A
Doutrina Espírita teve seu início em 18 de abril de 1857 com o lançamento, em
Paris, de O Livro dos Espíritos, obra filosófica dessa doutrina e que apresenta
os seus postulados.
Os
livros básicos que estudam a proposta da Doutrina Espírita são: O Livro dos
Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o
Inferno e A Gênese.
No Brasil, sob a psicografia do médium Francisco Cândido Xavier, vieram à lume mais de 400 obras espíritas, a partir de 1932, com assuntos científicos, filosóficos, mensagens evangélicas, contos, poemas, romances etc.
No
entanto, muito antes da consagração do médium Chico Xavier, o Espiritismo
surgia no Brasil com obras romanescas traduzidas, juntamente com as obras
básicas de Allan Kardec.
Tem-se
notado uma grande preocupação por parte de alguns Espíritas em relação à literatura
romanesca. Percebe-se a crescente atenção do mercado livreiro nessa modalidade,
que nem sempre se importa com a qualidade doutrinária dos enredos. Há um receio
de que com o interesse comercial pela publicação dessas obras, percam seu
objetivo de produtoras de conhecimento espírita para se reduzirem a divulgação
rápida de ideias superficiais.
Além disso, os romances sofrem uma certa discriminação por parte dos adeptos do espiritismo. Alguns argumentam que os espiritistas deveriam ler somente livros que abordem diretamente a questão científica do espiritismo. Outros dizem ser perda de tempo a leitura de romances, por serem longos e de pouco aproveitamento, que só servem para o lazer e o entretenimento, dentre outros argumentos.
Partindo
dessa questão em relação aos romances, procurou-se pesquisar em uma dessas
obras se haveria em seu bojo, a questão doutrinária, mesmo tratando-se da
categoria romance psicográfico.
Elegeu-se
o romance Renúncia, ditado ao médium Chico Xavier pelo Espírito Emmanuel, em
1944, por tratar-se de médium e Espírito sérios. Esse livro apresenta a
história de Alcione, um Espírito considerado superior em relação aos demais
Espíritos do planeta. Embora já tenha cumprido suas etapas reencarnatórias na
Terra esse Espírito decide reencarnar mais uma vez para auxiliar seus entes
queridos que não alcançaram a mesma evolução.
Assim,
procurou-se selecionar algumas passagens do romance que possam ser
identificadas como mensagens doutrinárias, visando o aprimoramento moral da
humanidade.
Relações entre o
romance e a doutrina espírita
Em O
Livro dos Espíritos, no capítulo IV, cujo título é a Pluralidade das
Existências, Kardec pergunta aos Espíritos na questão 172: As nossas diversas
existências corporais se verificam todas na Terra? E eles respondem: Não;
vivemo-las em diferentes mundos.
Essa
resposta pode ser corroborada na primeira parte do romance Renúncia, quando o
autor nos permite acompanhar os passos de Alcione:
Pouco
depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em magnificência e
grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas excedia a tudo que
pudesse caracterizar a beleza, no sentido humano. A sagrada visão do conjunto
permanecia muito além da famosa cidade dos santos, idealizada pelos pensadores
do Cristianismo. (…). Primorosas construções, engalanadas de flores
indescritíveis, tomavam a forma de castelos talhados em filigranas douradas,
com irradiações de efeitos policromos. Seres alados, iam e vinham obedecendo a
objetivos santificados, num trabalho de natureza superior, inacessível à
compreensão dos terrícolas. (Xavier/Emmanuel, 1985, p.26).
Kardec
também pergunta aos Espíritos se haveria alguma vantagem em voltar-se a habitar
a Terra. Os Espíritos respondem que não, a menos que seja em missão. Isso vem
ao encontro da intenção de Alcione em querer voltar à Terra para auxiliar seus
entes queridos, como missão, já que não teria mais nada a expiar.
Quase
todos os meus companheiros bem-amados, no esforço evolutivo de outras eras,
estão atualmente no Planeta, mas, em sua generalidade, envenenados por
consequências sinistras de oportunidades menosprezadas e perdidas. Às vezes,
suas queixas dolorosas e aflitivas me repercutem penosamente n’alma, ouço-lhes
as preces ansiosas e nossos cooperadores nos fluidos pesados do orbe me enviam mensagens
que são verdadeiros brados de socorro, aos quais não posso ficar insensível,
por mais que me procure confugir à perfeita confiança no Todo-Poderoso. (ibid,
p.28).
A história de Alcione se passa na Europa do
século XVII. Em 1681 encontra-se com 17 anos.
Familiarizada
com a música, toca cravo e é a primeira no coro da catedral da cidade. Artista
por temperamento, tem também de forma preponderante o pendor religioso, era
realmente uma jovem muito talentosa.
Nessa
passagem da história é possível estabelecer relação com a atividade da
personagem em outro planeta, a música, citada no início da obra.
Esse
comportamento está de acordo com o que responderam os Espíritos a Kardec,
quando perguntado, na questão 219 sobre a origem das faculdades extraordinárias
dos indivíduos que, sem estudo prévio, parecem ter a intuição de certos
conhecimentos, o das línguas, do cálculo, por exemplo. Ao que os Espíritos
respondem: “Lembrança do passado; progresso anterior da alma, mas de que ela
não tem consciência. O corpo muda, o Espírito, porém, não muda, embora troque
de roupagem.
Além
do talento musical, em seu comportamento, Alcione nunca teve uma palavra de
superioridade jactanciosa, jamais se desinteressou dos trabalhos domésticos em
suas mínimas facetas.
Como
filha, era um modelo de virtude familiar; como discípula, tivera o louvor de
todos os preceptores pela aplicação irrepreensível aos estudos; como amiga, era
sempre companheira afável e carinhosa, pronta a cooperar nas situações mais
difíceis, com a sabedoria do amor fraternal. Na intimidade do Evangelho sabia
expressar-se com alegria. O exemplo de Jesus era aplicado em cada caso, precisa
e logicamente. (Xavier/Emmanuel, 1985, p.240)
Tratando-se
de um Espírito Superior, tudo era espontâneo, percebendo em si a presença
permanente do Mestre em seu caminho, sentindo-lhe a companhia divina, qual
Amigo invisível a lhe medir cada passo, cheio de compreensão e de júbilo.
Algumas
expressões de Alcione:
(…)
o dever não pode, jamais, tornar-se um fantasma aos nossos olhos. Deus semeou a
criação de infinita alegria e nós estamos no divino trabalho de acendramento
espiritual. Toda obrigação nobre embeleza o caminho e não devemos andar tristes
na tarefa grandiosa ou simples, que nos foi confiada. (ibid, p. 254).
Na
certeza da vida espiritual repetia conceitos evangélicos como bálsamos aos
problemas diários: “Para o nosso conceito de paz e felicidade, são quase
mesquinhos os períodos de tempo que assinalam, na Terra, a infância, a
juventude e a velhice. Somos espíritos eternos. ” (ibid, p. 254).
No
capítulo III de O Livro dos Espíritos, na segunda parte que trata das leis
morais, encontra-se a explicação do trabalho como uma lei.
Dizem
os Espíritos que o trabalho é Lei da Natureza, por isso mesmo que constitui uma
necessidade. Trabalho no sentido de toda ocupação útil. Lembram-nos, os
Espíritos, que tudo na Natureza trabalha e que o trabalho do homem visa a duas
finalidades principais: a conservação do corpo e o desenvolvimento da faculdade
de pensar. Eles ainda reforçam que Deus quer que cada um seja útil, de acordo
com as suas faculdades.
No
livro Renúncia esse assunto é muito bem-posto pela personagem em uma de suas
falas:
O
dia de hoje terminará com a noite. É preciso honrá-lo com o trabalho sadio e
com a obediência a Deus, para que o amanhã seja o presente glorificado. Ninguém
deverá aguardar a claridade do porvir, se se compraz em repouso nas trevas,
durante o dia que passa. (…) Se Deus nos honrou com os trabalhos, não nos
esquecerá com os recursos da paz necessária ao cumprimento do dever. (Xavier/Emmanuel,
1985, p. 258 e 263).
A
questão doutrinária do livro Renúncia aparece nos diálogos mais
despretensiosos, mas ricos de ensinamento. Quando a patroa de Alcione a mandou
lavar as roupas da casa, Beatriz, filha dos donos da casa, ficou indignada com
essa atitude da mãe, e Alcione dialogou com ela o seguinte:
Então,
Beatriz, consideras a limpeza da roupa como serviço pesado? Não penses assim.
Deve ser muito sagrado, para todos nós, o asseio das coisas caseiras.
(…)
– No entanto, sempre ouvi dizer que cada serviçal deve estar no seu lugar,
objetou a menina.
– E
não erras, pensando assim, mas essa verdade não impede o dever de ampliarmos
nossas experiências em todo e qualquer trabalho honesto. Não estimas tanto as
lições de Jesus? Pois no Cristo encontramos o verdadeiro ânimo de trabalho. O
Mestre Divino nunca se ausentou do lugar sublime que lhe compete na Criação e,
no entanto, carpintejou na modesta oficina de Nazaré; exegeta da Lei, perante
os doutores de Jerusalém, serviu vinho da amizade nas bodas de Caná; médico da
sogra de Pedro, enfermeiro dos paralíticos, guia de cegos, amigo das crianças,
mas também lacaio dos discípulos, quando lhes lavou os pés, no cenáculo. E nada
obstante o contraste e a diversidade de tantas tarefas, Jesus não deixou de ser
o nosso Salvador, em todos os momentos. (ibid, p. 322)
Nos
questionamentos da protagonista da história encontra-se a reflexão necessária
quanto à proposta de Jesus na Terra, de acordo com a Doutrina Espírita: “Será
que Jesus peregrinou pela Terra somente para que o admirássemos? Teria sido
escrito o Evangelho apenas para que os homens encontrassem nas suas páginas
motivos de apologias brilhantes?” (ibid, p.310)
É de
conhecimento Espírita a importância de se realizar o “evangelho no lar” pelo
menos uma vez por semana. Na obra citada, Alcione discorre sobre sua eficácia
Não
há que olvidar a necessidade de estabelecer o culto do Senhor, dentro de nós
mesmos. (…) o lar é o templo mais nobre, porque oferece oportunidade diária de
esforço e adoração. Cada criatura de nossa convivência, sob o mesmo teto,
representa um altar para o culto da bondade, do carinho, da compreensão. Cada
borrasca doméstica é um ensejo para a distribuição de esperança e fé. Cada dia
afanoso enseja possibilidades de testemunhar confiança em Deus. (ibid, p. 326)
Em
todos os diálogos da protagonista, o Evangelho é o foco principal:
…
não devemos acreditar que o Cristo só haja trazido ao mundo a palavra
revigoradora e afetuosa, senão também um roteiro de trabalho, que é preciso
conhecer e seguir, em que pesem às maiores dificuldades. Para isso é
indispensável tomar os nossos sentimentos e raciocínios como campo de
observação e experiência, trabalhando diariamente com Jesus na construção da
arca íntima da nossa fé. (ibid, p.331)
Alcione
acrescenta uma mensagem emblemática para todos os leitores: “A mensagem do
Cristo precisa ser conhecida, meditada, sentida e vivida. Nesta ordem de
aquisições, não basta estar informado. ” (ibid, p. 333)
Além
de Alcione, os diálogos da personagem do Padre Damiano enfatizam as questões
propostas pelo espiritismo, principalmente em relação à morte e à reencarnação.
A
morte não existe como a entendemos. O que se verifica, apenas, é uma
transmutação da vida. Os teólogos suprimiriam a chave simples das nossas
crenças. Quando o corpo é reclamado pelo sepulcro, o Espírito volta à pátria de
origem, e como a Natureza não dá saltos, as almas que alimentam aspirações
puramente terrestres continuam no ambiente do mundo, embora sem o revestimento
do corpo carnal. Desde a mais remota antiguidade, os homens se comunicaram com
os seus semelhantes já mortos. (ibid, p. 197)
Nossa
época não comporta a divulgação das supremas verdades, mas nós nascemos e
renascemos. A vida é uma só; entretanto, as experiências são diversas. O
próprio Jesus declarou aos mentores de Israel que não era possível atingir o
Reino de Deus sem renascer de novo. Inferno ou purgatório são estados do
espírito em tribulação por faltas graves, ou em vias de penitência
regeneradora. (ibid, p.198).
Diálogos
como esses que entremeiam a narração das histórias das personagens,
caracterizam o aspecto doutrinário do romance.
Considerações finais
A
Doutrina Espírita, codificada por Allan Kardec em 1857 tem caráter educativo.
Sendo assim, o objetivo do espiritismo é a educação do Espírito, quer esteja
encarnado (dentro de um corpo de carne, material), quer esteja desencarnado (na
região espiritual). Portanto, toda obra caracterizada por espírita, deve
apresentar o mesmo caráter.
Nesta
obra em especial é possível perceber a preocupação do autor espiritual em
narrar histórias que, embora tenha acontecido no século XVII, são histórias da
humanidade com seus caracteres humanos de imperfeição, mas também de
aprendizado evolutivo.
Alcione
consegue transitar por várias situações em sua existência cumprindo um plano
traçado antes de sua encarnação, com o objetivo de auxiliar a evolução de todos
que estão ligados à sua história.
Percebe-se
sempre em seus diálogos a presença do evangelho vivo de Jesus, no serviço, nas
virtudes desempenhadas e no exemplo de vida da jovem Alcione.
Lembrando
que as parábolas deixadas por Jesus são histórias de fundo moral, ricas de
ensinamentos, pode-se constatar que o livro pesquisado possui o mesmo
propósito.
O
gênero romanesco de leitura apresenta uma forma leve, atrativa e, aparentemente
despretensiosa, mas, em seu bojo, carrega a questão doutrinária e, por isso,
deve ser dada a merecida atenção a esse tipo de literatura no meio espírita.
Com
isso conclui-se que um romance pode sim, ser considerado obra doutrinária,
desde que, em sua avaliação essa proposta esteja clara e concisa.
Espera-se,
com esse trabalho contribuir com a discussão entre os Espíritas sobre o que se
deve ou não ler em nome do espiritismo e ainda, suscitar outras pesquisas nesse
sentido, o que só viria a enriquecer a proposta espírita, sempre educativa.
Referência
KARDEC,
A. O Livro dos Espíritos trad. Guillon Ribeiro, 93. ed. Brasília: FEB, 2013.
_________ O Evangelho Segundo o Espiritismo
trad. J. Herculano Pires, 73.ed. São Paulo: LAKE, 2014.
XAVIER,
Chico/Emmanuel Renúncia, 15. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1985.
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