messias do seu
Mestre. Jesus não se sente agastado e, com a segurança daqueles que estão com a
Verdade, os esclarece. Assim, vê-se claramente que Jesus não impunha suas
ideias, não violentava consciências, nem exigia fé cega, sem exame. Não. Sua
mensagem sempre foi dirigida ao intelecto e ao sentimento, bases legítimas da
fé raciocinada, que o Espiritismo veio reviver.
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