Gênese orgânica
Formação primária dos
seres vivos
1.
Tempo houve em que não existiam animais; logo, eles tiveram começo. Cada
espécie foi aparecendo, à proporção que o globo adquiria as condições
necessárias à existência delas. Isto é positivo. Como se formaram os primeiros
indivíduos de cada espécie? Compreende-se que, existindo um primeiro casal, os
indivíduos se multiplicaram. Mas, esse primeiro casal, donde saiu? É um desses
mistérios que entendem com o princípio das coisas e sobre os quais apenas se
podem formular hipóteses. A Ciência ainda não pode resolver o problema; pode
entretanto, pelo menos, encaminhá-lo para a solução.
2. É
esta a questão primordial que se apresenta: cada espécie animal saiu de um
casal primitivo ou de muitos casais criados, ou, se o preferirem, germinados
simultaneamente em diversos lugares? Esta última suposição é a mais provável.
Pode-se mesmo dizer que ressalta da observação. Com efeito, o estudo das
camadas geológicas atesta, nos terrenos de idêntica formação, e em proporções
enormes, a presença das mesmas espécies em pontos do globo muito afastados uns dos
outros. Essa multiplicação tão generalizada e, de certo modo, contemporânea,
fora impossível com um único tipo primitivo.
Doutro
lado, a vida de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo nascente, está sujeita
a tantas vicissitudes, que toda uma criação poderia ficar comprometida, sem a
pluralidade dos tipos, o que implicaria uma imprevidência inadmissível da parte
do Criador supremo. Aliás, se, num ponto, um tipo se pode formar, em muitos
outros pontos ele se poderia formar igualmente, por efeito da mesma causa.
Tudo,
pois, concorre a provar que houve criação simultânea e múltipla dos primeiros
casais de cada espécie animal e vegetal.
3. A formação dos primeiros seres vivos se pode deduzir, por analogia, da mesma lei em virtude da qual se formaram e formam todos os dias os corpos inorgânicos. À medida que se aprofunda o estudo das leis da natureza, as engrenagens que, de início, pareciam tão complicadas se vão simplificando e confundindo na grande lei de unidade que preside a toda a obra da criação. Isso se compreenderá melhor, quando estiver compreendida a formação dos corpos inorgânicos, que é o degrau primário daquela outra.
4. A
Química considera elementares umas tantas substâncias, como o oxigênio, o
hidrogênio, o azoto, o carbono, o cloro, o iodo, o flúor, o enxofre, o fósforo
e todos os metais. Combinando-se, elas formam os corpos compostos: os óxidos,
os ácidos, os álcalis, os sais e as inúmeras variedades que resultam da
combinação destes.
A
combinação de dois corpos para formar um terceiro exige especial concurso de
circunstâncias: seja um determinado grau de calor, de sequidão, ou de umidade;
seja o movimento ou o repouso; seja uma corrente elétrica etc. Se essas
circunstâncias não se verificarem, a combinação não se operará.
5.
Quando há combinação, os corpos componentes perdem suas propriedades
características, enquanto o composto que deles resulta adquire outras,
diferentes das daqueles. É assim, por exemplo, que o oxigênio e o hidrogênio,
que são gases invisíveis, quimicamente combinados formam a água, que é líquida,
sólida ou vaporosa, conforme a temperatura. Na água, a bem dizer, já não há
oxigênio nem hidrogênio, mas um corpo novo. Decomposta essa água, os dois
gases, tornados livres, recobram suas propriedades: já não há água. A mesma
quantidade desse líquido pode ser assim, alternativamente, decomposta e
recomposta, ao infinito.
6. A
composição e decomposição dos corpos se dão em virtude do grau de afinidade que
os princípios elementares guardam entre si. A formação da água, por exemplo,
resulta da afinidade recíproca que existe entre o oxigênio e o hidrogênio; mas,
se se puser em contato com a água um corpo que tenha com o oxigênio mais
afinidade do que a que este tem com o hidrogênio, a água se decompõe: o
oxigênio é absorvido e o hidrogênio se liberta. Já não haverá água.
7.
Os corpos compostos se formam sempre em proporções definidas, isto é, pela
combinação de uma certa quantidade dos princípios constituintes. Assim, para
formar a água, são necessárias uma parte de oxigênio e duas de hidrogênio. Se
duas partes de oxigênio forem combinadas com duas de hidrogênio, em vez de água
ter-se-á o deutóxido de hidrogênio, líquido corrosivo, formado, no entanto, dos
mesmos elementos que entram na composição da água, porém, noutra proporção.
8.
Tal, em poucas palavras, a lei que preside à formação de todos os corpos da
natureza. A inumerável variedade deles resulta de um número pequeno de
princípios elementares combinados em proporções diferentes.
Por
exemplo: o oxigênio, combinado em certas proporções, com o carbono, o enxofre,
o fósforo, forma os ácidos carbônico, sulfúrico, fosfórico; o oxigênio e o
ferro formam o óxido de ferro ou ferrugem; o oxigênio e o chumbo, ambos
inofensivos, dão origem aos óxidos de chumbo, tais como o litargírio, o
alvaiade, o mínio, que são venenosos. O oxigênio, com os metais chamados
cálcio, sódio, potássio, forma a cal, a soda, a potassa. A cal, unida ao ácido
carbônico, forma os carbonatos de cal ou pedras calcárias, tais como o mármore,
a cré, as estalactites das grutas; unida ao ácido sulfúrico, forma o sulfato de
cálcio ou gesso e o alabastro; ao ácido fosfórico, o fosfato de cálcio, base
sólida, dos ossos; o cloro e o hidrogênio formam o ácido clorídrico ou
hidroclórico; o cloro e o sódio formam o cloreto de sódio ou sal marinho.
9.
Todas essas combinações e milhares de outras se obtêm artificialmente, em
pequenas quantidades, nos laboratórios de Química; elas se operam em larga
escala no grande laboratório da natureza.
Em
sua origem, a Terra não continha essas matérias em combinação, mas, apenas,
volatilizados, seus princípios constitutivos. Quando as terras calcárias e
outras, tornadas pedrosas com o tempo, se lhe depositaram na superfície,
aquelas matérias não existiam inteiramente formadas; porém, no ar se
encontravam, em estado gasoso, todas as substâncias primitivas. Precipitadas
por efeito do resfriamento, essas substâncias, sob o império de circunstâncias
favoráveis, se combinaram, segundo o grau de suas afinidades moleculares. Foi
então que se formaram as diversas variedades de carbonatos, de sulfatos etc., a
princípio em dissolução nas águas, depositadas, depois, na superfície do solo.
Suponhamos
que, por uma causa qualquer, a Terra voltasse ao estado primitivo de
incandescência: tudo se decomporia; os elementos se separariam; todas as
substâncias fusíveis se fundiriam; todas as que são volatilizáveis se
volatilizariam. Depois, outro resfriamento determinaria nova precipitação e de
novo se formariam as antigas combinações.
10.
Estas considerações provam quanto a Química era necessária para a inteligência
da Gênese. Antes de se conhecerem as leis da afinidade molecular, não era
possível compreender-se a formação da Terra. Esta ciência lançou grande luz
sobre a questão, como o fizeram a Astronomia e a Geologia, doutros pontos de
vista.
11.
Na formação dos corpos sólidos, um dos mais notáveis fenômenos é o da
cristalização, que consiste na forma regular que assumem certas substâncias, ao
passarem do estado líquido, ou gasoso, ao estado sólido. Essa forma, que varia
de acordo com a natureza da substância, é geralmente a de sólidos geométricos,
tais como o prisma, o romboide, o cubo, a pirâmide. Toda gente conhece os
cristais de açúcar cândi; os cristais de rocha, ou sílica cristalizada, são
prismas de seis faces que terminam em pirâmide igualmente hexagonal. O diamante
é carbono puro, ou carvão cristalizado. Os desenhos que no inverno se produzem sobre
as vidraças são devidos à cristalização do vapor de água durante a congelação,
sob a forma de agulhas prismáticas.
A
disposição regular dos cristais corresponde à forma particular das moléculas de
cada corpo. Essas partículas, para nós infinitamente pequenas, mas que não
deixam por isso de ocupar um certo espaço, solicitadas umas para as outras pela
atração molecular, se arrumam e justapõem segundo o exigem suas formas, de
maneira a tomar cada uma o seu lugar em torno do núcleo ou primeiro centro de
atração e a constituir um conjunto simétrico.
A
cristalização só se opera em certas circunstâncias favoráveis, fora das quais
ela não pode dar-se. São condições essenciais o grau da temperatura e o repouso
absoluto. Compreende-se que um calor muito forte, mantendo afastadas as
moléculas, não lhes permitiria condensarem-se e que a agitação, impossibilitando-lhes
um arranjo simétrico, não lhes consentiria formar senão uma massa confusa e
irregular, donde o não haver cristalização propriamente dita.
12.
A lei que preside à formação dos minerais conduz naturalmente à formação dos
corpos orgânicos.
A análise
química mostra que todas as substâncias vegetais e animais são compostas dos
mesmos elementos que os corpos inorgânicos. Desses elementos, são o oxigênio, o
hidrogênio, o azoto e o carbono os que desempenham papel principal. Os outros
entram acessoriamente. Como no reino mineral, a diferença de proporções na
combinação dos referidos elementos produz todas as variedades de substâncias
orgânicas e suas diversas propriedades, tais como: os músculos, os ossos, o sangue,
a bile, os nervos, a matéria cerebral, a gordura, nos animais; a seiva, a
madeira, as folhas, os frutos, as essências, os óleos, as resinas105 etc., nos
vegetais. Assim, na formação dos animais e das plantas, nenhum corpo especial
entra que igualmente não se encontre no reino mineral.
O quadro
abaixo, da análise de algumas substâncias, mostra a diferença de propriedades
que resulta da só diferença na proporção em que entram os elementos
constituintes.
Sobre
100 partes, temos:
|
Carbono |
Hidrogênio |
Oxigênio |
Azoto |
Açúcar de cana |
42.470 |
6.900 |
50.630 |
- |
Açúcar de uva |
36.710 |
6.780 |
56.510 |
- |
Álcool |
51.980 |
13.700 |
34.320 |
- |
Azeite de oliva |
77.210 |
13.360 |
9.430 |
- |
Azeite de nozes |
79.774 |
10.570 |
9.122 |
0.534 |
Gordura |
78.996 |
11.700 |
9.304 |
- |
Fibrina |
53.360 |
7.021 |
19.685 |
19.934 |
13.
Alguns exemplos comuns darão a compreender as transformações que se operam no
reino orgânico, pela só modificação dos elementos constitutivos.
No
suco da uva, não há vinho, nem álcool, mas apenas água e açúcar. Quando o suco
fica maduro e são propícias as condições, produz-se nele um trabalho íntimo a
que se dá o nome de fermentação. Por esse trabalho, uma parte do açúcar se
decompõe; o oxigênio, o hidrogênio e o carbono se separam e combinam nas
proporções necessárias a produzir o álcool, de sorte que, em se bebendo suco de
uva, não se bebe realmente álcool, pois que este ainda não existe. Ele se forma
das partes constituintes da água e do açúcar, sem que haja, em suma, uma
molécula a mais ou a menos.
No
pão e nos legumes que se comem, não há certamente carne, nem sangue, nem osso,
nem bile, nem matéria cerebral; entretanto, esses mesmos alimentos,
decompondo-se e recompondo-se pelo trabalho da digestão, produzem aquelas
diferentes substâncias tão só pela transmutação de seus elementos
constitutivos.
Na
semente de uma árvore, não há madeiras, folhas, flores ou frutos e fora erro
pueril crer-se que a árvore inteira, sob microscópica forma, ali se encontra.
Quase não há, sequer, na semente, oxigênio, hidrogênio e carbono em quantidade
necessária a formar uma folha da árvore. A semente contém um gérmen que
desabrocha em favoráveis condições. Esse gérmen se desenvolve por efeito dos
sucos que haure da terra e dos gases que aspira do ar. Tais sucos, que não são
lenho, nem folhas, nem flores, nem frutos, infiltrando-se na planta, lhe formam
a seiva, como nos animais formam o sangue. Levada pela circulação a todas as
partes do vegetal, a seiva, conforme o órgão a que vai ter e onde sofre uma
elaboração especial, se transforma em lenho, folhas e frutos, como o sangue se
transforma em carne, osso, bile etc. Contudo, são sempre os mesmos elementos:
oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, diversamente combinados.
14.
As diferentes combinações dos elementos, para formação das substâncias
minerais, vegetais e animais, não podem, pois, operar-se, a não ser nos meios e
em circunstâncias propícias; fora dessas circunstâncias, os princípios
elementares estão numa espécie de inércia. Mas desde que as circunstâncias se
tornam favoráveis, começa um trabalho de elaboração; as moléculas entram em
movimento, agitam-se, atraem-se, aproximando-se e se separam em virtude da lei de
afinidades e, por suas múltiplas combinações, compõem a infinita variedade das
substâncias. Desapareçam essas condições e o trabalho subitamente cessa, para
recomeçar quando elas de novo se apresentarem. É assim que a vegetação se
ativa, enfraquece, para e prossegue, sob a ação do calor, da luz, da umidade,
do frio ou da seca; que esta planta prospera, num clima ou num terreno, e se
estiola ou perece noutros.
15.
O que diariamente se passa às nossas vistas pode colocar-nos na pista do que se
passou na origem dos tempos, porquanto as leis da natureza não variam.
Visto
que são os mesmos os elementos constitutivos dos seres orgânicos e inorgânicos;
que os sabemos a formar incessantemente, em dadas circunstâncias, as pedras, as
plantas e os frutos, podemos concluir daí que os corpos dos primeiros seres
vivos se formaram, como as primeiras pedras, pela reunião das moléculas
elementares, em virtude da lei de afinidade, à medida que as condições da
vitalidade do globo foram propícias a esta ou àquela espécie.
A
semelhança de forma e de cores, na reprodução dos indivíduos de cada espécie,
pode comparar-se à semelhança de forma de cada espécie de cristal.
Justapondo-se, sob a ação da mesma lei, as moléculas produzem conjunto análogo.
Princípio vital
16.
Dizendo que as plantas e os animais são formados dos mesmos princípios
constituintes dos minerais, falamos em sentido exclusivamente material, pois
que aqui apenas do corpo se trata.
Sem
falar do princípio inteligente, que é questão à parte, há, na matéria orgânica,
um princípio especial, inapreensível e que ainda não pode ser definido: o
princípio vital. Ativo no ser vivente, esse princípio se acha extinto no ser
morto; mas nem por isso deixa de dar à substância propriedades que a distinguem
das substâncias inorgânicas. A Química, que decompõe e recompõe a maior parte
dos corpos inorgânicos, também conseguiu decompor os corpos orgânicos, porém,
jamais chegou a reconstituir, sequer, uma folha morta, prova evidente de que há
nestes últimos o que quer que seja, inexistente nos outros.
17.
Será o princípio vital alguma coisa particular, que tenha existência própria?
Ou, integrado no sistema da unidade do elemento gerador, apenas será um estado
especial, uma das modificações do fluido cósmico, pela qual este se torne
princípio de vida, como se torna luz, fogo, calor, eletricidade? É neste último
sentido que as comunicações acima reproduzidas resolvem a questão. (Cap. VI, Uranografia
geral.)
Seja,
porém, qual for a opinião que se tenha sobre a natureza do princípio vital, o
certo é que ele existe, pois que se lhe apreciam os efeitos. Pode-se, portanto,
logicamente, admitir que, ao se formarem, os seres orgânicos assimilaram o
princípio vital, por ser necessário à destinação deles; ou, se o preferirem,
que esse princípio se desenvolveu em cada indivíduo, por efeito mesmo da
combinação dos elementos, tal como se desenvolvem, dadas certas circunstâncias,
o calor, a luz e a eletricidade.
18.
Combinando-se sem o princípio vital, o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o
carbono unicamente teriam formado um mineral ou corpo inorgânico; o princípio
vital, modificando a constituição molecular desse corpo, dá-lhe propriedades
especiais. Em lugar de uma molécula mineral, tem-se uma molécula de matéria
orgânica.
A
atividade do princípio vital é alimentada durante a vida pela ação do
funcionamento dos órgãos, do mesmo modo que o calor, pelo movimento de rotação
de uma roda. Cessada aquela ação, por motivo da morte, o princípio vital se
extingue, como o calor, quando a roda deixa de girar. Mas o efeito produzido
por esse princípio sobre o estado molecular do corpo subsiste, mesmo depois
dele extinto, como a carbonização da madeira subsiste à extinção do calor. Na
análise dos corpos orgânicos, a Química encontra os elementos que os constituem:
oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono; mas não pode reconstituir aqueles
corpos, porque, já não existindo a causa, não lhe é possível reproduzir o
efeito, ao passo que possível lhe é reconstituir uma pedra.
19.
Tomamos para termo de comparação o calor que se desenvolve pelo movimento de
uma roda, por ser um efeito vulgar, que todo mundo conhece, e mais fácil de
compreender-se. Mais exato, no entanto, houvéramos sido, dizendo que, na
combinação dos elementos para formarem os corpos orgânicos, desenvolve-se
eletricidade. Os corpos orgânicos seriam, então, verdadeiras pilhas elétricas,
que funcionam enquanto os elementos dessas pilhas se acham em condições de
produzir eletricidade: é a vida; que deixam de funcionar, quando tais condições
desaparecem: é a morte. Segundo essa maneira de ver, o princípio vital não
seria mais do que uma espécie particular de eletricidade, denominada
eletricidade animal, que durante a vida se desprende pela ação dos órgãos109 e
cuja produção cessa, quando da morte, por se extinguir tal ação.
Geração espontânea110
20.
É natural se pergunte por que não mais se formam seres vivos nas mesmas
condições em que se formaram os primeiros que surgiram na Terra.
Sobre
esse ponto, não pode deixar de lançar luz a questão da geração espontânea, que
tanto preocupa a Ciência, embora ainda esteja diversamente resolvida. O
problema é este: Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela simples
reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente produzidos
pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
Os
partidários da geração espontânea respondem afirmativamente, apoiando-se em
observações diretas, que parecem concludentes. Pensam outros que todos os seres
vivos se reproduzem uns pelos outros, firmados sobre o fato, que a experiência
comprova, de que os germens de certas espécies vegetais e animais, mesmo
dispersos, conservam latente vitalidade, durante longo tempo, até que as
circunstâncias lhes favoreçam a eclosão. Esta maneira de entender deixa sempre
em aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.
21.
Sem discutir os dois sistemas, convém acentuar que o princípio da geração
espontânea evidentemente só se pode aplicar aos seres das ordens mais ínfimas
do reino vegetal e do reino animal, àqueles em os quais a vida começa a
despontar, em organismo extremamente simples e, de certo modo, rudimentar.
Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na Terra e cuja formação
houve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga
à que se produziu nas primeiras idades do mundo.
22.
Mas, então, por que não se formam da mesma maneira os seres de complexa
organização? Que esses seres não existiram sempre, é fato positivo; logo,
tiveram um começo. Se o musgo, o líquen, o zoófito, o infusório, os vermes
intestinais e outros podem produzir-se espontaneamente, por que não se dá o
mesmo com as árvores, os peixes, os cães, os cavalos? Param aí, por enquanto,
as investigações; desaparece o fio condutor e, até que ele seja encontrado,
fica aberto o campo às hipóteses. Fora, taneamente do corpo de cadáveres em
decomposição; que rãs, cobras e crocodilos eram gerados a partir do lodo dos
rios. Essa hipótese, geração espontânea ou abiogênese, foi descartada. pois,
imprudente e prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas.
23.
Se a geração espontânea é fato demonstrado,112 por muito limitado que seja, não
deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho
para novas observações. Sabe-se que os seres orgânicos complexos não se
produzem dessa maneira; mas, quem sabe como eles começaram? Quem conhece o
segredo de todas as transformações? Vendo o carvalho sair da glande, quem pode
afirmar que não exista um laço misterioso entre o pólipo e o elefante? (Item
25.)
No
estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a teoria da
geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese provável
e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científicas incontestes. (Revista
espírita, julho de 1868 o desenvolvimento da teoria da geração espontânea.
[Artigo: A geração espontânea e A gênese.])
Escala dos seres
orgânicos
24.
Entre o reino vegetal e o reino animal, nenhuma delimitação há nitidamente
marcada. Nos confins dos dois reinos estão os zoófitos ou animais-plantas, cujo
nome indica que eles participam de um e outro: serve-lhes de traço de união.
Como
os animais, as plantas nascem, vivem, crescem, nutrem-se, respiram, reproduzem-se
e morrem. Como aqueles, precisam elas de luz, de calor e de água; estiolam-se e
morrem, desde que lhes faltem esses elementos. A absorção de um ar viciado e de
substâncias deletérias as envenena. Oferecem como caráter distintivo mais
acentuado conservarem-se presas ao solo e tirarem dele a nutrição, sem se
deslocarem. O zoófito tem a aparência exterior da planta. Como planta,
mantém-se preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira
do meio ambiente a sua alimentação.
Um
degrau acima, o animal é livre e procura o alimento: em primeiro lugar, vêm as
inúmeras variedades de pólipos, de corpos gelatinosos, sem órgãos bem
definidos, só diferindo das plantas pela faculdade da locomoção; seguem-se, na
ordem do desenvolvimento dos órgãos, da atividade vital e do instinto, os
helmintos ou vermes intestinais; os moluscos, animais carnudos sem ossos,
alguns deles nus, como as lesmas, os polvos, outros providos de conchas, como o
caracol, a ostra; os crustáceos, cuja pele é revestida de uma crosta dura, como
o caranguejo, a lagosta; os insetos, aos quais a vida assume prodigiosa atividade
e se manifesta o instinto engenhoso, como a formiga, a abelha, a aranha. Alguns
se metamorfoseiam, como a lagarta, que se transforma em elegante borboleta. Vem
depois a ordem dos vertebrados, animais de esqueleto ósseo, ordem que abrange
os peixes, os reptis, os pássaros; seguem-se, por fim, os mamíferos cuja
organização é a mais completa.
25.
Se se considerarem apenas os dois pontos extremos da cadeia, nenhuma analogia
aparente haverá; mas, se se passar de um anel a outro sem solução de
continuidade, chega-se, sem transição brusca, da planta aos animais
vertebrados. Compreende-se então a possibilidade de que os animais de
organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem,
um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente
inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar. Entre a
glande e o carvalho é grande a diferença; entretanto, se acompanharmos passo a
passo o desenvolvimento da glande, chegaremos ao carvalho e já não nos
admiraremos de que este proceda de tão pequena semente. Ora, se a glande
encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca,
por que não se daria o mesmo do ácaro ao elefante? (Item 23.)
De
acordo com o que fica dito, percebe-se que não exista geração espontânea senão
para os seres orgânicos elementares; as espécies superiores seriam produto das
transformações sucessivas desses mesmos seres, realizadas à proporção que as
condições atmosféricas se lhes foram tornando propícias. Adquirindo cada
espécie a faculdade de reproduzir-se, os cruzamentos acarretaram inúmeras
variedades. Depois, uma vez instalada em condições favoráveis, quem nos diz que
os germens primitivos donde ela surgiu não desapareceram para sempre, por
inúteis? Quem nos diz que o nosso ácaro atual seja idêntico ao que, de
transformação em transformação, produziu o elefante? Explicar-se-ia assim
porque não há geração espontânea entre os animais de complexa organização.
Esta
teoria, sem estar admitida ainda, de maneira definitiva, é a que tende
evidentemente a predominar hoje na Ciência. Os observadores sérios aceitam-na
como a mais racional.
O homem corpóreo
26.
Do ponto de vista corpóreo e puramente anatômico, o homem pertence à classe dos
mamíferos, dos quais unicamente difere por alguns matizes na forma exterior.
Quanto ao mais, a mesma composição de todos os animais, os mesmos órgãos, as
mesmas funções e os mesmos modos de nutrição, de respiração, de secreção, de
reprodução. Ele nasce, vive e morre nas mesmas condições e, quando morre, seu corpo
se decompõe, como tudo o que vive. Não há, em seu sangue, na sua carne, em seus
ossos, um átomo diferente dos que se encontram no corpo dos animais. Como
estes, ao morrer, o homem restitui à terra o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e
o carbono que se haviam combinado para formá-lo; e esses elementos, por meio de
novas combinações, vão formar outros corpos minerais, vegetais e animais. É tão
grande a analogia que suas funções orgânicas são estudadas em certos animais,
quando as experiências não podem ser feitas nele próprio.
27.
Na classe dos mamíferos, o homem pertence à ordem dos bímanos. Logo abaixo dele
vêm os quadrúmanos (animais de quatro mãos) ou macacos, alguns dos quais, como
o orangotango, o chimpanzé, o jocó, têm certos ademanes do homem, a tal ponto
que, por muito tempo, foram denominados: homens das florestas. Como o homem,
esses macacos caminham eretos, usam cajados, constroem choças e levam à boca,
com a mão, os alimentos: sinais característicos.
28.
Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do ponto de vista do
organismo, é-se forçado a reconhecer que, desde o líquen até a árvore e desde o
zoófito até o homem, há uma cadeia que se eleva gradativamente, sem solução de
continuidade e seus anéis todos têm um ponto de contato com o anel precedente.
Acompanhando-se passo a passo a série dos seres, dir-se-ia que cada espécie é
um aperfeiçoamento, uma transformação da espécie imediatamente inferior. Visto
que são idênticas às dos outros corpos as condições do corpo do homem, química
e constitucionalmente; visto que ele nasce, vive e morre da mesma maneira,
também nas mesmas condições que os outros se há de ele ter formado.
29.
Ainda que isso lhe fira o orgulho, tem o homem que se resignar a não ver no seu
corpo material mais do que o último anel da animalidade na Terra. Aí está o
inexorável argumento dos fatos, contra o qual seria inútil protestar.
Todavia,
quanto mais o corpo diminui de valor aos seus olhos, tanto mais cresce de
importância o princípio espiritual. Se o primeiro o nivela ao bruto, o segundo
o eleva a incomensurável altura. Vemos o limite extremo do animal: não vemos o
limite a que chegará o espírito do homem.
30.
O materialismo pode por aí ver que o Espiritismo, longe de temer as descobertas
da Ciência e o seu positivismo, lhe vai ao encontro e os provoca, por possuir a
certeza de que o princípio espiritual, que tem existência própria, em nada pode
com elas sofrer.
O Espiritismo
marcha ao lado do materialismo, no campo da matéria; admite tudo o que o
segundo admite; mas avança para além do ponto onde este último para. O
Espiritismo e o materialismo são como dois viajantes que caminham juntos,
partindo de um mesmo ponto; chegados a certa distância, diz um: “Não posso ir
mais longe.” O outro prossegue e descobre um novo mundo. Por que, então, há de o
primeiro dizer que o segundo é louco, somente porque, entrevendo novos
horizontes, se decide a transpor os limites onde ao outro convém deter-se?
Também Cristóvão Colombo não foi tachado de louco, porque acreditava na
existência de um mundo, para lá do oceano? Quantos a História não conta desses
loucos sublimes, que hão feito que a humanidade avançasse e aos quais se tecem
coroas, depois de se lhes haver atirado lama?
Pois
bem! o Espiritismo, a loucura do século XIX, segundo os que se obstinam em
permanecer na margem terrena, nos patenteia todo um mundo, mundo bem mais
importante para o homem, do que a América, porquanto nem todos os homens vão à
América, ao passo que todos, sem exceção de nenhum, vão ao dos Espíritos,
fazendo incessantes travessias de um para o outro.
Galgado
o ponto em que nos achamos com relação à Gênese, o materialismo se detém,
enquanto o Espiritismo prossegue em suas pesquisas no domínio da Gênese
espiritual.
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