O bem e o mal
Origem do bem e do
mal
1.
Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria, todo bondade,
todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos,
porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja
ininteligente, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter nele a sua
origem.
2.
Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame
Arimane, (Arimã ou Arimane para os seguidores do zoroastrismo, é o nome do
senhor das trevas; seus métodos são vis e enganadores, ele corrompe os homens
com desejos que os desviam da vida correta) quer Satanás, ou ele seria igual a
Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como
Ele, ou lhe seria inferior.
No
primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em luta,
procurando cada uma desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente,
hipótese esta inconciliável com a unidade de vistas que se revela na estrutura
do universo.
No
segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado. Não
podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria
tido um começo. Se fora criado, só o poderia ter sido por Deus, que, então,
houvera criado o Espírito do mal, o que implicaria negação da bondade infinita.
(Veja-se: O céu e o inferno, cap. IX: Os demônios.)
3.
Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou
morais, que afligem a humanidade, formam duas categorias que importa
distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos que lhe independem da
vontade. Entre os últimos, cumpre se incluam os flagelos naturais.
O homem, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador; aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses factícios e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza. Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja compreensível.
4. O
homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível
conjurar, ou, pelo menos, atenuar muito os efeitos de todos os flagelos
naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em civilização, tanto
menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização sábia e
previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as consequências, quando não
possam ser inteiramente evitados. Assim, com referência, até, aos flagelos que
têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas que, no
presente, causam danos, facultou Deus ao homem os meios de lhes paralisar os
efeitos.
Assim
é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza contra os miasmas pestíferos, fertiliza
terras áridas e se esforça em preservá-las das inundações; constrói habitações
mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à
purificação da atmosfera e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim,
finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por
meio das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu
próprio bem-estar.
5.
Tendo o homem que progredir, os males a que se acha exposto são um estimulante
para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e
morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se ele nada houvesse de
temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; o espírito se lhe
entorpeceria na inatividade; nada inventaria, nem descobriria. A dor é o
aguilhão que o impele para a frente, na senda do progresso.
6.
Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus vícios, os
que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de
seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das calamidades que estas
acarretam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da
maior parte, afinal, das enfermidades.
Deus
promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. Em si mesmo
encontra o homem tudo o que lhe é necessário para cumpri-las. A consciência lhe
traça a rota, a lei divina lhe está gravada no coração e, ademais, Deus lha
lembra constantemente por intermédio de seus messias e profetas, de todos os
Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar
e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se
manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse rigorosamente com as Leis
divinas, não há duvidar de que se pouparia aos mais agudos males e viveria
ditoso na Terra. Se assim procede, é por virtude do seu livre-arbítrio: sofre
então as consequências do seu proceder. (O evangelho segundo o espiritismo,
cap. V, item 4 e seguintes.)
7.
Entretanto, Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que
do próprio mal saia o bem. Um momento chega em que o excesso do mal moral se
torna intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído
pela experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio, sempre
por efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade
e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o
constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o
constrangeu a melhorar as condições materiais da sua existência (item 5).
8.
Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor.
Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é atributo
distinto; um é o negativo do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe
o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem;
só do homem procede o mal. Se na Criação houvesse um ser preposto ao mal,
ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, tendo
simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as Leis divinas, evitá-lo-á sempre
que o queira.
Tomemos
para comparação um fato vulgar. Sabe um proprietário que nos confins de suas
terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por lá se
aventurasse. Que faz, a fim de prevenir os acidentes? Manda colocar perto um
aviso, proibindo que prossigam os que por ali passem, devido ao perigo. Aí está
a lei, que é sábia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente desatende o
aviso, vai além do ponto onde este se encontra e sai-se mal, de quem se pode
ele queixar, senão de si próprio?
Assim
sucede com todo o mal: evitá-lo-ia o homem se cumprisse as Leis divinas. Por
exemplo: Deus pôs limite à satisfação das necessidades; por meio da saciedade o
homem é avisado desse limite; se o ultrapassa, fá-lo voluntariamente. As
doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem resultar, provêm da sua
imprevidência, não de Deus.
9.
Decorrendo, o mal, das imperfeições do homem e tendo sido este criado por Deus,
dir-se-á, Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos, a causa do
mal; se houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria.
Se
fora criado perfeito, o homem fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude
do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal.
Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte
do seu trabalho, a fim de que lhe pertença o fruto deste, da mesma maneira que
lhe cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. A questão,
pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o
mal. (21)
(21)
O erro está em pretender-se que a alma haja saído perfeita das mãos do Criador,
quando este, ao contrário, quis que a perfeição resulte da depuração gradual do
Espírito e seja obra sua. Houve Deus por bem que a alma, dotada de
livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e chegasse às suas
finalidades últimas de forma militante e resistindo ao mal. Se houvera criado a
alma tão perfeita quanto Ele e, ao sair-lhe ela das mãos, a houvesse associado
à sua beatitude eterna, Deus tê-la-ia feito, não à sua imagem, mas semelhante a
si próprio. (Bonnamy, A razão do espiritismo, cap. VI.).
10.
Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de
umas e outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em
toda a pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade,
nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não
ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à
medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O
Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua
existência corpórea, somente às exigências materiais lhe cumpre satisfazer e,
para tal, o exercício das paixões constitui uma necessidade para a conservação
da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez saído desse
período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e
semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito exerce
domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda providencial que se
lhe acha traçada e se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se
deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o bruto. Nessa
situação, o que era outrora um bem, porque era uma necessidade da sua natureza,
transforma-se num mal, não só porque já não constitui uma necessidade, como
porque se torna prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é
qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo e a
responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.
Todas
as paixões têm, portanto, uma utilidade providencial, pois, se assim não fosse,
Deus teria feito coisas inúteis e até nocivas. No abuso é que reside o mal e o
homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu
próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e o mal.
O instinto e a
inteligência
11.
Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e o outro
começa? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou será uma faculdade
distinta, um atributo exclusivo da matéria?
O
instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos espontâneos e
involuntários, tendo em vista a conservação deles. Nos atos instintivos não há
reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar,
se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a terra nutriente;
que a flor se abre e fecha alternadamente, conforme se lhe faz necessário; que
as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio, ou
se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os animais são avisados do
que lhes é útil ou nocivo; que buscam, conforme a estação, os climas propícios;
que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies,
leitos macios e abrigos para as suas progênies, armadilhas para apanhar a presa
de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de
que são providos; que os sexos se aproximam; que a mãe choca os filhos e que
estes procuram o seio materno. No homem, no começo da vida o instinto domina
com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos,
que toma o alimento, que grita para exprimir as suas necessidades, que imita o som
da voz, que tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são
instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir
a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das
pálpebras para moderar o brilho da luz, a respiração etc.
12.
A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos, premeditados,
combinados, de acordo com a oportunidade das circunstâncias. É
incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.
Todo
ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação, deliberação é
inteligente. Um é livre, o outro não o é.
O
instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato
de ser livre, está, por vezes, sujeita a errar.
Ao
ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; revela, entretanto, uma
causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto
procede da matéria, ter-se-á de admitir que a matéria é inteligente, até mesmo
bem mais inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto não se engana,
ao passo que a inteligência se equivoca.
Se
se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar
que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar
que torne possível se executem atos que esta não pode realizar? Se ele é
atributo de um princípio espiritual de especial natureza, qual vem a ser esse
princípio? Pois que o instinto se apaga, dar-se-á que esse princípio se
destrua? Se os animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o
destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos, o que não estaria de
acordo nem com a justiça, nem com a bondade de Deus. (Cap. II, 19.)
13.
Segundo outros sistemas, o instinto e a inteligência procederiam de um único
princípio. Chegado a certo grau de desenvolvimento, esse princípio, que
primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma
transformação que lhe daria as da inteligência livre.
Se
fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e entra a ser guiado
exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu estado primitivo
e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e
assim alternadamente, a cada acesso, o que não é admissível.
Aliás,
muitas vezes o instinto e a inteligência se revelam simultaneamente no mesmo
ato. No caminhar, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem põe
maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso pensar; quando, porém, ele
quer acelerar ou demorar o passo, levantar o pé ou desviar-se de um tropeço, há
cálculo, combinação; ele age com deliberado propósito. A impulsão involuntária
do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o ato
inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se alimentar de
carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para
segurar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.
14.
Outra hipótese que, em suma, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio,
ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que
o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo espiritual com o mundo
corpóreo.
Sabe-se
agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar pelos encarnados,
dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios
fluídicos; que o homem age muitas vezes de modo inconsciente, sob a ação desses
eflúvios.
Sabe-se,
ademais, que o instinto, que por si mesmo produz atos inconscientes, predomina
nas crianças e, em geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta
hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma, nem da matéria; não
pertenceria propriamente ao ser vivo, seria efeito da ação direta dos
protetores invisíveis que supririam a imperfeição da inteligência, provocando
os atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual a andadeira
com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do mesmo modo
que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que a criança se
equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues a si mesmos os seus
protegidos, à medida que estes se tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência.
Assim,
o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta,
sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da sua força, inteligência
protetora, que supriria a insuficiência, quer de uma inteligência mais jovem,
que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda
fosse incapaz de fazer por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém,
momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na
infância e nos casos de idiotia e de afecções mentais.
Diz-se
proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os
ébrios. É mais veraz do que se supõe esse ditado. Aquele deus, outro não é
senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger,
utilizando-se da sua própria razão.
15.
Nesta ordem de ideias, ainda mais longe se pode ir. Por muito racional que
seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da questão.
Se
observarmos os efeitos do instinto, notaremos, em primeiro lugar, uma unidade
de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que cessam logo que a
inteligência livre substitui o instinto. Demais, reconheceremos profunda
sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades
instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante unidade de vistas não
poderia existir sem a unidade de pensamento e esta é incompatível com a
diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão
harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em todos os climas, com
uma regularidade, uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A
uniformidade no que resulta das faculdades instintivas é um fato
característico, que forçosamente implica a unidade da causa. Se a causa fosse
inerente a cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos
fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e
constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante; um efeito que
atesta sabedoria e previdência há de ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma
causa dessa natureza, sendo por força inteligente, não pode ser exclusivamente
material.
Não
se nos deparando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as qualidades
necessárias à produção de tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao
próprio Criador. Se nos reportamos à explicação dada sobre a maneira por que se
pode conceber a ação providencial (cap. II, item 24); se figurarmos todos os
seres penetrados do fluido divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a
sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos
instintivos que se efetuam para o bem de cada indivíduo. Tanto mais ativa é
essa solicitude, quanto menos recursos tem o indivíduo em si mesmo e na sua
inteligência. Por isso é que ela se mostra maior e mais absoluta nos animais e
nos seres inferiores, do que no homem.
Segundo
essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia seguro. O instinto
materno, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças
atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das suas
consequências, não devia ele ser entregue às eventualidades caprichosas da
inteligência e do livre-arbítrio. Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela
pelas suas criaturas que nascem.
16.
Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos protetores, cujo
concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas deve-se notar que
a ação desses Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as
qualidades próprias do protetor e do protegido e que em parte nenhuma apresenta
a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz Ele
próprio os cegos, porém confia a inteligências livres o cuidado de guiar os
clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade de seus atos. A missão
dos Espíritos protetores constitui um dever que eles aceitam voluntariamente e
lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma por que o desempenhem.
17.
Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente hipotéticas e
nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução
definitiva. A questão, sem dúvida, será resolvida um dia, quando se houverem
reunido os elementos de observação que ainda faltam. Até lá, temos que
limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e
esperar que a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será
decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a bondade
suprema e a suprema justiça. (Cap. II, item 19.)
18.
Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma no período inicial do seu
desenvolvimento, por vezes aquele e estas se confundem nos efeitos. Há,
contudo, entre esses dois princípios, diferenças que muito importa se
considerem.
O
instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo de certo tempo, tornar-se
inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela predominância da inteligência.
As
paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o serem as
criaturas solicitadas por uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem
principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais do que o instinto, do
organismo. O que, acima de tudo, as distingue do instinto é que são individuais
e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao
contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São úteis,
como estimulante, até a eclosão do senso moral, que faz nasça de um ser
passivo, um ser racional. Nesse momento, as paixões tornam-se não só inúteis,
como nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização retardam.
Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.
19.
O homem que constantemente só agisse pelo instinto poderia ser muito bom, mas
conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual criança que não deixasse
as andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros. Aquele que não domina
as suas paixões pode ser muito inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O
instinto se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade
podem domar-se.
Destruição dos seres
vivos uns pelos outros
20.
A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis da natureza, uma das
que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se com a Bondade de Deus.
Pergunta-se por que lhes criou Ele a necessidade de mutuamente se destruírem,
para se alimentarem uns à custa dos outros.
Para
quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão, há de isso,
com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. É que, em geral, os homens
apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe a sabedoria
pelo juízo que dela formam, pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do
que eles próprios fariam. Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem,
apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa decorrer de um mal
aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua
verdadeira essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da
Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a sabedoria providencial
e a harmonia, exatamente onde apenas vê uma anomalia e uma contradição.
21.
A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está no invólucro
corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que
preexiste e sobrevive ao corpo. Esse princípio necessita do corpo para se
desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O
corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai
dele cada vez mais forte, mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o
Espírito mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não deixa por isso
de ser Espírito. É precisamente como se um homem mudasse cem vezes no ano as
suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.
Por
meio do incessante espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco
caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida
espiritual, fazendo que a desejem como uma compensação.
Objetar-se-á:
não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os
seres vivos a se destruírem mutuamente? Desde que na sua obra tudo é sabedoria,
devemos supor que esta sabedoria não existirá mais num ponto do que noutros; se
não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento.
Contudo, podemos procurar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso,
tomando por bússola este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio.
Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos
diante do que ultrapasse o nosso entendimento.
22.
Uma primeira utilidade, que se apresenta de tal destruição, utilidade, sem
dúvida, puramente física, é esta: os corpos orgânicos só se conservam com o
auxílio das matérias orgânicas, matérias que contêm os elementos nutritivos
necessários à sua transformação. Como instrumentos de ação do princípio
inteligente, os corpos precisam ser constantemente renovados, a Providência faz
que sirvam à sua mútua manutenção. Eis por que os seres se nutrem uns dos
outros. Mas é o corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou
altere, fica apenas despojado do seu envoltório. (veja-se Revista espírita,
agosto de 1864, Extinção das raças).
23.
Há também considerações morais de ordem elevada. É necessária a luta para o
desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita suas faculdades. O que
ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar a vida usam de
habilidade e inteligência, aumentando, em consequência, suas forças
intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais
forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais;
ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará outra.
24.
Nos seres inferiores da Criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos
quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por
móvel senão a satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais
imperiosas dessas necessidades é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente
para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel
mais elevado os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se
elabora e ensaia para a vida.
No
homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas
primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por móvel a
satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o instinto
animal e o sentimento moral; luta então o homem, não mais para se alimentar,
porém, para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, a sua necessidade de
dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir.
Todavia,
à medida que o senso moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a
necessidade de destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa essa
necessidade. O homem ganha horror ao sangue.
Contudo,
a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando
a esse ponto, que nos parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito.
Só à custa de sua atividade que o Espírito adquire conhecimento, experiência e
se despoja dos últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de
sangrenta e brutal que era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra
as dificuldades, não mais contra os seus semelhantes. (23)
(23)
Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos
demonstrar, mediante essa explicação, que a destruição de uns seres vivos por
outros em nada infirma a sabedoria divina e que, nas leis da natureza, tudo se
encadeia. Esse encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do
princípio espiritual, razão por que muitas questões permanecem insolúveis, por
só se levar em conta a matéria.
As
doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição; têm
contra si não só o antagonismo em que se acham com as aspirações da
universalidade dos homens e suas consequências morais, que farão sejam elas, as
doutrinas, repelidas como dissolventes da sociedade, mas também a necessidade
que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso. O
desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das causas. Ora, por
pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a impotência do materialismo
para tudo explicar. Como é possível que doutrinas que não satisfazem ao
coração, nem a razão, nem à inteligência, que deixam problemáticas as mais
vitais questões, venham a prevalecer? O progresso das ideias matará o
materialismo, como matou o fanatismo.
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