Gênese mosaica
Os seis dias
1.
CAPÍTULO 1. — 1. No começo criou Deus o Céu e a Terra. — 2. A Terra era
uniforme e inteiramente nua; as trevas cobriam a face do abismo e o Espírito de
Deus boiava sobre as águas. — 3. Ora, Deus disse: “Faça-se a luz e a luz foi feita.”
— 4. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. — 5. Deu à luz o
nome de dia e às trevas o nome de noite e da tarde e da manhã se fez o primeiro
dia.
6.
Disse Deus também: “Faça-se o firmamento no meio das águas e que ele separe das
águas as águas.” — 7. E Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam
debaixo do firmamento das que estavam acima do firmamento. E assim se fez. — 8.
E Deus deu ao firmamento o nome de céu; da tarde e da manhã se fez o segundo
dia.
9.
Disse Deus ainda: “Reúnam-se num só lugar as águas que estão sob o céu e apareça
o elemento árido.” E assim se fez. — 10. Deus deu ao elemento árido o nome de
terra e chamou mar a todas as águas reunidas. E viu que isso estava bem. — 11.
Disse mais: “Produza a terra a erva verde que traz a semente e árvores
frutíferas que deem frutos cada um de uma espécie, e que contenham em si mesmas
as suas sementes, para se reproduzirem na terra.” E assim se fez. — 12. A terra
então produziu a erva verde que trazia consigo a sua semente, conforme a
espécie, e árvores frutíferas que continham em si mesmas suas sementes, cada uma
de acordo com a sua espécie. E Deus viu que estava bom. — 13. E da tarde e da
manhã se fez o terceiro dia.
14. Deus disse também: “Façam-se corpos de luz no firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite e sirvam de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos. — 15. Brilhem eles no firmamento do céu e iluminem a Terra.” E assim se fez. — 16. Deus então fez dois grandes corpos luminosos, um, maior, para presidir ao dia, o outro, menor, para presidir à noite; fez também as estrelas. — 17. E os pôs no firmamento do céu, para brilharem sobre a Terra. — 18. Para presidirem ao dia e à noite e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que estava bom. — 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.
20.
Disse Deus ainda: “Produzam as águas animais vivos que nadem e pássaros que
voem sobre a Terra debaixo do firmamento do céu.” —21. Deus então criou os
grandes peixes e todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram,
cada um de uma espécie, e criou também todos os pássaros, cada um de uma
espécie. Viu que estava bom. — 22. E os abençoou, dizendo: “Crescei e
multiplicai-vos e enchei as águas do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre
a Terra.” — 23. E da tarde e da manhã se fez o quinto dia.
24.
Também disse Deus: “Produza a Terra animais vivos, cada um de sua espécie, os
animais domésticos e os animais selvagens, em suas diferentes espécies.” E
assim se fez. — 25. Deus fez, pois, os animais selvagens da Terra em suas
espécies, os animais domésticos e todos os reptis, cada um de sua espécie. E
Deus viu que estava bom.
26.
Disse, em seguida: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança e que ele mande
sobre os peixes do mar, os pássaros do céu, os animais, sobre toda a Terra e
sobre todos os reptis que se movem na terra.” — 27. Deus então criou o homem à
sua imagem e o criou à imagem de Deus e o criou macho e fêmea. — 28. Deus os
abençoou e lhes disse: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a Terra e sujeitai-a,
dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu e sobre todos os
animais que se movem na terra.” — 29. Disse Deus ainda: “Dei-vos todas as ervas
que trazem sua semente à terra e todas as árvores que encerram em si mesmas
suas sementes, cada uma de uma espécie, a fim de que vos sirvam de alimento.” —
30. E dei-as a todos os animais da terra, a todos os pássaros do céu, a tudo o
que se move na terra e que é vivo e animado, a fim de que tenham com que se
alimentar. E assim se fez. — 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; eram
todas muito boas. — 32. E da tarde e da manhã se fez o sexto dia.
CAPÍTULO
2. — 1. O Céu e a Terra ficaram, pois, acabados assim, com todos os seus
ornamentos. — 2. Deus terminou no sétimo dia toda a obra que fizera e repousou
nesse sétimo dia, após haver acabado todas as suas obras. — 3. Abençoou o
sétimo dia e o santificou, porque cessara nesse dia de produzir todas as obras
que criara. — 4. Tal a origem do Céu e da Terra e é assim que eles foram criados
no dia que o Senhor fez um e outro. — 5. E que criou todas as plantas dos
campos antes que houvessem saído da terra e todas as ervas das planícies antes que
houvessem germinado. Porque o Senhor Deus ainda não tinha feito que chovesse
sobre a terra e não havia homem para lavrá-la. — 6. Mas da terra se elevava uma
fonte que lhe regava toda a superfície.
7. O
Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e lhe espalhou sobre o rosto
um sopro de vida, e o homem se tornou vivente e animado.
2.
Depois das explanações contidas nos capítulos precedentes sobre a origem e a
constituição do universo, conformemente aos dados fornecidos pela Ciência,
quanto à parte material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual, convém
ponhamos em confronto com tudo isso o próprio texto da Gênese de Moisés, a fim
de que cada um faça a comparação e julgue com conhecimento de causa. Algumas
explicações complementares bastarão para tornar compreensíveis as partes que
precisam de esclarecimentos especiais.
3.
Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância entre a Gênese mosaica
e a doutrina científica, mas fora erro acreditar que basta se substituam os
seis dias de 24 horas da Criação por seis períodos indeterminados, para se
tornar completa a analogia. Não menor erro seria o acreditar-se que, afora o
sentido alegórico de algumas palavras, a Gênese e a Ciência caminham lado a
lado, sendo uma, como se vê, simples paráfrase da outra.
4.
Notemos, em primeiro lugar, que, como já se disse (cap. VII, item 14), é
inteiramente arbitrário o número de seis períodos geológicos, pois que se eleva
a mais de vinte e cinco o das formações bem caracterizadas, número que,
ademais, apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado, em
começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no texto bíblico, numa época,
aliás, pouco distante, em que se entendia que a Ciência devia ser controlada
pela Bíblia. Essa a razão por que os autores da maior parte das teorias
cosmogônicas, tendo em vista facilitar-lhe a aceitação, se esforçaram por
pôr-se de acordo com o texto sagrado. Logo que se apoiou no método
experimental, a Ciência sentiu-se mais forte e se emancipou. Hoje, é ela que
controla a Bíblia.
Doutro
lado, a Geologia, tomando por ponto de partida unicamente a formação dos
terrenos graníticos, não abrange, no cômputo de seus períodos, o estado
primitivo da Terra. Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas,
nem com o conjunto do universo, assuntos esses que pertencem à Astronomia. Para
enquadrar tudo na Gênese, cumpre se acrescente um primeiro período, que abarque
essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar — período astronômico.
Além
disso, nem todos os geólogos consideram o diluviano como formando um período
distinto, mas como um fato transitório e passageiro, que não mudou
sensivelmente o estado climático do globo, nem marcou uma fase nova para as
espécies vegetais e animais, pois que, com poucas exceções, as mesmas espécies
se encontram, assim antes, como depois do dilúvio. Pode-se, pois, abstrair
desse período, sem menosprezo da verdade.
5. O quadro comparativo aqui abaixo, em o qual se acham resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos seis períodos, permite se considere o conjunto e se notem as relações e as diferenças que existem entre os referidos períodos e a gênese bíblica.
CIÊNCIA |
GÊNESE |
I. PERÍODO ASTRONÔMICO. Aglomeração
da matéria cósmica universal, num ponto do espaço, em nebulosa que deu
origem, pela condensação da matéria em diversos pontos, às estrelas, ao Sol,
à Terra, à Lua e a todos os planetas. Estado
primitivo, fluídico e incandescente da Terra. Atmosfera imensa, carregada de
toda a água em vapor e de todas as matérias volatilizáveis. |
1º DIA. O
Céu e a Terra. A luz. |
II. PERÍODO PRIMÁRIO. Endurecimento
da superfície da Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. Atmosfera
espessa e ardente, impenetrável aos raios solares. Precipitação gradual da
água e das matérias sólidas volatilizadas no ar. Ausência completa de vida
orgânica. |
2o DIA. O
firmamento. Separação das águas que estão acima do firmamento das que lhe
estão debaixo. |
III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO. As
águas cobrem toda a superfície do globo. Primeiros depósitos de sedimentos
formados pelas águas. Calor úmido. O Sol começa a atravessar a atmosfera brumosa.
Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição. Liquens, musgos,
fetos, licopódios, plantas herbáceas. Vegetação colossal. Primeiros animais
marinhos: zoófitos, polipeiros, crustáceos. Depósitos de hulha. |
3o DIA. As
águas que estão debaixo do firmamento se reúnem; aparece o elemento árido. A
terra e os mares. As plantas. |
IV. PERÍODO SECUNDÁRIO. Superfície
da Terra pouco acidentada; águas pouco profundas e paludosas. Temperatura
menos ardente; atmosfera mais depurada. Consideráveis depósitos de calcários
pelas águas. Vegetação menos colossal; novas espécies; plantas lenhosas;
primeiras árvores. Peixes; cetáceos; animais aquáticos e anfíbios. |
4o DIA. O
Sol, a Lua e as estrelas. |
V. PERÍODO TERCIÁRIO. Grandes
intumescimentos da crosta sólida; formação dos continentes. Retirada das
águas para os lugares baixos; formação dos mares. Atmosfera depurada;
temperatura atual produzida pelo calor solar. Gigantescos animais terrestres.
Vegetais e animais da atualidade. Pássaros. |
5o DIA.
Os peixes e os pássaros. |
DILÚVIO UNIVERSAL |
|
VI. PERÍODO QUATERNÁRIO OU PÓS-DILUVIANO. Terrenos
de aluvião. Vegetais e animais da atualidade. O homem. |
6o DIA.
Os animais terrestres. O homem. |
6.
Desse quadro comparativo, o primeiro fato que ressalta é que a obra de cada um
dos seis dias não corresponde de maneira rigorosa, como o supõem muitos, a cada
um dos seis períodos geológicos. A concordância mais notável se verifica na
sucessão dos seres orgânicos, que é quase a mesma, com pequena diferença, e no
aparecimento do homem, por último. É esse um fato importante.
Há
também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao
fato em si, na passagem em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão
debaixo do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento árido”. É a
expressão do que ocorreu no período terciário, quando as elevações da crosta
sólida puseram a descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram formar
os mares. Foi somente então que apareceram os animais terrestres, (1) segundo a
Geologia e segundo Moisés.
7.
Dizendo que a Criação foi feita em seis dias, terá Moisés querido falar de dias
de 24 horas, ou terá empregado essa palavra no sentido de período, de duração?
É mais provável a primeira hipótese, se nos ativermos ao texto acima,
primeiramente, porque esse é o sentido próprio da palavra hebraica iôm,
traduzida por dia. Depois, a referência à tarde e à manhã, como limitações de
cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha haja ele querido falar de dias
comuns. Não se pode conceber qualquer dúvida a tal respeito, estando dito, no
versículo 5: “Ele deu à luz o nome de dia e às trevas o nome de noite; e da
tarde e da manhã se fez o primeiro dia.” Isto, evidentemente, só se pode
aplicar ao dia de 24 horas, constituído de períodos de luz e de trevas. Ainda
mais preciso se torna o sentido, quando ele diz, no versículo 17, falando do
Sol, da Lua e das estrelas: “Colocou-as no firmamento do céu, para luzirem
sobre a Terra; para presidirem ao dia e à noite e para separarem a luz das
trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.”
Aliás,
tudo, na Criação, era miraculoso e, desde que se envereda pela senda dos
milagres, pode-se perfeitamente crer que a Terra foi feita em seis vezes 24
horas, sobretudo quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os povos
civilizados partilharam dessa crença, até o momento em que a Geologia surgiu a
lhe demonstrar a impossibilidade. (1) Anfíbios e insetos foram os primeiros
animais presentes no planeta, sugiram no Período Devoniano, da Era Paleozoica.
8.
Um dos pontos que mais criticados têm sido na gênese é o da criação do Sol
depois da luz. Tentaram explicá-lo, com o auxílio mesmo dos dados fornecidos
pela Geologia, dizendo que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar
carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre não permitia se
visse o Sol que, assim, efetivamente não existia para a Terra. Semelhante
explicação seria, porventura, admissível se, naquela época, já houvesse na
Terra habitantes que verificassem a presença ou a ausência do Sol. Ora, segundo
o próprio Moisés, então, somente plantas havia, as quais, contudo, não teriam
podido crescer e multiplicar-se sem o calor solar.
Há,
pois, evidentemente, um anacronismo na ordem que Moisés estabeleceu para a
criação do Sol; mas, involuntariamente ou não, ele não errou, dizendo que a luz
precedeu o Sol.
O
Sol não é o princípio da luz universal; é uma concentração do elemento luminoso
em um ponto, ou, por outra, do fluido que, em dadas circunstâncias, adquire as
propriedades luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia necessariamente de
preceder ao Sol, que é apenas um efeito. O Sol é causa, relativamente à luz que
dele se irradia; é efeito, com relação à que recebeu.
Numa
câmara escura, uma vela acesa é um pequeno sol. Que é que se fez para acender a
vela? Desenvolveu-se a propriedade iluminaste do fluido luminoso e
concentrou-se num ponto esse fluido. A vela é a causa da luz que se difunde
pela câmara; mas, se não existira o princípio luminoso antes da vela, esta não
pudera ter sido acesa.
O
mesmo se dá com o Sol. O erro provém da ideia falsa, alimentada por longo
tempo, de que o universo inteiro começou com a Terra. Daí o não compreenderem
que o Sol pudesse ser criado depois da luz.
Em
princípio, pois, a asserção de Moisés é perfeitamente exata: é falsa no fazer
crer que a Terra tenha sido criada antes do Sol. Estando, pelo seu movimento de
translação, sujeita a esse último, a Terra houve de ser formada depois dele. É
o que Moisés não podia saber, pois que ignorava a lei de gravitação. (Nota: A
lei da gravitação universal foi formulada pelo cientista inglês Isaac Newton
(1642–1727)), que concluiu: “Duas partículas se atraem com forças cuja
intensidade é diretamente proporcional ao produto de suas massas e inversamente
proporcional ao quadrado da distância que as separa.”
Com
a mesma ideia se depara na Gênese dos antigos persas. No primeiro capítulo do
Vendidad, (1) Ormuzd, (2) narrando a origem do mundo, diz: “Eu criei a luz que
foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas.” (Dicionário de mitologia universal) A
forma, aqui, é sem dúvida mais clara e mais científica do que em Moisés e não
reclama comentários.
(1) Um
dos livros do Avesta, que são os textos sagrados do Zoroastrismo. Código de
leis civis e religiosas.
(2) Aúra-Masda,
Ormasde — deus supremo da Criação; princípio do bem, da harmonia, da beleza e da
luz, na religião zoroastriana (antiga religião persa, fundada no século VII
a.C. por Zoroastro, caracterizada pelo dualismo ético, cósmico e teogônico, que
implica a luta primordial entre dois deuses, representantes do bem e do mal. O
zoroastrismo influenciou em diversos aspectos doutrinários a tradição
judaico-cristã).
9.
Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas crenças sobre a
cosmogonia. Como os do seu tempo, ele acreditava na solidez da abóbada celeste
e em reservatórios superiores para as águas. Essa ideia se acha expressa sem
alegoria, nem ambiguidade, neste passo (versículos 6 e seguintes): “Deus disse:
‘Faça-se o firmamento no meio das águas para separar das águas as águas.’ Deus
fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que
estavam por cima do firmamento.” (Veja-se: cap. V, Antigos e modernos sistemas
do mundo, itens 3 a 5.) Segundo uma crença antiga, a água era tida como o
princípio primitivo, o elemento gerador, pelo que Moisés não fala da criação
das águas, parecendo que já elas existiam. “As trevas cobriam o abismo”, isto é,
as profundezas do espaço, que a imaginação imprecisamente figurava ocupada
pelas águas e em trevas, antes da criação da luz. Eis aí por que Moisés diz: “O
Espírito de Deus era levado (ou boiava) sobre as águas.” Tida a Terra como
formada no meio das águas, era preciso insulá-la. Imaginou-se então que Deus
fizera o firmamento, uma abóbada sólida, para separar as águas de cima das que
estavam sobre a Terra.
A
fim de compreendermos certas partes da Gênese, faz-se indispensável que nos
coloquemos no ponto de vista das ideias cosmogônicas da época que ela reflete.
10.
Em face dos progressos da Física e da Astronomia, é insustentável semelhante
doutrina (1) Entretanto, Moisés atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora,
visto que elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas: ou Deus se
enganou na narrativa que fez da sua obra, ou essa narrativa não é de origem
divina. Não sendo admissível a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés
apenas exprimiu suas próprias ideias. (Cap. I, item 3.)
(1) Embora
muito grosseiro o erro de tal crença, com ela ainda se embalam presentemente as
crianças, como se se tratara de uma verdade sagrada. Só a tremer ousam os
educadores aventurar-se a uma tímida interpretação. Como quererem que isso não
venha mais tarde a fazer incrédulos?
11.
Ele se houve com mais acerto, dizendo que Deus formou o homem do limo da Terra
(1). A Ciência, com efeito, mostra (cap. X) que o corpo do homem se compõe de
elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao limo da terra.
A
mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria, aparentemente pueril, se
admitida ao pé da letra, mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar
que a mulher é da mesma natureza que o homem, que é por conseguinte igual a
este perante Deus e não uma criatura à parte, feita para ser escravizada e
tratada qual hilota. Tendo-a como saída da própria carne do homem, a imagem da
igualdade é bem mais expressiva, do que se ela fora tida como formada,
separadamente, do mesmo limo. Equivale a dizer ao homem que ela é sua igual e
não sua escrava, que ele a deve amar como parte de si mesmo.
(1)
O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão e o termo haadama, terra,
têm a mesma raiz.
12.
Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis gerais, incapazes de
apreender o conjunto e de conceber o infinito, essa criação milagrosa e
instantânea apresentava qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O
quadro do universo tirado do nada em alguns dias, por um só ato da vontade
criadora, era, para tais espíritos, o sinal mais evidente do poder de Deus. Que
configuração, com efeito, mais sublime e mais poética desse poder, do que a que
estas palavras traçam: “Deus disse: ‘Faça-se a luz e a luz foi feita!’” Deus, a
criar o universo pela ação lenta e gradual das leis da natureza, lhes houvera
parecido menor e menos poderoso. Fazia-se-lhes indispensável qualquer coisa de
maravilhoso, que saísse dos moldes comuns, do contrário teriam dito que Deus
não era mais hábil do que os homens. Uma teoria científica e racional da Criação
os deixaria frios e indiferentes.
Não
rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário, estudemo-la, como se estuda a
história da infância dos povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, e seu
sentido oculto se deve pesquisar; que se devem comentar e explicar com o
auxílio das luzes da razão e da Ciência. Fazendo, porém, ressaltar as suas
belezas poéticas e os seus ensinamentos velados pela forma imaginosa, cumpre se
lhe apontem expressamente os erros, no próprio interesse da religião. Esta será
muito mais respeitada, quando esses erros deixarem de ser impostos à fé, como
verdade, e Deus parecerá maior e mais poderoso, quando não lhe envolverem o
nome em fatos de pura invenção.
O paraíso perdido (1)
13.
CAPÍTULO 2. — 8. Ora, o Senhor Deus plantara desde o começo um jardim de delícias,
no qual pôs o homem que ele formara. — 9. O Senhor Deus também fizera sair da
terra toda espécie de árvores belas ao olhar e de fruto agradável ao paladar e,
no meio do paraíso, (2) a árvore da vida, com a árvore da ciência do bem e do
mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra [min haadama] toda árvore bela de
ver-se e boa para comer-se e a árvore da vida [vehetz hachayim] no meio do
jardim e a árvore da ciência do bem e do mal.)
15.
O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou em o paraíso de delícias, a fim de
que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse:
“Come de todas as árvores do paraíso.” (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem [hal
haadam] dizendo: “De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas
absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto, logo que
o comeres, morrerás com toda a certeza.” (E da árvore do bem e do mal [oumehetz
hadaat tob vara] não comerás, pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
(1) Em
seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto hebreu,
exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta
assim mais claramente.
(2) Paraíso,
do latim paradīsus, derivado do
grego: paradeisos, jardim, vergel,
lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado em Gênesis é hagan, que tem a mesma significação.
14.
CAPÍTULO 3. — 1. Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais que o
Senhor Deus formara na Terra. E ela disse à mulher: “Por que vos ordenou Deus
que não comêsseis os frutos de todas as árvores do paraíso?” (E a serpente [nâhâsch]
era mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim havia feito;
ela disse à mulher [el haïscha]: “Terá dito Eloim: ‘Não comereis de nenhuma árvore
do jardim?’”) — 2. A mulher respondeu: “Comemos dos frutos de todas as árvores
que estão no paraíso.” (Disse ela, a mulher, à serpente: “Do fruto (miperi) das árvores do jardim podemos comer.)
— 3. Mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do paraíso, Deus nos
ordenou que não comêssemos dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos
o perigo de morrer.” — 4. A serpente replicou à mulher: “Certamente não
morrereis. — 5. Mas é que Deus sabe que, assim houverdes comido desse fruto,
vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.”
6. A
mulher considerou então que o fruto daquela árvore era bom de comer; que era
belo e agradável à vista. E, tomando dele, o comeu e o deu a seu marido, que
também comeu. (Ela viu, a mulher, que ela era boa, a árvore como alimento, e
que era desejável a árvore para compreender [léaskil], e tomou de seu fruto
etc.)
8. E
como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à tarde pelo jardim, quando
sopra um vento brando, eles se retiraram para o meio das árvores do paraíso, a
fim de se ocultarem de diante da sua face.
9.
Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: “Onde estás?” — 10. Adão lhe
respondeu: “Ouvi a tua voz no paraíso e tive medo, porque estava nu, essa a
razão por que me escondi.” — 11. O Senhor lhe retrucou: “E como soubeste que
estavas nu, senão porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que comêsseis?”
— 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste por companheira me apresentou o
fruto dessa árvore e eu dele comi.” — 13. O Senhor Deus disse à mulher: “Por
que fizeste isso?” Ela respondeu: “A serpente me enganou e eu comi desse
fruto.”
14.
Então, o Senhor Deus disse à serpente: “Por teres feito isso, serás maldita entre
todos os animais e todas as bestas da terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás
a terra por todos os dias de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a
mulher, entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás morder-lhe
o calcanhar.”
16.
Deus disse também à mulher: “Afligir-te-ei com muitos males durante a tua
gravidez; parirás com dor; estarás sob a dominação de teu marido e ele te dominará.”
17.
Disse em seguida a Adão: “Por haveres escutado a voz de tua mulher e haveres
comido do fruto da árvore de que te proibi que comesses, a terra te será maldita
por causa do que fizeste e só com muito trabalho tirarás dela com que te
alimentes, durante toda a tua vida. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e
te alimentarás com a erva da terra. — 19. E comerás o teu pão com o suor do teu
rosto, até que voltes à terra donde foste tirado, porque és pó e em pó te tornarás.”
20.
E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa “a vida”, porque ela era a
mãe de todos os viventes.
21.
O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher vestiduras de peles com que os
cobriu. — 22. E disse: “Eis aí, Adão feito um de nós, sabendo o bem e o mal.
Impeçamos, pois, agora, que ele deite a mão à árvore da vida, que também tome
do seu fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente.” (Ele disse, Jeová
Eloim: “Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento do bem e do mal;
agora ele pode estender a mão e tomar da árvore da vida [veata pen ischlachyado
velakach mehetz hachayim]; comerá dela e viverá eternamente.”)
23.
O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de que fosse trabalhar no
cultivo da terra donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins
diante do jardim de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para
guardarem o caminho que levava à árvore da vida.
15.
Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos ativermos à forma, a alegoria
oculta frequentemente as maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à
primeira vista, do que a de Saturno, o deus que devorava pedras, tomando-as por
seus filhos? Todavia, que de mais profundamente filosófico e verdadeiro do que
essa figura, se lhe procuramos o sentido moral! Saturno é a personificação do
tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de tudo o que existe;
mas, também, tudo se destrói com o tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo
da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto que se formaram
com o tempo. E quem, segundo essa mesma alegoria, escapa a semelhante
destruição? Somente Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio
espiritual, que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem, que, na
linguagem moderna, sem alusão à fábula antiga, se diz, de uma coisa que afinal
se deteriorou, ter sido devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda
a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade, do que um vasto quadro
alegórico das diversas faces, boas e más, da humanidade. 130Nota de Allan
Kardec: Do hebreu cherub, keroub, boi, charab, lavrar; anjos do segundo coro da
primeira hierarquia, que eram representados com quatro asas, quatro faces e pés
de boi. Para quem lhe busca o espírito, é um curso completo da mais alta
filosofia, como acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em tomarem a
forma pelo fundo.
16.
Outro tanto se dá com a Gênese, onde se tem que perceber grandes verdades
morais debaixo das figuras materiais que, tomadas ao pé da letra, seriam tão
absurdas como se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as cenas e
os diálogos atribuídos aos animais.
Adão
personifica a humanidade; sua falta individualiza a fraqueza do homem, em quem
predominam os instintos materiais a que ele não sabe resistir. (1)
A
árvore, como árvore de vida, é o emblema da vida espiritual; como árvore da
Ciência, é o da consciência, que o homem adquire, do bem e do mal, pelo
desenvolvimento da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual ele
escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a alma do homem, deixando de
ser guiada unicamente pelos instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na
responsabilidade dos seus atos.
O
fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais do homem; é a alegoria
da cobiça e da concupiscência; concretiza, numa figura única, os motivos de
arrastamento ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue no meio
do jardim de delícias, para mostrar que a sedução está no seio mesmo dos
prazeres e para lembrar que, se dá preponderância aos gozos materiais, o homem
se prende à Terra e se afasta do seu destino espiritual. (2)
A
morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe faz, é um
aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação
das Leis divinas que Deus lhe gravou na consciência. É por demais evidente que
aqui não se trata da morte corporal, pois que, depois de cometida a falta, Adão
ainda viveu longo tempo, mas sim da morte espiritual, ou, por outras palavras,
da perda dos bens que resultam do adiantamento moral, perda figurada pela sua
expulsão do jardim de delícias.
(1) Está
hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam não é um nome
próprio, mas significa o homem em geral, a humanidade, o que destrói toda a
estrutura levantada sobre a personalidade de Adão.
(2) Em
nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só se encontra nas
versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções
que em francês, sem determinação de espécie e pode ser tomado em sentido material,
moral, alegórico, em sentido próprio e figurado. Para os israelitas, não há
interpretação obrigatória; quando uma palavra tem muitas acepções, cada um a
entende como quer, contanto que a interpretação não seja contrária à gramática.
O termo peri foi traduzido em latim por malum, que se aplica tanto à maçã, como
a qualquer espécie de frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo melo,
interessar, cuidar, atrair.
17.
A serpente está longe hoje de ser tida como tipo da astúcia. Ela, pois, entra
aqui mais pela sua forma do que pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos
maus conselhos, que se insinuam como a serpente e da qual, por essa razão, o
homem, muitas vezes, não desconfia. Ademais, se a serpente, por haver enganado
a mulher, é que foi condenada a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á
deduzir que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, não era serpente.
Por que, então, se há de impor à fé ingênua e crédula das crianças, como
verdades, tão evidentes alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz
que mais tarde venham a considerar a Bíblia um tecido de fábulas absurdas?
Deve-se,
além disso, notar que o termo hebreu nâhâsch, traduzido por serpente, vem da
raiz nâhâsch, que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas,
podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com esta acepção, ele é
encontrado na própria Gênesis, 44:5 e 15, a propósito da taça que José mandou
esconder no saco de Benjamim: “A taça que roubaste é a em que meu Senhor bebe e
de que se serve para adivinhar (nâhâsch) (1). — Ignoras que não há quem me
iguale na ciência de adivinhar (nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há
encantamentos (nâhâsch) em Jacó, nem adivinhos em Israel.” Daí o haver a palavra
nâhâsch tomado também a significação de serpente, réptil que os encantadores
tinham a pretensão de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A
palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na versão dos Setenta — os quais,
segundo Hutcheson, corromperam o texto hebreu em muitos lugares — versão essa
escrita em grego antes do segundo século da Era Cristã. As suas inexatidões
resultaram, sem dúvida, das modificações que a língua hebraica sofrera no
intervalo transcorrido, porquanto o hebreu do tempo de Moisés era uma língua
morta, que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo e o árabe
literário diferem do grego e do árabe modernos (2).
É,
pois, provável que Moisés tenha apresentado como sedutor da mulher o desejo de
conhecer as coisas ocultas, suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que concorda
com o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por outro lado, com
estas palavras: “Deus sabe que, logo que houverdes comido desse fruto, vossos
olhos se abrirão e sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável a
árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.” Não se deve esquecer
que Moisés queria proscrever de entre os hebreus a arte da adivinhação
praticada pelos egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles
interrogassem os mortos e o Espírito Píton. (O céu e o inferno, cap. XI.)
(1) Deste
fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade pelo copo de
água? (Revista espírita, junho de 1868)
(2) O
termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de negro,
provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos e da adivinhação.
Talvez também por isso é que as esfinges, de origem assíria, eram representadas
por uma figura de negro.
18.
A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à tarde, quando se levanta
vento brando”, é uma imagem ingênua e um tanto pueril, que a crítica não deixou
de assinalar; mas nada tem que surpreenda, se nos reportamos à ideia que os
hebreus dos tempos primitivos faziam de Deus. Para aquelas inteligências
frustas, incapazes de conceber abstrações, Deus havia de ter uma forma concreta
e eles tudo referiam à humanidade, como único ponto que conheciam. Moisés, por
isso, lhes falava como a crianças, por meio de imagens sensíveis. No caso de
que se trata, tem-se personificada a Potência Soberana, como os pagãos
personificavam, em figuras alegóricas, as virtudes, os vícios e as ideias
abstratas. Mais tarde, os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo modo que
a criança, tornada adulta, procura o sentido moral dos contos com que a
acalentaram. Deve-se, portanto, considerar essa passagem como uma alegoria, figurando
a Divindade a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue
a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do eterno Deus, percorrendo o jardim, do
lado donde vem o dia.”
19.
Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido um fruto, essa falta
não poderia, incontestavelmente, pela sua natureza quase pueril, justificar o
rigor com que foi punida. Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o
fato seja qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos Deus, considerando-o
irremissível crime, a condenar a sua própria obra, pois que Ele criara o homem
para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar no
fruto da árvore e com ela se houvesse conformado escrupulosamente, onde estaria
a humanidade e que teria sido feito dos desígnios do Criador?
Deus
não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra; a prova disso está nas
próprias palavras que lhes dirige logo depois de os ter formado, quando eles
ainda estavam no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: ‘Crescei e
multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.’”
(Gênesis,1:28.) Uma vez que a multiplicação era lei já no paraíso terrenal, a
expulsão deles dali não pode ter tido como causa o fato suposto.
O
que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de vergonha que Adão e Eva
manifestaram ante o olhar de Deus e que os levou a se ocultarem. Mas essa
própria vergonha é uma figura por comparação: simboliza a confusão que todo
culpado experimenta em presença de quem foi por ele ofendido.
20.
Qual, então, em definitivo, a falta tão grande que mereceu acarretar a
reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o
fratricida, não foi tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir
logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram dentro de um círculo
vicioso.
Sabemos
hoje que essa falta não é um ato isolado, pessoal, de um indivíduo, mas que
compreende, sob um único fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a
humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se culpada e que se resumem
nisto: infração da Lei de Deus. Eis por que a falta do primeiro homem,
simbolizando este a humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
21.
Dizendo a Adão que ele tiraria da terra a alimentação com o suor de seu rosto,
Deus simboliza a obrigação do trabalho; mas por que fez do trabalho uma
punição? Que seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse pelo
trabalho? Que seria da Terra, se não fosse fecundada, transformada, saneada
pelo trabalho inteligente do homem?
Lá
está dito (Gênesis, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda não havia feito chover sobre
a Terra e não havia nela homens que a cultivassem. O Senhor formou então, do
limo da Terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas destas outras: “Enchei a
Terra”, provam que o homem, desde a sua origem, estava destinado a ocupar toda
a Terra e a cultivá-la, assim como, ademais, que o paraíso não era um lugar
circunscrito a um canto do globo. Se a cultura da Terra houvesse de ser uma
consequência da falta de Adão, seguir-se-ia que, se Adão não tivesse pecado, a
Terra permaneceria inculta e os desígnios de Deus não se teriam cumprido.
Por
que disse ele à mulher que, em consequência de haver cometido a falta, pariria
com dor? Como pode a dor do parto ser um castigo, quando é um efeito do
organismo e quando está provado que é uma necessidade fisiológica? Como pode
ser punição uma coisa que se produz segundo as leis da natureza? É o que os
teólogos absolutamente ainda não explicaram e que não poderão explicar,
enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se colocaram. Entretanto,
podem justificar-se aquelas palavras que parecem tão contraditórias.
22.
Notemos, antes de tudo, que, se no momento de serem criados os dois, as almas
de Adão e Eva tivessem vindo do nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser
bisonhos em todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer. Estando
sós na Terra, como estavam, enquanto viveram no paraíso, não tinham assistido à
morte de ninguém. Como, então, teriam podido compreender em que consistia a
ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como teria Eva podido compreender que
parir com dor seria uma punição, visto que, tendo acabado de nascer para a
vida, ela jamais tivera filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum
sentido, portanto, deviam ter, para Adão e Eva, as palavras de Deus. Mal
surgidos do nada, eles não podiam saber como nem por que haviam surgido dali;
não podiam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição que lhes era
feita. Sem nenhuma experiência das condições da vida, pecaram como crianças que
agem sem discernimento, o que ainda mais incompreensível torna a terrível
responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e sobre a humanidade inteira.
23.
Entretanto, o que constitui para a Teologia um beco sem saída, o Espiritismo o
explica sem dificuldade e de maneira racional, pela anterioridade da alma e
pela pluralidade das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia na
vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão e Eva já tivessem vivido e tudo
logo se justifica: Deus não lhes fala como a crianças, mas como a seres em
estado de o compreenderem e que o compreendem, prova evidente de que ambos
trazem aquisições anteriormente realizadas. Admitamos, ademais, que hajam
vivido em um mundo mais adiantado e menos material do que o nosso, onde o
trabalho do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado contra
a Lei de Deus, figurada na desobediência, tenham sido afastados de lá e
exilados, por punição, para a Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é
constrangido a um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus assistia razão
para lhes dizer: “No mundo onde, daqui em diante, ides viver, cultivareis a
terra e dela tirareis o alimento, com o suor da vossa fronte”; e, à mulher:
“Parirás com dor”, porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI, item 31 e
seguintes.)
O
paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente procurados na Terra,
era, por conseguinte, a figura do mundo ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a
raça dos Espíritos que ele personifica. A expulsão do paraíso marca o momento
em que esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo terráqueo e
a mudança de situação foi a consequência da expulsão. O anjo que, empunhando
uma espada flamejante, veda a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em
que se acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos
superiores, antes que o mereçam pela sua depuração. (Veja-se, adiante, o cap.
XIV, itens 8 e seguintes.)
24. Caim,
depois do assassínio de Abel, responde ao Senhor: “A minha iniquidade é
extremamente grande, para que me possa ser perdoada. — 14. Vós me expulsais
hoje de cima da Terra e eu me irei ocultar da vossa face. Irei fugitivo e
vagabundo pela Terra e qualquer um então que me encontre matar-me-á.” — 15. O
Senhor lhe respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto severamente punido será
quem matar Caim.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim, a fim de que não o
matassem os que viessem a encontrá-lo. 16. Tendo-se retirado de diante do
Senhor, Caim ficou vagabundo pela Terra e habitou a região oriental do Éden. —
17. Havendo conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Enoque. Ele construiu
(vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade a que chamou Enoque
(Enoquia) do nome de seu filho. (Gênesis, 4:13 a 16.)
25.
Se nos apegarmos à letra da Gênese, eis as consequências a que chegaremos: Adão
e Eva estavam sós no mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só
posteriormente tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se Caim retirado
para outra região depois de haver assassinado o irmão, não tornou a ver seus
pais, que de novo ficaram isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e
trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou Set, depois
desse nascimento, ele ainda viveu, segundo a genealogia bíblica, oitocentos
anos, e teve mais filhos e filhas.
Quando,
pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden, somente havia na Terra três
pessoas: seu pai e sua mãe, e ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve
mulher e um filho. Que mulher podia ser essa e onde pudera ele desposá-la? O
texto hebreu diz: Ele estava construindo uma cidade e não: ele construiu, o que
indica ação presente e não ulterior.
Mas
uma cidade pressupõe a existência de habitantes, visto não ser de presumir que
Caim a fizesse para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar
sozinho. Dessa própria narrativa, portanto, se tem de inferir que a região era povoada.
Ora, não podia sê-lo pelos descendentes de Adão, que então se reduziam a um só:
Caim.
Aliás,
a presença de outros habitantes ressalta igualmente destas palavras de Caim:
“Serei fugitivo e vagabundo e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da
resposta que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e que utilidade
teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo de ser morto, uma vez que ele a
ninguém iria encontrar? Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de
Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se deduz esta
consequência, tirada do texto mesmo do Gênesis: Adão não é nem o primeiro, nem o
único pai do gênero humano. (Cap. XI, item 34.) (1)
(1) Não
é nova esta ideia. La Peyrère, sábio teólogo do século XVII, em seu livro Preadamitas,
escrito em latim e publicado em 1655, extraiu do texto original da Bíblia,
adulterado pelas traduções, a prova evidente de que a Terra era habitada antes
da vinda de Adão e essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.
26.
Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo ministrou acerca das
relações do princípio espiritual com o princípio material, acerca da natureza
da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união
com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através de sucessivas
existências e através dos mundos, que são outros tantos degraus da senda do
aperfeiçoamento, acerca da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante
o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores bons ou maus e de suas
aptidões, do fenômeno do nascimento e da morte, da situação do Espírito na
erraticidade e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por se
melhorar e da sua perseverança no bem, para que se fizesse luz sobre todas as
partes da Gênese espiritual.
Graças
a essa luz, o homem sabe doravante donde vem, para onde vai, por que está na
Terra e por que sofre. Sabe que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do
seu cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida da alegoria acanhada
e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta grande e digna da majestade, da bondade
e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela confundirá a
incredulidade e triunfará.
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