INTRODUÇÃO
I - Objetivo desta obra
Podem dividir-se em cinco partes as matérias
contidas nos Evangelhos: os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as
predições; as palavras que foram tomadas pela Igreja para fundamento de seus
dogmas; e o ensino moral. As quatro primeiras têm sido objeto de controvérsias;
a última, porém, conservou-se constantemente inatacável. Diante desse código
divino, a própria incredulidade se curva. É terreno onde todos os cultos podem
reunir-se, estandarte sob o qual podem todos colocar-se, quaisquer que sejam
suas crenças, porquanto jamais ele constituiu matéria das disputas religiosas,
que sempre e por toda a parte se originaram das questões dogmáticas. Aliás, se
o discutissem, nele teriam as seitas encontrado sua própria condenação, visto
que, na maioria, elas se agarram mais à parte mística do que à parte moral, que
exige de cada um a reforma de si mesmo. Para os homens, em particular, constitui
aquele código uma regra de proceder que abrange todas as circunstâncias da vida
privada e da vida pública, o princípio básico de todas as relações sociais que
se fundam na mais rigorosa justiça. É, finalmente e acima de tudo, o roteiro
infalível para a felicidade vindoura, o levantamento de uma ponta do véu que
nos oculta a vida futura. Essa parte é a que será objeto exclusivo desta obra.
Toda a gente admira a moral evangélica; todos lhe
proclamam a sublimidade e a necessidade; muitos, porém, assim se pronunciam por
fé, confiados no que ouviram dizer, ou firmados em certas máximas que se
tornaram proverbiais. Poucos, no entanto, a conhecem a fundo e menos ainda são
os que a compreendem e lhe sabem deduzir as consequências. A razão está, por
muito, na dificuldade que apresenta o entendimento do Evangelho, que, para o
maior número dos seus leitores, é ininteligível. A forma alegórica e o
intencional misticismo da linguagem fazem que a maioria o leia por desencargo
de consciência e por dever, como leem as preces, sem as entender, isto é, sem
proveito. Passam-lhes despercebidos os preceitos morais, disseminados aqui e
ali, intercalados na massa das narrativas. Impossível, então, apanhar-lhes o
conjunto e tomá-los para objeto de leitura e meditações especiais.
É certo que tratados já se hão escrito de moral evangélica; mas, o arranjo em moderno estilo literário lhe tira a primitiva simplicidade que, ao mesmo tempo, lhe constitui o encanto e a autenticidade. Outro tanto cabe dizer-se das máximas destacadas e reduzidas à sua mais simples expressão proverbial. Desde logo, já não passam de aforismos, privados de uma parte do seu valor e interesse, pela ausência dos acessórios e das circunstâncias em que foram enunciadas.
Para obviar a esses inconvenientes, reunimos, nesta
obra, os artigos que podem compor, a bem dizer, um código de moral universal,
sem distinção de culto. Nas citações, conservamos o que é útil ao
desenvolvimento da ideia, pondo de lado unicamente o que se não prende ao
assunto. Além disso, respeitamos escrupulosamente a tradução de Sacy, assim
como a divisão em versículos. Em vez, porém, de nos atermos a uma ordem
cronológica impossível e sem vantagem real para o caso, agrupamos e
classificamos metodicamente as máximas, segundo as respectivas naturezas, de
modo que decorram umas das outras, tanto quanto possível. A indicação dos
números de ordem dos capítulos e dos versículos permite se recorra à
classificação vulgar, em sendo oportuno.
Esse, entretanto, seria um trabalho material que,
por si só, apenas teria secundária utilidade. O essencial era pô-lo ao alcance
de todos, mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de
todas as consequências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as
condições da vida. Foi o que tentamos fazer, com a ajuda dos bons Espíritos que
nos assistem.
Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos
autores sacros em geral só são ininteligíveis, parecendo alguns até
irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro
sentido. Essa chave está completa no Espiritismo, como já o puderam reconhecer
os que o têm estudado seriamente e como todos, mais tarde, ainda melhor o
reconhecerão. O Espiritismo se nos depara por toda a parte na antiguidade e nas
diferentes épocas da humanidade. Por toda a parte se lhe descobrem os
vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por que, ao
mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz não menos
viva sobre os mistérios do passado.
Como complemento de cada preceito, acrescentamos
algumas instruções escolhidas, dentre as que os Espíritos ditaram em vários
países e por diferentes médiuns. Se elas fossem tiradas de uma fonte única,
houveram talvez sofrido uma influência pessoal ou a do meio, enquanto a
diversidade de origens prova que os Espíritos dão indistintamente seus ensinos
e que ninguém a esse respeito goza de qualquer privilégio.*
* Houvéramos, sem dúvida, podido apresentar, sobre
cada assunto, maior número de comunicações obtidas numa porção de outras
cidades e centros, além das que citamos. Tivemos, porém, de evitar a monotonia
das repetições inúteis e limitar a nossa escolha às que, tanto pelo fundo
quanto pela forma, se enquadravam melhor no plano desta obra, reservando para
publicações ulteriores as que não puderam caber aqui.
Quanto aos médiuns, abstivemo-nos de nomeá-los. Na
maioria dos casos, não os designamos a pedido deles próprios e, assim sendo,
não convinha fazer exceções. Ao demais, os nomes dos médiuns nenhum valor
teriam acrescentado à obra dos Espíritos. Mencioná-los mais não fora, então, do
que satisfazer ao amor-próprio, coisa a que os médiuns verdadeiramente sérios
nenhuma importância ligam. Compreendem eles que, por ser meramente passivo o
papel que lhes toca, o valor das comunicações em nada lhes exalça o mérito
pessoal; e que seria pueril envaidecerem-se de um trabalho de inteligência ao
qual é apenas mecânico o concurso que prestam.
Esta obra é para uso de todos. Dela podem todos
haurir os meios de conformar com a moral do Cristo o respectivo proceder. Aos
espíritas oferece aplicações que lhes concernem de modo especial. Graças às
relações estabelecidas, doravante e permanentemente, entre os homens e o mundo
invisível, a lei evangélica, que os próprios Espíritos ensinaram a todas as
nações, já não será letra morta, porque cada um a compreenderá e se verá
incessantemente compelido a pô-la em prática, a conselho de seus guias
espirituais. As instruções que promanam dos Espíritos são verdadeiramente as
vozes do céu que vêm esclarecer os homens e convidá-los à prática do Evangelho.
II - Autoridade da Doutrina espírita
Controle universal do ensino dos Espíritos
Se a doutrina espírita fosse de concepção puramente
humana, não ofereceria por penhor senão as luzes daquele que a houvesse
concebido. Ora, ninguém, neste mundo, poderia alimentar fundadamente a
pretensão de possuir, com exclusividade, a verdade absoluta. Se os Espíritos
que a revelaram se houvessem manifestado a um só homem, nada lhe garantiria a
origem, porquanto fora mister acreditar, sob palavra, naquele que dissesse ter
recebido deles o ensino. Admitida, de sua parte, sinceridade perfeita, quando
muito poderia ele convencer as pessoas de suas relações; conseguiria sectários,
mas nunca chegaria a congregar todo o mundo.
Quis Deus que a nova revelação chegasse aos homens
por mais rápido caminho e mais autêntico. Incumbiu, pois, os Espíritos de
levá-la de um polo a outro, manifestando-se por toda a parte, sem conferir a
ninguém o privilégio de lhes ouvir a palavra. Um homem pode ser ludibriado,
pode enganar-se a si mesmo; já não será assim, quando milhões de criaturas veem
e ouvem a mesma coisa. Constitui isso uma garantia para cada um e para todos.
Ao demais, pode fazer-se que desapareça um homem; mas não se pode fazer que
desapareçam as coletividades; podem queimar-se os livros, mas não se podem
queimar os Espíritos. Ora, queimassem-se todos os livros e a fonte da doutrina
não deixaria de conservar-se inexaurível, pela razão mesma de não estar na
Terra, de surgir em todos os lugares e de poderem todos dessedentar-se nela.
Faltem os homens para difundi-la: haverá sempre os Espíritos, cuja atuação a
todos atinge e aos quais ninguém pode atingir.
São, pois, os próprios Espíritos que fazem a
propagação, com o auxílio dos inúmeros médiuns que, também eles, os Espíritos,
vão suscitando de todos os lados. Se tivesse havido unicamente um intérprete,
por mais favorecido que fosse, o Espiritismo mal seria conhecido. Qualquer que
fosse a classe a que pertencesse, tal intérprete houvera sido objeto das
prevenções de muita gente e nem todas as nações o teriam aceitado, ao passo que
os Espíritos se comunicam em todos os pontos da Terra, a todos os povos, a
todas as seitas, a todos os partidos, e todos os aceitam. O Espiritismo não tem
nacionalidade e não faz parte de nenhum culto existente; nenhuma classe social
o impõe, visto que qualquer pessoa pode receber instruções de seus parentes e
amigos de além-túmulo. Cumpre seja assim, para que ele possa conduzir todos os
homens à fraternidade. Se não se mantivesse em terreno neutro, alimentaria as
dissensões, em vez de apaziguá-las.
Nessa universalidade do ensino dos Espíritos reside
a força do Espiritismo e, também, a causa de sua tão rápida propagação.
Enquanto a palavra de um só homem, mesmo com o concurso da imprensa, levaria
séculos para chegar ao conhecimento de todos, milhares de vozes se fazem ouvir
simultaneamente em todos os recantos do planeta, proclamando os mesmos
princípios e transmitindo-os aos mais ignorantes, como aos mais doutos, a fim
de que não haja deserdados. É uma vantagem de que não gozara ainda nenhuma das
doutrinas surgidas até hoje. Se o Espiritismo, portanto, é uma verdade, não
teme o malquerer dos homens, nem as revoluções morais, nem as subversões
físicas do globo, porque nada disso pode atingir os Espíritos.
Não é essa, porém, a única vantagem que lhe decorre
da sua excepcional posição. Ela lhe faculta inatacável garantia contra todos os
cismas que pudessem provir, seja da ambição de alguns, seja das contradições de
certos Espíritos. Tais contradições, não há negar, são um escolho; mas que traz
consigo o remédio, ao lado do mal.
Sabe-se que os Espíritos, em virtude da diferença
entre as suas capacidades, longe se acham de estar, individualmente
considerados, na posse de toda a verdade; que nem a todos é dado penetrar
certos mistérios; que o saber de cada um deles é proporcional à sua depuração;
que os Espíritos vulgares mais não sabem do que muitos homens; que entre eles,
como entre estes, há presunçosos e sofômanos, que julgam saber o que ignoram;
sistemáticos, que tomam por verdades as suas ideias; enfim, que só os Espíritos
da categoria mais elevada, os que já estão completamente desmaterializados, se
encontram despidos das ideias e preconceitos terrenos; mas, também é sabido que
os Espíritos enganadores não escrupulizam em tomar nomes que lhes não
pertencem, para impingirem suas utopias. Daí resulta que, com relação a tudo o
que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada
um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade; que
devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente
fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.
O primeiro exame comprobativo é, pois, sem
contradita, o da razão, ao qual cumpre se submeta, sem exceção, tudo o que
venha dos Espíritos. Toda teoria em manifesta contradição com o bom senso, com
uma lógica rigorosa e com os dados positivos já adquiridos, deve ser rejeitada,
por mais respeitável que seja o nome que traga como assinatura. Incompleto,
porém, ficará esse exame em muitos casos, por efeito da falta de luzes de certas
pessoas e das tendências de não poucas a tomar as próprias opiniões como juízes
únicos da verdade. Assim sendo, que hão de fazer aqueles que não depositam
confiança absoluta em si mesmos? Buscar o parecer da maioria e tomar por guia a
opinião desta. De tal modo é que se deve proceder em face do que digam os
Espíritos, que são os primeiros a nos fornecer os meios de consegui-lo.
A concordância no que ensinem os Espíritos é, pois,
a melhor comprovação. Importa, no entanto, que ela se dê em determinadas condições.
A mais fraca de todas ocorre quando um médium, a sós, interroga muitos
Espíritos acerca de um ponto duvidoso. É evidente que, se ele estiver sob o
império de uma obsessão, ou lidando com um Espírito mistificador, este lhe pode
dizer a mesma coisa sob diferentes nomes. Tampouco garantia alguma suficiente
haverá na conformidade que apresente o que se possa obter por diversos médiuns,
num mesmo centro, porque podem estar todos sob a mesma influência.
Uma só garantia séria existe para o ensino dos
Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam
espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos
outros e em vários lugares.
Vê-se bem que não se trata aqui das comunicações
referentes a interesses secundários, mas do que respeita aos princípios mesmos
da doutrina. Prova a experiência que, quando um princípio novo tem de ser
enunciado, isso se dá espontaneamente em diversos pontos ao mesmo tempo e de
modo idêntico, senão quanto à forma, quanto ao fundo.
Se, portanto, aprouver a um Espírito formular um
sistema excêntrico, baseado unicamente nas suas ideias e com exclusão da
verdade, pode ter-se a certeza de que tal sistema conservar-se-á circunscrito e
cairá, diante das instruções dadas de todas as partes, conforme os múltiplos
exemplos que já se conhecem. Foi essa unanimidade que pôs por terra todos os
sistemas parciais que surgiram na origem do Espiritismo, quando cada um
explicava à sua maneira os fenômenos, e antes que se conhecessem as leis que
regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível.
Essa a base em que nos apoiamos, quando formulamos
um princípio da doutrina. Não é porque esteja de acordo com as nossas ideias
que o temos por verdadeiro. Não nos arvoramos, absolutamente, em árbitro
supremo da verdade e a ninguém dizemos: “Crede em tal coisa, porque somos nós
que vo-lo dizemos.” A nossa opinião não passa, aos nossos próprios olhos, de
uma opinião pessoal, que pode ser verdadeira ou falsa, visto não nos
considerarmos mais infalível do que qualquer outro. Também não é porque um
princípio nos foi ensinado que, para nós, ele exprime a verdade, mas porque
recebeu a sanção da concordância.
Na posição em que nos encontramos, a receber
comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados pelos mais
diversos pontos da Terra, achamo-nos em condições de observar sobre que
princípio se estabelece a concordância. Essa observação é que nos tem guiado
até hoje e é a que nos guiará pelos novos campos que o Espiritismo terá de
explorar. Porque, estudando atentamente as comunicações vindas tanto da França
como do estrangeiro, reconhecemos, pela natureza toda especial das revelações,
que ele tende a entrar por um novo caminho e que lhe chegou o momento de dar um
passo para diante. Essas revelações, feitas muitas vezes com palavras veladas,
hão frequentemente passado despercebidas a muitos dos que as obtiveram. Outros
julgaram-se os únicos a possuí-las. Tomadas insuladamente, elas, para nós,
nenhum valor teriam; somente a coincidência lhes imprime gravidade. Depois,
chegado o momento de serem entregues à publicidade, cada um se lembrará de
haver obtido instruções no mesmo sentido. Esse movimento geral, que observamos
e estudamos, com a assistência dos nossos guias espirituais, é que nos auxilia
a julgar da oportunidade de fazermos ou não alguma coisa.
Essa verificação universal constitui uma garantia
para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias.
Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade. O que deu lugar ao
êxito da doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns foi
que em toda a parte todos receberam diretamente dos Espíritos a confirmação do
que esses livros contêm. Se de todos os lados tivessem vindo os Espíritos
contradizê-la, já de há muito haveriam aquelas obras experimentado a sorte de
todas as concepções fantásticas. Nem mesmo o apoio da imprensa as salvaria do
naufrágio, ao passo que, privadas como se viram desse apoio, não deixaram elas
de abrir caminho e de avançar celeremente. É que tiveram o dos Espíritos, cuja
boa vontade não só compensou, como também sobrepujou o malquerer dos homens.
Assim sucederá a todas as ideias que, emanando quer dos Espíritos, quer dos
homens, não possam suportar a prova desse confronto, cuja força a ninguém é
lícito contestar.
Suponhamos praza a alguns Espíritos ditar, sob
qualquer título, um livro em sentido contrário; suponhamos mesmo que, com
intenção hostil, objetivando desacreditar a doutrina, a malevolência suscitasse
comunicações apócrifas; que influência poderiam exercer tais escritos, desde
que de todos os lados os desmentissem os Espíritos? É com a adesão destes que
se deve garantir aquele que queira lançar, em seu nome, um sistema qualquer. Do
sistema de um só ao de todos, medeia a distância que vai da unidade ao infinito.
Que poderão conseguir os argumentos dos detratores, sobre a opinião das massas,
quando milhões de vozes amigas, provindas do espaço, se façam ouvir em todos os
recantos do universo e no seio das famílias, a infirmá-los? A esse respeito já
não foi a teoria confirmada pela experiência? Que é feito das inúmeras
publicações que traziam a pretensão de arrasar o Espiritismo? Qual a que,
sequer, lhe retardou a marcha? Até agora, não se considera a questão desse
ponto de vista, sem contestação um dos mais graves. Cada um contou consigo, sem
contar com os Espíritos.
O princípio da concordância é também uma garantia
contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se
propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo à vontade. Quem
quer que tentasse desviá-lo do seu providencial objetivo, malsucedido se veria,
pela razão muito simples de que os Espíritos, em virtude da universalidade de
seus ensinos, farão cair por terra qualquer modificação que se divorcie da
verdade.
De tudo isso ressalta uma verdade capital: a de que
aquele que quisesse opor-se à corrente de ideias estabelecida e sancionada
poderia, é certo, causar uma pequena perturbação local e momentânea; nunca,
porém, dominar o conjunto, mesmo no presente, nem, ainda menos, no futuro.
Também ressalta que as instruções dadas pelos
Espíritos sobre os pontos ainda não elucidados da doutrina não constituirão
lei, enquanto essas instruções permanecerem insuladas; que elas não devem, por
conseguinte, ser aceitas senão sob todas as reservas e a título de
esclarecimento.
Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes
publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá-las, importa não as
apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém,
carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar,
antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos se queira ser
acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida.
Com extrema sabedoria procedem os Espíritos
superiores em suas revelações. Não atacam as grandes questões da doutrina senão
gradualmente, à medida que a inteligência se mostra apta a compreender verdade
de ordem mais elevada e quando as circunstâncias se revelam propícias à emissão
de uma ideia nova. Por isso é que logo de princípio não disseram tudo, e tudo
ainda hoje não disseram, jamais cedendo à impaciência dos muito afoitos, que
querem os frutos antes de estarem maduros. Fora, pois, supérfluo pretender
adiantar-se ao tempo que a Providência assinou para cada coisa, porque, então,
os Espíritos verdadeiramente sérios negariam o seu concurso. Os Espíritos
levianos, pouco se preocupando com a verdade, a tudo respondem; daí vem que,
sobre todas as questões prematuras, há sempre respostas contraditórias.
Os princípios acima não resultam de uma teoria
pessoal: são consequência forçada das condições em que os Espíritos se
manifestam. É evidente que, se um Espírito diz uma coisa de um lado, enquanto
milhões de outros dizem o contrário algures, a presunção de verdade não pode
estar com aquele que é o único ou quase o único de tal parecer. Ora, pretender
alguém ter razão contra todos seria tão ilógico da parte dos Espíritos, quanto
da parte dos homens. Os Espíritos verdadeiramente ponderados, se não se sentem
suficientemente esclarecidos sobre uma questão, nunca a resolvem de modo
absoluto; declaram que apenas a tratam do seu ponto de vista e aconselham que
se aguarde a confirmação.
Por grande, bela e justa que seja uma ideia,
impossível é que desde o primeiro momento congregue todas as opiniões. Os
conflitos que daí decorrem são consequência inevitável do movimento que se
opera; eles são mesmo necessários para maior realce da verdade e convém se
produzam desde logo, para que as ideias falsas prontamente sejam postas de
lado. Os espíritas que a esse respeito alimentassem qualquer temor podem ficar
perfeitamente tranquilos: todas as pretensões insuladas cairão, pela força
mesma das coisas, diante do enorme e poderoso critério da concordância
universal.
Não será à opinião de um homem que se aliarão os
outros, mas à voz unânime dos Espíritos; não será um homem, nem nós, nem
qualquer outro que fundará a ortodoxia espírita; tampouco será um Espírito que
se venha impor a quem quer que seja: será a universalidade dos Espíritos que se
comunicam em toda a Terra, por ordem de Deus. Esse o caráter essencial da
doutrina espírita; essa a sua força, a sua autoridade. Quis Deus que a sua lei
assentasse em base inamovível e por isso não lhe deu por fundamento a cabeça
frágil de um só.
Diante de tão poderoso areópago, onde não se
conhecem corrilhos, nem rivalidades ciosas, nem seitas, nem nações, é que virão
quebrar-se todas as oposições, todas as ambições, todas as pretensões à
supremacia individual; é que nos quebraríamos nós mesmos, se quiséssemos
substituir os seus decretos soberanos pelas nossas próprias ideias. Apenas Deus
decidirá todas as questões litigiosas, imporá silêncio às dissidências e dará
razão a quem a tenha. Diante desse imponente acordo de todas as vozes do céu,
que pode a opinião de um homem ou de um Espírito? Menos do que a gota d’água
que se perde no oceano, menos do que a voz da criança que a tempestade abafa.
A opinião universal, eis o juiz supremo, o que se
pronuncia em última instância. Formam-na todas as opiniões individuais. Se uma
destas é verdadeira, apenas tem na balança o seu peso relativo. Se é falsa, não
pode prevalecer sobre todas as demais. Nesse imenso concurso, as
individualidades se apagam, o que constitui novo insucesso para o orgulho
humano.
Já se desenha o harmonioso conjunto. Este século não
passará sem que ele resplandeça em todo o seu brilho, de modo a dissipar todas
as incertezas, porquanto daqui até lá potentes vozes terão recebido a missão de
se fazerem ouvir, para congregar os homens sob a mesma bandeira, uma vez que o
campo se ache suficientemente lavrado. Enquanto isso se não dá, aquele que
flutue entre dois sistemas opostos pode observar em que sentido se forma a
opinião geral; essa será a indicação certa do sentido em que se pronuncia a
maioria dos Espíritos, nos diversos pontos em que se comunicam, e um sinal não
menos certo de qual dos dois sistemas prevalecerá.
III - Notícias históricas
Para bem se compreenderem algumas passagens dos
Evangelhos, necessário se faz conhecer o valor de muitas palavras neles
frequentemente empregadas e que caracterizam o estado dos costumes e da
sociedade judia naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas
palavras foram com frequência mal interpretadas, causando isso uma espécie de
incerteza. A inteligência da significação delas explica, ao demais, o
verdadeiro sentido de certas máximas que, à primeira vista, parecem singulares.
Escribas. Nome dado, a princípio, aos secretários
dos reis de Judá e a certos intendentes dos exércitos judeus. Mais tarde, foi
aplicado especialmente aos doutores que ensinavam a lei de Moisés e a
interpretavam para o povo. Faziam causa comum com os fariseus, de cujos
princípios partilhavam, bem como da antipatia que aqueles votavam aos
inovadores. Daí o envolvê-los Jesus na reprovação que lançava aos fariseus.
Essênios ou esseus. Também seita judia fundada cerca
do ano 150 antes de Jesus Cristo, ao tempo dos macabeus, e cujos membros,
habitando uma espécie de mosteiros, formavam entre si uma como associação moral
e religiosa. Distinguiam-se pelos costumes brandos e por austeras virtudes,
ensinavam o amor a Deus e ao próximo, a imortalidade da alma e acreditavam na
ressurreição. Viviam em celibato, condenavam a escravidão e a guerra, punham em
comunhão os seus bens e se entregavam à agricultura. Contrários aos saduceus
sensuais, que negavam a imortalidade; aos fariseus de rígidas práticas
exteriores e de virtudes apenas aparentes, nunca os essênios tomaram parte nas
querelas que tornaram antagonistas aquelas duas outras seitas. Pelo gênero de
vida que levavam, assemelhavam-se muito aos primeiros cristãos, e os princípios
da moral que professavam induziram muitas pessoas a supor que Jesus, antes de
dar começo à sua missão pública, lhes pertencera à comunidade. É certo que ele
há de tê-la conhecido, mas nada prova que se lhe houvesse filiado, sendo, pois,
hipotético tudo quanto a esse respeito se escreveu.
A morte de Jesus, supostamente escrita por um
essênio, é obra inteiramente apócrifa, cujo único fim foi servir de apoio a uma
opinião. Ela traz em si mesma a prova da sua origem moderna.
Fariseus (do hebreu parush, divisão, separação). A
tradição constituía parte importante da teologia dos judeus. Consistia numa
compilação das interpretações sucessivamente dadas ao sentido das Escrituras e
tornadas artigos de dogma. Constituía, entre os doutores, assunto de discussões
intermináveis, as mais das vezes sobre simples questões de palavras ou de
formas, no gênero das disputas teológicas e das sutilezas da escolástica da
Idade Média. Daí nasceram diferentes seitas, cada uma das quais pretendia ter o
monopólio da verdade, detestando-se umas às outras, como sói acontecer.
Entre essas seitas, a mais influente era a dos
fariseus, que teve por chefe Hillel, doutor judeu nascido na Babilônia,
fundador de uma escola célebre, onde se ensinava que só nas Escrituras se devia
depositar fé . Sua origem remonta a 180 ou 200 anos antes de Jesus Cristo. Os
fariseus, em diversas épocas, foram perseguidos, especialmente sob Hircano soberano
pontífice e rei dos judeus —, Aristóbulo e Alexandre, rei da Síria. Este
último, porém, lhes deferiu honras e restituiu os bens, de sorte que eles
readquiriram o antigo poderio e o conservaram até à ruína de Jerusalém, no ano
70 da era cristã, época em que se lhes apagou o nome, em consequência da
dispersão dos judeus.
Tomavam parte ativa nas controvérsias religiosas.
Servis cumpridores das práticas exteriores do culto e das cerimônias; cheios de
um zelo ardente de proselitismo, inimigos dos inovadores, afetavam grande
severidade de princípios; mas, sob as aparências de meticulosa devoção,
ocultavam costumes dissolutos, muito orgulho e, acima de tudo, excessiva ânsia
de dominação. Tinham a religião mais como meio de chegarem a seus fins, do que
como objeto de fé sincera. Da virtude nada possuíam, além das exterioridades e
da ostentação; entretanto, por umas e outras, exerciam grande influência sobre
o povo, a cujos olhos passavam por santas criaturas. Daí o serem muito
poderosos em Jerusalém.
Acreditavam, ou, pelo menos, fingiam acreditar na
Providência, na imortalidade da alma, na eternidade das penas e na ressurreição
dos mortos. (Cap. IV, no 4.) Jesus, que prezava, sobretudo, a simplicidade e as
qualidades da alma, que, na lei, preferia o espírito, que vivifica, à letra,
que mata, se aplicou, durante toda a sua missão, a lhes desmascarar a
hipocrisia, pelo que tinha neles encarniçados inimigos. Essa a razão por que se
ligaram aos príncipes dos sacerdotes para amotinar contra ele o povo e
eliminá-lo.
Nazarenos. Nome dado, na antiga lei, aos judeus que
faziam voto, ou perpétuo ou temporário, de guardar perfeita pureza. Eles se
comprometiam a observar a castidade, a abster-se de bebidas alcoólicas e a
conservar a cabeleira. Sansão, Samuel e João Batista eram nazarenos.
Mais tarde, os judeus deram esse nome aos primeiros
cristãos, por alusão a Jesus de Nazaré.
Também foi essa a denominação de uma seita herética
dos primeiros séculos da era cristã, a qual, do mesmo modo que os ebionitas, de
quem adotava certos princípios, misturava as práticas do mosaísmo com os dogmas
cristãos, seita essa que desapareceu no século quarto.
Portageiros. Eram os arrecadadores de baixa
categoria, incumbidos principalmente da cobrança dos direitos de entrada nas
cidades. Suas funções correspondiam mais ou menos à dos empregados de alfândega
e recebedores dos direitos de barreira. Compartilhavam da repulsa que pesava
sobre os publicanos em geral. Essa a razão por que, no Evangelho, se depara
frequentemente com a palavra publicano ao lado da expressão gente de má vida.
Tal qualificação não implicava a de debochados ou vagabundos. Era um termo de
desprezo, sinônimo de gente de má companhia, gente indigna de conviver com
pessoas distintas.
Publicanos. Eram assim chamados, na antiga Roma, os
cavalheiros arrendatários das taxas públicas, incumbidos da cobrança dos
impostos e das rendas de toda espécie, quer em Roma mesma, quer nas outras
partes do Império. Eram como os arrendatários gerais e arrematadores de taxas
do antigo regímen na França e que ainda existem nalgumas regiões. Os riscos a
que estavam sujeitos faziam que os olhos se fechassem para as riquezas que muitas
vezes adquiriam e que, da parte de alguns, eram frutos de exações e de lucros
escandalosos. O nome de publicano se estendeu mais tarde a todos os que
superintendiam os dinheiros públicos e aos agentes subalternos. Hoje esse termo
se emprega em sentido pejorativo, para designar os financistas e os agentes
pouco escrupulosos de negócios. Diz-se por vezes: “Ávido como um publicano,
rico como um publicano”, com referência a riquezas de mau quilate.
De toda a dominação romana, o imposto foi o que os
judeus mais dificilmente aceitaram e o que mais irritação causou entre eles.
Daí nasceram várias revoltas, fazendo-se do caso uma questão religiosa, por ser
considerada contrária à lei. Constituiu-se, mesmo, um partido poderoso, a cuja
frente se pôs um certo Judá, apelidado o Gaulonita, tendo por princípio o não
pagamento do imposto. Os judeus, pois, abominavam a este e, como consequência,
a todos os que eram encarregados de arrecadá-lo, donde a aversão que votavam
aos publicanos de todas as categorias, entre os quais podiam encontrar-se
pessoas muito estimáveis, mas que, em virtude das suas funções, eram
desprezadas, assim como os que com elas mantinham relações, os quais se viam
atingidos pela mesma reprovação. Os judeus de destaque consideravam um
comprometimento ter com eles intimidade.
Saduceus. Seita judia, que se formou por volta do
ano 248 antes de Jesus Cristo e cujo nome lhe veio do de Sadoc, seu fundador.
Não criam na imortalidade, nem na ressurreição, nem nos anjos bons e maus.
Entretanto, criam em Deus; nada, porém, esperando após a morte, só o serviam
tendo em vista recompensas temporais, ao que, segundo eles, se limitava a
providência divina. Assim pensando, tinham a satisfação dos sentidos físicos
por objetivo essencial da vida. Quanto às Escrituras, atinham-se ao texto da
lei antiga. Não admitiam a tradição, nem interpretações quaisquer. Colocavam as
boas obras e a observância pura e simples da lei acima das práticas exteriores
do culto. Eram, como se vê, os materialistas, os deístas e os sensualistas da
época. Seita pouco numerosa, mas que contava em seu seio importantes
personagens e se tornou um partido político oposto constantemente aos fariseus.
Samaritanos. Após o cisma das dez tribos, Samaria se
constituiu a capital do reino dissidente de Israel. Destruída e reconstruída
várias vezes, tornou-se, sob os romanos, a cabeça da Samaria, uma das quatro
divisões da Palestina. Herodes, chamado o Grande, a embelezou de suntuosos
monumentos e, para lisonjear Augusto, lhe deu o nome de Augusta, em grego
Sebaste.
Os samaritanos estiveram quase constantemente em
guerra com os reis de Judá. Aversão profunda, datando da época da separação,
perpetuou-se entre os dois povos, que evitavam todas as relações recíprocas.
Aqueles, para tornarem maior a cisão e não terem de vir a Jerusalém pela
celebração das festas religiosas, construíram para si um templo particular e
adotaram algumas reformas. Somente admitiam o Pentateuco, que continha a lei de
Moisés, e rejeitavam todos os outros livros que a esse foram posteriormente anexados.
Seus livros sagrados eram escritos em caracteres hebraicos da mais alta
antiguidade. Para os judeus ortodoxos, eles eram heréticos e, portanto,
desprezados, anatematizados e perseguidos. O antagonismo das duas nações tinha,
pois, por fundamento único a divergência das opiniões religiosas; se bem fosse
a mesma a origem das crenças de uma e outra. Eram os protestantes desse tempo.
Ainda hoje se encontram samaritanos em algumas
regiões do Levante, particularmente em Nablus e em Jafa. Observam a lei de Moisés
com mais rigor que os outros judeus e só entre si contraem alianças.
Sinagoga (do grego synagogê, assembleia,
congregação). Um único templo havia na Judeia, o de Salomão, em Jerusalém, onde
se celebravam as grandes cerimônias do culto. Os judeus, todos os anos, lá iam
em peregrinação para as festas principais, como as da Páscoa, da Dedicação e
dos Tabernáculos. Por ocasião dessas festas é que Jesus também costumava ir lá.
As outras cidades não possuíam templos, mas, apenas, sinagogas: edifícios onde
os judeus se reuniam aos sábados, para fazer preces públicas, sob a chefia dos
anciães, dos escribas, ou doutores da lei. Nelas também se realizavam leituras
dos livros sagrados, seguidas de explicações e comentários, atividades das
quais qualquer pessoa podia participar. Por isso é que Jesus, sem ser
sacerdote, ensinava aos sábados nas sinagogas.
Desde a ruína de Jerusalém e a dispersão dos judeus,
as sinagogas, nas cidades por eles habitadas, servem-lhes de templos para a
celebração do culto.
Terapeutas (do grego therapeutai, formado de
therapeuein, servir, cuidar, isto é: servidores de Deus, ou curadores). Eram
sectários judeus contemporâneos do Cristo, estabelecidos principalmente em
Alexandria, no Egito. Tinham muita relação com os essênios, cujos princípios
adotavam, aplicando-se, como esses últimos, à prática de todas as virtudes.
Eram de extrema frugalidade na alimentação. Também celibatários, votados à
contemplação e vivendo vida solitária, constituíam uma verdadeira ordem
religiosa. Fílon, filósofo judeu platônico, de Alexandria, foi o primeiro a
falar dos terapeutas, considerando-os uma seita do judaísmo. Eusébio, S.
Jerônimo e outros Pais da Igreja pensam que eles eram cristãos. Fossem tais, ou
fossem judeus, o que é evidente é que, do mesmo modo que os essênios, eles
representam o traço de união entre o Judaísmo e o Cristianismo.
IV - Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do
Espiritismo
Do fato de haver Jesus conhecido a seita dos
essênios, fora errôneo concluir-se que a sua doutrina hauriu-a ele na dessa
seita e que, se houvera vivido noutro meio, teria professado outros princípios.
As grandes ideias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a verdade
sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos. Depois, em
chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de resumir, coordenar e
completar os elementos esparsos, de reuni-los em corpo de doutrina. Desse modo,
não surgindo bruscamente, a ideia, ao aparecer, encontra espíritos dispostos a
aceitá-la. Tal o que se deu com a ideia cristã, que foi pressentida muitos
séculos antes de Jesus e dos essênios, tendo por principais precursores
Sócrates e Platão.
Sócrates, como o Cristo, nada escreveu, ou, pelo
menos, nenhum escrito deixou. Como o Cristo, teve a morte dos criminosos,
vítima do fanatismo, por haver atacado as crenças que encontrara e colocado a
virtude real acima da hipocrisia e do simulacro das formas; por haver, numa
palavra, combatido os preconceitos religiosos. Do mesmo modo que Jesus, a quem
os fariseus acusavam de estar corrompendo o povo com os ensinamentos que lhe
ministrava, também ele foi acusado, pelos fariseus do seu tempo, visto que
sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus,
da imortalidade da alma e da vida futura. Assim como a doutrina de Jesus só a
conhecemos pelo que escreveram seus discípulos, da de Sócrates só temos
conhecimento pelos escritos de seu discípulo Platão. Julgamos conveniente
resumir aqui os pontos de maior relevo, para mostrar a concordância deles com
os princípios do Cristianismo.
Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e
pretendam que não pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do
Cristo, diremos que não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o
paganismo; que a de Jesus, mais completa e mais depurada do que aquela, nada
tem que perder com a comparação; que a grandeza da missão divina do Cristo não
pode ser diminuída; que, ao demais, trata-se de um fato da história, que a
ninguém será possível apagar. O homem há chegado a um ponto em que a luz emerge
por si mesma de sob o alqueire. Ele se acha maduro bastante para encará-la de
frente; tanto pior para os que não ousem abrir os olhos. Chegou o tempo de se
considerarem as coisas de modo amplo e elevado, não mais do ponto de vista
mesquinho e acanhado dos interesses de seitas e de castas.
Além disso, estas citações provarão que, se Sócrates
e Platão pressentiram a ideia cristã, em seus escritos também se nos deparam os
princípios fundamentais do Espiritismo.
Resumo da doutrina de Sócrates e de Platão
I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua
encarnação, existia unida aos tipos primordiais das ideias do verdadeiro, do
bem e do belo; separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais
ou menos atormentada pelo desejo de voltar a ele.
Não se pode enunciar mais claramente a distinção e
independência entre o princípio inteligente e o princípio material. É, além
disso, a doutrina da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de
um outro mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do
mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a
morte. É, finalmente, o gérmen da doutrina dos Anjos decaídos.
II. A alma se transvia e perturba, quando se serve
do corpo para considerar qualquer objeto; tem vertigem, como se estivesse
ébria, porque se prende a coisas que estão, por sua natureza, sujeitas a
mudanças; ao passo que, quando contempla a sua própria essência, dirige-se para
o que é puro, eterno, imortal, e, sendo ela dessa natureza, permanece aí
ligada, por tanto tempo quanto possa. Cessam então os seus transviamentos, pois
que está unida ao que é imutável e a esse estado da alma é que se chama
sabedoria.
Assim, ilude a si mesmo o homem que considera as
coisas de modo terra a terra, do ponto de vista material. Para as apreciar com
justeza, tem de as ver do alto, isto é, do ponto de vista espiritual. Aquele,
pois, que está de posse da verdadeira sabedoria, tem de isolar do corpo a alma,
para ver com os olhos do Espírito. É o que ensina o Espiritismo. (Cap. II, n.º
5.)
III. Enquanto tivermos o nosso corpo e a alma se
achar mergulhada nessa corrupção, nunca possuiremos o objeto dos nossos
desejos: a verdade. Com efeito, o corpo nos suscita mil obstáculos pela
necessidade em que nos achamos de cuidar dele. Ao demais, ele nos enche de
desejos, de apetites, de temores, de mil quimeras e de mil tolices, de maneira
que, com ele, impossível se nos torna ser ajuizados, sequer por um instante.
Mas, se não nos é possível conhecer puramente coisa alguma, enquanto a alma nos
está ligada ao corpo, de duas uma: ou jamais conheceremos a verdade, ou só a
conheceremos após a morte. Libertos da loucura do corpo, conversaremos então,
lícito é esperá-lo, com homens igualmente libertos e conheceremos, por nós
mesmos, a essência das coisas. Essa a razão por que os verdadeiros filósofos se
exercitam em morrer e a morte não se lhes afigura, de modo nenhum, temível.
Está aí o princípio das faculdades da alma
obscurecidas por motivo dos órgãos corporais e o da expansão dessas faculdades
depois da morte. Mas trata-se apenas de almas já depuradas; o mesmo não se dá
com as almas impuras. (O Céu e o Inferno, 1ª Parte, cap. II; 2ª Parte, cap. I.)
IV. A alma impura, nesse estado, se encontra
oprimida e se vê de novo arrastada para o mundo visível, pelo horror do que é
invisível e imaterial. Erra, então, diz-se, em torno dos monumentos e dos
túmulos, junto aos quais já se têm visto tenebrosos fantasmas, quais devem ser
as imagens das almas que deixaram o corpo sem estarem ainda inteiramente puras,
que ainda conservam alguma coisa da forma material, o que faz que a vista
humana possa percebê-las. Não são as almas dos bons; são, porém, as dos maus,
que se veem forçadas a vagar por esses lugares, onde arrastam consigo a pena da
primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites
inerentes à forma material de que se revestiram as reconduzam a um corpo.
Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida
constituíam objeto de suas predileções.
Não somente o princípio da reencarnação se acha aí
claramente expresso, mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da
matéria é descrito qual o mostra o Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no
tópico acima se diz que a reencarnação num corpo material é consequência da
impureza da alma, enquanto as almas purificadas se encontram isentas de
reencarnar. Outra coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma,
que boas resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos
adquiridos, traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e ideias
intuitivas do que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência
lhe marca um progresso intelectual e moral. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte:
Exemplos.)
V. Após a nossa morte, o gênio (daimon, demônio),
que nos fora designado durante a vida, leva-nos a um lugar onde se reúnem todos
os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados. As almas, depois de
haverem estado no Hades o tempo necessário, são reconduzidas a esta vida em
múltiplos e longos períodos.
É a doutrina dos Anjos guardiães, ou Espíritos
protetores, e das reencarnações sucessivas, em seguida a intervalos mais ou
menos longos de erraticidade.
VI. Os demônios ocupam o espaço que separa o céu da
Terra; constituem o laço que une o Grande Todo a si mesmo. Não entrando nunca a
divindade em comunicação direta com o homem, é por intermédio dos demônios que
os deuses entram em comércio e se entretêm com ele, quer durante a vigília,
quer durante o sono.
A palavra daimon, da qual fizeram o termo demônio,
não era, na antiguidade, tomada à má parte, como nos tempos modernos. Não
designava exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos, em geral,
dentre os quais se destacavam os Espíritos superiores, chamados deuses, e os
menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que comunicavam diretamente com
os homens. Também o Espiritismo diz que os Espíritos povoam o espaço; que Deus
só se comunica com os homens por intermédio dos Espíritos puros, que são os
incumbidos de lhe transmitir as vontades; que os Espíritos se comunicam com
eles durante a vigília e durante o sono. Ponde, em lugar da palavra demônio, a
palavra Espírito e tereis a doutrina espírita; ponde a palavra anjo e tereis a
doutrina cristã.
VII. A preocupação constante do filósofo (tal como o
compreendiam Sócrates e Platão) é a de tomar o maior cuidado com a alma, menos
pelo que respeita a esta vida, que não dura mais que um instante, do que tendo
em vista a eternidade. Desde que a alma é imortal, não será prudente viver
visando à eternidade?
O Cristianismo e o Espiritismo ensinam a mesma
coisa.
VIII. Se a alma é imaterial, tem de passar, após
essa vida, a um mundo igualmente invisível e imaterial, do mesmo modo que o
corpo, decompondo-se, volta à matéria. Muito importa, no entanto, distinguir
bem a alma pura, verdadeiramente imaterial, que se alimente, como Deus, de
ciência e pensamentos, da alma mais ou menos maculada de impurezas materiais,
que a impedem de elevar-se para o divino e a retêm nos lugares da sua estada na
Terra.
Sócrates e Platão, como se vê, compreendiam
perfeitamente os diferentes graus de desmaterialização da alma. Insistem na
diversidade de situação que resulta para elas da sua maior ou menor pureza. O
que eles diziam, por intuição, o Espiritismo o prova com os inúmeros exemplos
que nos põe sob as vistas. (O Céu e o Inferno, 2ª Parte.)
IX. Se a morte fosse a dissolução completa do homem,
muito ganhariam com a morte os maus, pois se veriam livres, ao mesmo tempo, do
corpo, da alma e dos vícios. Aquele que guarnecer a alma, não de ornatos
estranhos, mas com os que lhe são próprios, só esse poderá aguardar
tranquilamente a hora da sua partida para o outro mundo.
Equivale isso a dizer que o materialismo, com o
proclamar para depois da morte o nada, anula toda responsabilidade moral
ulterior, sendo, conseguintemente, um incentivo para o mal; que o mau tem tudo
a ganhar do nada. Somente o homem que se despojou dos vícios e se enriqueceu de
virtudes, pode esperar com tranquilidade o despertar na outra vida. Por meio de
exemplos, que todos os dias nos apresenta, o Espiritismo mostra quão penoso é,
para o mau, o passar desta à outra vida, a entrada na vida futura. (O Céu e o
Inferno, 2ª Parte, cap. I.)
X. O corpo conserva bem impressos os vestígios dos
cuidados de que foi objeto e dos acidentes que sofreu. Dá-se o mesmo com a
alma. Quando despida do corpo, ela guarda, evidentes, os traços do seu caráter,
de suas afeições e as marcas que lhe deixaram todos os atos de sua vida. Assim,
a maior desgraça que pode acontecer ao homem é ir para o outro mundo com a alma
carregada de crimes. Vês, Cálicles, que nem tu, nem Pólux, nem Górgias podereis
provar que devamos levar outra vida que nos seja útil quando estejamos do outro
lado. De tantas opiniões diversas, a única que permanece inabalável é a de que
mais vale receber do que cometer uma injustiça e que, acima de tudo, devemos
cuidar, não de parecer, mas de ser homem de bem. (Colóquios de Sócrates com
seus discípulos, na prisão.)
Depara-se-nos aqui outro ponto capital, confirmado
hoje pela experiência: o de que a alma não depurada conserva as ideias, as
tendências, o caráter e as paixões que teve na Terra. Não é inteiramente cristã
esta máxima: mais vale receber do que cometer uma injustiça? O mesmo pensamento
exprimiu Jesus, usando desta figura: “Se alguém vos bater numa face,
apresentai-lhe a outra.” (Cap. XII, nos 7 e 8.)
XI. De duas uma: ou a morte é uma destruição
absoluta, ou é passagem da alma para outro lugar. Se tudo tem de extinguir-se,
a morte será como uma dessas raras noites que passamos sem sonho e sem nenhuma
consciência de nós mesmos. Todavia, se a morte é apenas uma mudança de morada,
a passagem para o lugar onde os mortos se têm de reunir, que felicidade a de
encontrarmos lá aqueles a quem conhecemos! O meu maior prazer seria examinar de
perto os habitantes dessa outra morada e distinguir lá, como aqui, os que são
dignos dos que se julgam tais e não o são. Mas, é tempo de nos separarmos, eu
para morrer, vós para viverdes. (Sócrates aos seus juízes.)
Segundo Sócrates, os que viveram na Terra se
encontram após a morte e se reconhecem. Mostra o Espiritismo que continuam as
relações que entre eles se estabeleceram, de tal maneira que a morte não é nem
uma interrupção, nem a cessação da vida, mas uma transformação, sem solução de
continuidade. Houvessem Sócrates e Platão conhecido os ensinos que o Cristo
difundiu quinhentos anos mais tarde e os que agora o Espiritismo espalha, e não
teriam falado de outro modo. Não há nisso, entretanto, o que surpreenda, se
considerarmos que as grandes verdades são eternas e que os Espíritos adiantados
hão de tê-las conhecido antes de virem à Terra, para onde as trouxeram; que
Sócrates, Platão e os grandes filósofos daqueles tempos bem podem, depois, ter
sido dos que segundaram o Cristo na sua missão divina, escolhidos para esse fim
precisamente por se acharem, mais do que outros, em condições de lhe
compreenderem as sublimes lições; que, finalmente, pode dar-se façam eles agora
parte da plêiade dos Espíritos encarregados de ensinar aos homens as mesmas
verdades.
XII. Nunca se deve retribuir com outra uma
injustiça, nem fazer mal a ninguém, seja qual for o dano que nos hajam causado.
Poucos, no entanto, serão os que admitam esse princípio, e os que se
desentenderem a tal respeito nada mais farão, sem dúvida, do que se votarem uns
aos outros mútuo desprezo.
Não está aí o princípio de caridade, que prescreve
não se retribua o mal com o mal e se perdoe aos inimigos?
XIII. É pelos frutos que se conhece a árvore. Toda
ação deve ser qualificada pelo que produz: qualificá-la de má, quando dela
provenha mal; de boa, quando dê origem ao bem.
Esta máxima: “Pelos frutos é que se conhece a
árvore”, se encontra muitas vezes repetida textualmente no Evangelho.
XIV. A riqueza é um grande perigo. Todo homem que
ama a riqueza não ama a si mesmo, nem ao que é seu; ama a uma coisa que lhe é
ainda mais estranha do que o que lhe pertence. (Cap. XVI.)
XV. As mais belas preces e os mais belos sacrifícios
prazem menos à Divindade do que uma alma virtuosa que faz esforços por se lhe
assemelhar. Grave coisa fora que os deuses dispensassem mais atenção às nossas
oferendas, do que à nossa alma; se tal se desse, poderiam os mais culpados
conseguir que eles se lhes tornassem propícios. Mas, não: verdadeiramente
justos e retos só o são os que, por suas palavras e atos, cumprem seus deveres
para com os deuses e para com os homens. (Cap. X, nos 7 e 8.)
XVI. Chamo homem vicioso a esse amante vulgar, que
mais ama o corpo do que a alma. O amor está por toda parte em a natureza, que
nos convida ao exercício da nossa inteligência; até no movimento dos astros o
encontramos. É o amor que orna a natureza de seus ricos tapetes; ele se enfeita
e fixa morada onde se lhe deparem flores e perfumes. É ainda o amor que dá paz
aos homens, calma ao mar, silêncio aos ventos e sono à dor.
O amor, que há de unir os homens por um laço
fraternal, é uma consequência dessa teoria de Platão sobre o amor universal,
como lei da natureza. Tendo dito Sócrates que “o amor não é nem um deus, nem um
mortal, mas um grande demônio”, isto é, um grande Espírito que preside ao amor
universal, essa proposição lhe foi imputada como crime.
XVII. A virtude não pode ser ensinada; vem por dom
de Deus aos que a possuem.
É quase a doutrina cristã sobre a graça; mas, se a
virtude é um dom de Deus, é um favor e, então, pode perguntar-se por que não é
concedida a todos. Por outro lado, se é um dom, carece de mérito para aquele
que a possui. O Espiritismo é mais explícito, dizendo que aquele que possui a
virtude a adquiriu por seus esforços, em existências sucessivas, despojando-se
pouco a pouco de suas imperfeições. A graça é a força que Deus faculta ao homem
de boa vontade para se expungir do mal e praticar o bem.
XVIII. É disposição natural em todos nós a de nos
apercebermos muito menos dos nossos defeitos, do que dos de outrem.
Diz o Evangelho: “Vedes a palha que está no olho do
vosso próximo e não vedes a trave que está no vosso.” (Cap. X, nos 9 e 10.)
XIX. Se os médicos são malsucedidos, tratando da
maior parte das moléstias, é que tratam do corpo, sem tratarem da alma. Ora, não
se achando o todo em bom estado, impossível é que uma parte dele passe bem.
O Espiritismo fornece a chave das relações
existentes entre a alma e o corpo e prova que um reage incessantemente sobre o
outro. Abre, assim, nova senda para a ciência. Com o lhe mostrar a verdadeira
causa de certas afecções, faculta-lhe os meios de as combater. Quando a ciência
levar em conta a ação do elemento espiritual na economia, menos frequentes
serão os seus maus êxitos.
XX. Todos os homens, a partir da infância, muito mais
fazem de mal, do que de bem.
Essa sentença de Sócrates fere a grave questão da
predominância do mal na Terra, questão insolúvel sem o conhecimento da
pluralidade dos mundos e da destinação do planeta terreno, habitado apenas por
uma fração mínima da humanidade. Somente o Espiritismo resolve essa questão,
que se encontra explanada aqui adiante, nos capítulos II, III e V.
XXI. Ajuizado serás, não supondo que sabes o que
ignoras. Isso vai com vistas aos que criticam aquilo de que desconhecem até
mesmo os primeiros termos.
Platão completa esse pensamento de Sócrates,
dizendo: “Tentemos, primeiro, torná-los, se for possível, mais honestos nas
palavras; se não o forem, não nos preocupemos com eles e não procuremos senão a
verdade. Cuidemos de instruir-nos, mas não nos injuriemos.” É assim que devem
proceder os espíritas com relação aos seus contraditores de boa ou má-fé.
Revivesse hoje Platão e acharia as coisas quase como no seu tempo e poderia
usar da mesma linguagem. Também Sócrates toparia criaturas que zombariam da sua
crença nos Espíritos e que o qualificariam de louco, assim como ao seu
discípulo Platão.
Foi por haver professado esses princípios que
Sócrates se viu ridiculizado, depois acusado de impiedade e condenado a beber
cicuta. Tão certo é que, levantando contra si os interesses e os preconceitos
que elas ferem, as grandes verdades novas não se podem firmar sem luta e sem
fazer mártires.
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