Falar sobre a vida de
Cornélio Pires, se não é em presa das mais arrojadas, é, contudo, das mais
difíceis à face da riqueza de fatos que lhe pontilharam o jornadear de
autêntico homem do povo, poeta, folclorista, conferencista, cinegrafista,
radialista, jornalista, contista - um mestre do humorismo brasileiro, daquele
humorismo sadio e bem nacional, com características inconfundíveis.
Filho de Raimundo Pires de Campos Camargo e de D. Ana Joaquina Campos Pinto, nasceu Cornélio em Tietê, Estado de São Paulo, no dia 13 de julho de 1884, e desencarnou na capital paulista, a 17 de fevereiro de 1958, guardando-se-lhe o veículo físico na terra natal.
De infância movimentada
entre folguedos mil às margens do Tietê, não se entregou quanto seria de
desejar à disciplina estudantil. Mais tarde, em São Paulo, reconheceu a
necessidade de convivência com os livros e, após a tentativa frutífera de
partilhar um concurso para a Faculdade de Farmácia, instado pelo mineiro Lúcio
Brandão passou Cornélio Pires a desempenhar modestas atividades na redação de O
Comércio de São Paulo, sofrendo, inicialmente, dificuldades próprias dos
iniciantes. Mas o distinto jornalista, que lhe granjeara a colocação, não se
cansava de auxiliar o futuro autor de Musa Caipira, em tudo o que lhe fosse
possível.
Desse emprego, passou
Cornélio para o jornal O São Paulo, onde trabalhava seu primo Amadeu Amaral.
Segundo Joffre Martins Veiga, quando deixava a sala dos redatores daquele
órgão, Amadeu Amaral recomendou a ele: - Seja bom, Cornélio...
E o distinto autor de A Vida
Pitoresca de Cornélio Pires acrescenta: Conselho que o grande humorista sempre
seguiu em sua exuberante existência. Ninguém amou tanto sua gente como Cornélio
Pires; ninguém se preocupou tanto com seus semelhantes como esse homem, que
foi, antes de tudo, um bom. A bondade foi o traço característico de sua
individualidade, sublinhada com o desprendimento material. Alma simples,
coração maior do que o corpo, ele vivia eternamente preocupado com a felicidade
e o bem-estar dos outros. Era um coração aberto, sempre pronto para servir a
todos que dele se aproximassem. Impressionava pelo calor humano que inspirava.
Nunca negou nada a ninguém. Seu jeito simples, sua fala mansa, sua fisionomia
bonacheirona, revelavam bondade, irradiavam simpatia, infundiam confiança...
Cornélio foi ainda grande
amigo do poeta Martins Fontes, que dizia encontrar nele um puro bandeirante, um
artista incansável, enobrecedor da Pátria e enriquecedor da língua.
Em diversas cidades do
interior de São Paulo, tentou Cornélio Pires conseguir meios de subsistência, a
fim de coligir dados sobre o ambiente e o homem da vida ruralista, através dos
quais, mais tarde, principalmente após a sugestão de Amadeu Amaral para que se
tornasse escritor regionalista, surgiria como um dos maiores divulgadores do
nosso folclore.
Em fevereiro de 1910, lança
a lume Musa Caipira, com capa de Voltolino, seu grande amigo.
O aparecimento de Musa Caipira
foi saudado pela crítica, por seu conteúdo tipicamente brasileiro diz o
biógrafo de Cornélio Pires, acrescentando, páginas adiante: A obra do aedo
tieteense é autenticamente caipira. Ele mergulhou no coração de sua gente e de
lá trouxe para a literatura toda a riqueza da alma simples e boa do caboclo.
Sylvio Romero, crítico dos
mais talentosos no Brasil, em carta ao poeta, assim se expressava:
Apreciei imensamente o
chiste, a cor local, a graça, a espontaneidade de suas produções, que, além do
seu valor intrínseco, são um ótimo documento para o estudo dos brasileirismos
da nossa linguagem. E mais adiante: ... o gênero que cultiva é, muito ao
contrário do que geralmente se pensa, cheio de grandes dificuldades.
De revisor de O Estado de
São Paulo, passou Cornélio a cooperar em O Pirralho, isso em 1914.
Perdendo o emprego na
imprensa, resolveu dar um espetáculo na condição de caipira humorista, em 1911,
na própria terra natal. Tornou-se mais tarde um verdadeiro rapsodo. Perambulava
em várias regiões do interior paulista e por diversos Estados brasileiros,
apresentando seus magníficos números.
Impossível continuar
seguindo a trajetória de Cornélio Pires...
Cheguemos em 1946, quando o
rapsodo tieteense era já consagrado, e andava de cidade em cidade com seu Teatro
Ambulante Gratuito Cornélio Pires.
Com o decorrer dos tempos,
volta a Tietê e, sempre preocupado com o bem-estar do próximo, compra uma
chácara nas imediações da cidade e funda um lar para menores, a Granja de
Jesus, cuja conclusão não pôde ver.
Quando desencarnou, já
espírita convicto, Cornélio preparava a Coletânea Espírita. Antes, já publicara
páginas primorosas de fundo essencialmente espírita...
A propósito de sua conversão
à Doutrina Espírita, vale a pena transcrever as confissões do próprio escritor,
estampadas sob o título Porque me tornei espírita:
"Caipirinha, tímido,
vim de Tietê para a Capital em começos de 1901. Vim morar em casa de minha tia,
dona Belizária Ribeiro, viúva do grande filósofo e polemista invicto, o
gramático e romancista Júlio Ribeiro. Minha tia, que já havia criado uma
ninhada de sobrinhos e parentes e não parentes, facilitando-lhes os estudos e
perdoando calotes de estudantes farristas, vestindo e dando livros a estudantes
sem recursos, sempre achou maneira de tirar da sua pobreza de dona de pensão,
daqueles tempos, à rua da Quitanda n.11, o necessário para os necessitados.
Era protestante aquela santa
criatura que ficou conhecidíssima de diversas gerações de bacharéis em Direito,
engenheiros, professores e comerciários. Logo de início pôs-me o Evangelho nas
mãos e mandou-me para a escola instalada nos fundos da Igreja Presbiteriana, à
rua 24 de Maio. Ali fui aluno daqueles belos e cultos espíritos que, na matéria
se chamaram Eduardo Carlos Pereira e Benedito Ferraz de Campos; homens que
pregavam a letra do Evangelho e, com seus exemplos, o espírito vivificador.
Li os Evangelhos e, mesmo
não lhes alcançando o espírito, fiquei encantado com os ensinamentos de Jesus.
Quando ia a Tietê falava a todos sobre a doutrina de Jesus e despertei o
interesse de minha mãe e de minhas irmãs pelos Evangelhos.
Tais benefícios receberemos
desse livro, que, mesmo não crendo, ao irmão para o Espaço, para lá levamos a
letra e mais fácil nos será alcançarmos o seu espírito, a sua luz - e note-se
que dificilmente baixam Espíritos de protestantes, especialmente de ministros,
para serem esclarecidos; creio que, no Espaço, eles são esclarecidos com grande
facilidade por já levarem na bagagem os conhecimentos evangélicos.
Conhecedor dos Evangelhos, mais
tarde, comecei a me entristecer. Cá, no meu íntimo, minha Razão não queria
aceitar um Deus que criava filhos para depois dar preferência a uns,
sacrificando a outros; um Deus que, sendo Amor e Piedade, criava entes fracos
para depois dá-los ao fogo eterno. (Hoje compreendo que se o erro for eterno,
eterno, logicamente, será o "inferno".)
Comecei a me entristecer e
grande risco corri de cair na descrença.
Comecei a encontrar
contradições nos Evangelhos... Jesus dissera que não vivera alterar a lei, mas
confirmá-la. No entanto, a lei mandava: - "Olho por olho, dente por
dente"; e Jesus me dizia: - "Perdoa aos teus inimigos."
A lei mandava que morressem
a pedradas aquelas que fossem apanhadas em adultério; e Jesus dizia à adúltera,
depois que seus perseguidores fugiram, ante a frase "aquele que não tiver
pecado, atire a primeira pedra" - "Alguém te condenou?" -
"Ninguém, Senhor." - "Vai, não peques mais, pois eu também não
te condeno." Contradições... contradições...
Quando os ministros me
perguntavam porque não fazia minha profissão de Fé, eu lhes apresentava essas
objeções. Eles me respondiam com contristadora, dogmática e sofistica teologia,
e maior era a minha confusão.
É que eu estava apegado à
letra e nem sabia que os primeiros apóstolos eram analfabetos e que as seleções
dos tópicos evangélicos haviam passado por traduções e retraduções e que deles
eu devia aproveitar a doutrina e não as palavras que, na pobreza da linguagem
humana, raramente traduzem integralmente aquilo que queremos dizer.
Eu acreditava num Pai de
todos nós, indiferentes, ateus, católico-romanos, protestantes, muçulmanos,
maometanos, budistas, e dos indígenas e dos irracionais. Eu queria um Deus que
aceitasse a prece de todos os seus filhos, subdivididos em seitas religiosas,
mas todos buscando a um Pai, Criador de todas as coisas, praticando boas obras.
Eu queria essa religião e
não a encontrava e me entristecia, desorientado, fugindo, como podia, à
descrença. Fora encontrar o meu maior tropeço justamente nos Evangelhos! Que
coisa dolorosa! É que a letra me estava matando aos poucos e logo eu seria um
dos "mortos que enterram seus mortos".
Chegou, porém, o meu dia -
graças a Deus -, o mais feliz durante a minha estada na Terra!
Para chegar, porém, a esse
dia, passei por interessantes peripécias. Indo a Caxambu - era meu - era meu
motorista o Sr. José Minholo -, lá estive uns dias e seguimos para Lambari.
Nessa cidade o motorista, batendo a mão na testa, disse-me:
-Seu Cornélio... esqueci a
bolsinha de chaves da porta, contacto e pneu de estepe, na garagem onde
guardamos o carro, em Caxambu! Liguei o motor sem perceber, com chave
sobressalente... Como vai ser agora, se estoura um pneu?
-Não há outro recurso;
voltemos a Caxambu.
Realmente voltamos e nada
adiantou discutir com o dono da garagem. As chaves haviam desaparecido. Que
fazer? Escrevi à Casa Cássio Muniz & Cia., mandando o número do motor e
pedindo novas chaves para Poços de Caldas.
Que fosse o que Deus
quisesse.
Atravessando o sul de Minas,
via Varginha, cheguei a Poços de Caldas e lá não recebi as chaves.
Que maçada! Escrevi,
pedindo-as para São João da Boa Vista, e, lá chegando, nada de chaves...
Ali mandei lavar o carro,
tirar os tapetes e passar o aspirador de pó no assoalho e por baixo dos
assentos. Segui para Lindoia e Serra Negra. Andando sempre muito doente,
constantemente atordoado, comprei uma caixa de "Eparseno" e fui tomar
a primeira injeção. Eu e o farmacêutico
ficamos impressionados: três
agulhas foram entortadas; não penetravam, e eu não quis mais saber de histórias...
Apesar de não ser supersticioso, disse logo ao boticário: "Desisto; aqui
tem coisa"...
Prosseguindo na minha vida
de judeu-errante, dias depois estava em São Carlos, para onde pedira as
célebres chaves, que lá também não chegaram. Nessa cidade, eu, que não visitava
ninguém, senti irresistível vontade de visitar meu amigo Lobo e lá me fui a sua
casa.
Palestrávamos, quando chegou
um pretinho, cozinheiro, o Alfredo, e que foi muito festejado pelos donos da
casa, e logo me disse o Lobo:
- Este é um médium sonâmbulo
formidável!
Brinquei com o amigo:
- Cuidado que o Juqueri está
lotado...
Mas, assustado, vi o Alfredo
entrar em convulsões e logo o Espírito, depois de nos saudar, disse:
- Aqui, o meu amigo da
esquerda - indicando-me - fez bem em não tomar as injeções; aquilo é arsênico e
o meu irmão tem o fígado em péssimo estado.
E receitou-me chá de uma
planta medicinal e, contra a dispepsia, pele de moela de frango reduzida a pó
impalpável, dizendo-me que, vivendo eu em hotéis, fácil me seria conseguir as moelas.
Fiquei impressionadíssimo
com o fato, pois nem ao Lobo contara o caso das injeções.
Desde então comecei a me
impressionar cada vez mais.
Segui viagem e, depois de
muitos ziguezagues, chegamos a Novo Horizonte, sempre temendo um estouro de
pneu... Assim que chegamos, tomei de minha maquinazinha fotográfica 6x9 e, no
quintal, junto ao automóvel, deu-me na fantasia mandar o José "bater"
uma chapa. Outra surpresa:
feita a revelação e tirada a
cópia, aparece-me sobre a cabeça, firmando os pés traseiros em minha testa,
vendo-se-lhe as serrilhas das pernas, uma barata! Medida a proporção do seu
comprimento, seria do tamanho de meu rosto...
- Aqui tem coisa,
"seu" Zé... - dizia eu, desconfiado.
De Novo Horizonte
dirigimo-nos à Noroeste, sempre pedindo as chaves para determinadas cidades, e
as chaves não vinham. Dias depois, porém, ao voltarmos de Valparaíso, paramos
para almoçar no hotel do Pires, em Pirajuí.
Ao tomarmos o carro tivemos
a incrível surpresa de encontrar a bolsinha de couro, com as chaves dentro,
sobre o tapete, onde o motorista teria de por os pés!!!
- Aqui tem coisa, Zé... -
continuava eu desconfiado. Maior, porém, foi a nossa surpresa quando, dali a cinco
quilômetros, estourou o pneu!
- Graças a Deus, temos chave
- exultou o Zé.
Viaja daqui, viaja dali,
fomos a Curitiba e de lá a Ponta Grossa. No hotel do Bismara contava eu o caso
da fotografia, quando um senhor de certa idade, a meu lado, pediu-me para
vê-la. Notei que o homem (hoje o meu bom confrade João Viana) estava como que
concentrado, com a fotografia na mão, quando, com voz grossa e amiga, me disse:
- É uma troça inocente...
Percebendo que se tratava de
um médium, pedi:
- Escreva isso nas costas da
fotografia...
Tomando de um lápis
escreveu: "É uma troça inocente. - Emílio."
Seria o meu Emílio de
Menezes? E, antes que perguntasse, respondeu-me:
- Sim, sou quem estás
pensando.
Tendo o médium me dito que
julgava que esse Espírito estivesse, em melhor situação, fiquei aflito e
penalizado, sem saber, então, a maneira de auxiliá-lo, mas o Espírito logo me
confortou, dizendo-me:
- Sempre o mesmo velho
coração amigo... Não te preocupes comigo, pois, estando mal aqui, estou um
milhão de vezes melhor que vocês aí...
Regressamos a Curitiba. Ali
me esperava outro fato para melhor me chamar a atenção. Fui apresentado ao Hugo
Marçal e subimos ao meu quarto no Brás-Hotel, onde hoje funciona o Majestoso.
Logo que entramos, Hugo ficou tomado do Espírito, de surpresa, e, empunhando um
lápis, abriu meu bloco e
escreveu de diante para trás, assinando.
Fui ao espelho e, oh
maravilha! Dizia o bilhete: "Amigo Cornélio. Abraços e não beijos; eu não
te beijaria nem por um conto. - Emílio."
Ora, eu nem tempo tivera
para contar o caso de Ponta Grossa. Lembrei-me logo de conferir as assinaturas:
perfeitamente iguais!
Recebi também, nessa mesma
ocasião, uma mensagem assinada por O.B. recomendando-me: "Leia, estude,
medite e ore." E então, pela primeira vez, comprei livros espíritas.
"No Invisível" foi a primeira escolha, mas um dia, ao ver "O Livro
dos Espíritos", de Kardec, eu, que temia até tocar num livro que trouxesse
na capa esse nome, abri-lhe a esmo uma página e li: "É preferível recusar
noventa e nove verdades a aceitar uma só mistificação." Que me dizem!!!
Pois os espíritas concordam que podem ser mistificados!? E eu, que tanto
combatia o Espiritismo, perdi o medo e comprei "O Evangelho segundo o
Espiritismo", "O Livro dos Espíritos" e o "Livro dos
Médiuns". Depois, não houve mãos a medir. Li as obras de Léon Denis, de
Bozzano, de Moses, de De Rochas, do Padre Alta, de Delanne, de Crookes, do
Padre Marchal, de Fernando de Lacerda, de Francisco Xavier, de Osvaldo Melo, de
Inácio Ferreira, Romeu A. Camargo, Vinícius, Fuzeira, Owen, D'Argonel, Vives,
Findlay, Quintão, Imbassahy, Sayão e de tantos mais que nem é possível
enumerar, além dos artigos de Leopoldo Machado, não perdendo as irradiações de
Odilon Negrão e outros. Era a sede da Verdade que eu queria saciar de uma vez,
mas...
Tive então a felicidade de,
em Uberlândia, entrar em contacto com Bezerra de Menezes que, logo de início,
me aconselhou:
- Calma, meu amigo...
Calma... Chegaste à Fonte da Água Viva, mas toma-a aos poucos... Cuidado, muito
e muito cuidado com o fanatismo; ele é mil vezes pior que a descrença.
Porém, lá muito dentro de
mim, continuava, como um espinho doloroso, o caso das contradições dos
Evangelhos, mas, antes que eu o interpelasse, disse-me Bezerra:
- Onde estão as contradições
nos Evangelhos?
Fiquei chocado pelo
inesperado da pergunta e citei os casos.
- E Jesus não alterou um til
da Lei de Deus - disse-me.
- Como assim?
E ele me respondeu com outra
pergunta e todo o meu espírito se iluminou na justa compreensão:
- Qual é a Lei de Deus, meu
amigo?
- Os Dez Mandamentos...
- E Jesus alterou um só
deles?
- Não...
- Então não confundas a Lei
de Deus com as leis que estão na Bíblia e que eram leis dos homens para os
homens de grande atraso e profunda ignorância. Seus autores aparentes eram
médiuns a ditar leis de acordo com a época, o local e as necessidades de cada
povo.
Continuando nossa conversa,
tão franca e elucidativa, disse-lhe:
- O que me apavora no
Espiritismo é aquela passagem: "Pode o Espírito do mal transformar-se num
anjo de luz para nos seduzir"...
- Mas vê também a passagem
que diz: "Pelo fruto conhecerás a árvore; se o fruto é bom, boa será a
árvore, pois árvores más não podem produzir bom fruto", e para isso foi
que João, o evangelista, recomendou: "Aprendei a conhecer os Espíritos que
são de Deus." Aí mesmo, na
Terra, vocês, com um pouco
de argúcia, não distinguem logo o mistificador do homem de bem? Ele me
mistificará uma vez, mas não duas, se estiveres atento. Quanto à prevenção
contra os de cá: oração e vigilância. E saibas que os "curiosos" e
fúteis são as vítimas escolhidas pelos enganadores.
Mais tarde aprendi com Pai
Jacob, respondendo a um que queria investigar os mais profundos mistérios de
Deus, fazendo perguntas irrespondíveis, que, como disse o Espírito:
"Formiga, quando quer se perder, cria asas..." e terminou dizendo ao
curioso: "Avua munto, iôiô...
avua pra vê"...
Quem mal emprega a
fecundidade de sua imaginação, mais facilmente será obsidiado. Ovelha que se
arreda do rebanho está mais sujeita a se apanhada pelo lobo.
Assim foi que, recebendo
claras instruções, me tornei espírita, dos menorzinhos e dos mais ignorantes."
Antes de entrarmos
propriamente num estudo geral das poesias que enfeixamos nesta obra, alinhemos
a bibliografia do distinto poeta: Musa Caipira, 1910; Versos 1912; Versos
Velhos, 1912; Cenas e Paisagens de Minha Terra, 1912; Conversas ao pé do fogo,
1921; Cenas e Paisagens
de Minha Terra (Musa
Caipira), 1921; Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho, o Queima Campo,
1925; Tragédia Cabocla, 1926; Patacoadas, 1926; Seleta Caipira, 1927; Almanaque
do Saci, 1927; Mixórdia, 1927; Meu Samburá, 1928; Sambas e Caterês, 1932;
Tarrafadas, 1932; Chorando e Rindo, 1933; De Roupa Nova..., 1933; Só Rindo,
1934; Tá no Bocó, 1935; Quem conta um conto... e Outros contos... (Coisas do
Passado), 1934; Enciclopédia de Anedotas e Curiosidades, 1945; Coisas d'Outro
Mundo, 1944; Onde estás, ó Morte?, 1947. As duas últimas obras encerram
exclusivamente assuntos de
Espiritismo.
O Espírito de Cornélio Pires
revela em tudo o espírito de Cornélio Pires: o seu humorismo, do princípio ao
fim, aquele mesmo humorismo a que se referiu Joffre Martins Veiga e que o fazia
empolgar as plateias, impondo-se à admiração do imenso público brasileiro,
graças a seu espírito e a sua capacidade de fazer rir, sem descer à
pornografia, à ofensa pessoal ou ao ridículo alheio. Seu humorismo saudável,
isento das imoralidades que caracterizam esse tipo de literatura refletia a
pureza de sua alma e seu caráter.
De nossa parte, seria
pretender demasiado prosseguir comentando a vida e a obra de Cornélio Pires.
Assim, atentemos apenas para um fato que reputamos bastante curioso, já que
Cornélio foi essencialmente um escritor popular, e o fato a que se refere
Fernando Jorge, em seu livro As Sandálias de Cristo, é dos mais sugestivos. Diz
o erudito autor de Água da Fonte que há uma narrativa de Cornélio no volume
Conversas ao pé do fogo, dado a lume em 1921, que se assemelha, de maneira
notável, a um conto de Pirandello: aquele que se chama Laranjas da Sicília,
assunto do qual o autor de Tutto per Bene extraiu célebre drama de teatro.
Conquanto Fernando Jorge pergunte se haveria ou não uma coincidência, ou uma
identidade de pensamento, o certo é que afirma ter Laranjas da Sicília, na
feição de peça de teatro, aparecido depois de 1925. De qualquer modo, o ilustre
humorista titeense deveria, por esse simples achado de Fernando Jorge, merecer
maiores estudos por parte dos literatos brasileiros. Aliás, o pequeno trecho a
seguir, de Mário da Silva Brito, elucida em parte a razão por que os homens de
letras deixaram Cornélio num injustificável literário: O regionalismo
converte-se, aos poucos, no caboclismo - que é uma espécie de decadência do
regionalismo. A princípio bem representado por Waldomiro Silveira, com as suas
experiências linguísticas e de expressão psicológica de Os Caboclos, o gênero
passa pelas contribuições decorativas dos versos de Paulo Stúbal e anedóticas
de Cornélio Pires, para, em seguida, descambar num processo fácil e falso, em
que pululam mediocridades sem conta. Em último caso, o lúcido historiador do
Modernismo Brasileiro, noutro passo, segundo depoimento de Sérgio Milliet, diz
que alguém chegou a considerar Monteiro Lobato um Cornélio Pires passado a
limpo.
Com relação à semelhança de
ideias entre páginas de escritores famosos, vem a pelo lembrarmos aqui o que
diz Álvaro Lins, à pág. 226 de sua obra Literatura e Vida Literária: Sugiro
fazer-se um estudo de aproximação entre Forsyte Saga, de John Galworthy, e Os
Buddenbrook, de Thomas Mann. Com efeito, é impressionante a semelhança de
sentido, de concepção e de objetivo nos dois romances. Não se trata, so que se
verifica, de um caso de influência, sim de coincidência, como se ambos
houvessem sido envolvidos ao mesmo tempo por uma idêntica sugestão, por uma
atmosfera comum. Cada um deles colocou, em termos de ficção, o mesmo problema
social: um, na Inglaterra; o outro, na Alemanha. A primeira edição de
Buddenbrook é de 1902; o primeiro volume da crônica dos Forsyte apareceu em
1906. Tudo indica que Galsworthy desconhecia então o livro de Thomas Mann,
autor que não dispunha no momento de bastante prestígio para se universalizasse
tão rapidamente uma das suas obras primeiras. Nisto se encontra a principal
curiosidade da aproximação.
Outro fato curioso, é que
João Ribeiro, em O Estado de S. Paulo, de 14/9/1926, escreveu graciosa página,
intitulada O Sacristão, na qual o distinto escritor narra uma história de que
mais tarde, talvez quatro lustros depois, se serve William Somerset Maugham em
sua obra 29 Histórias, lançada no Brasil pela Editora Globo, em magistral conto
intitulado O Zelador da Igreja. Teria o ilustre romancista inglês lido o artigo
de João Ribeiro? É provável que não. Mesmo em livro tal artigo só apareceu em
1962, quando Múcio Leão publicou o famoso João Ribeiro. Estas são coisas que
dão o que pensar, com efeito.
Sem quaisquer outros comentários,
entremos no mundo admirável de O Espírito de Cornélio Pires.
Antes de mais nada, bem se
ajustariam aqui estas palavras de Cornélio Pires, escritas a propósito de
Coisas d'Outro Mundo e dirigidas ao leitor desprevenido: Esperavas um livro de
anedotas que te distraíssem, descansando-te um pouco o espírito, e vais encontrar
uma obra de
conforto para teu Espírito e
muito pasto para a tua inteligência. Mas lê sem espírito preconcebido e crê na
minha sinceridade; fica certo de que minhas intenções são as mais puras e estou
interessado no teu bem-estar mental.
Selecionamos um total de
cento e duas poesias, sendo vinte e um sonetos e trovas as demais.
Procuramos colocar entre um
soneto e outro quatro quadras. Todas as peças de números ímpares são devidas à
psicografia de Francisco Cândido Xavier, e as de números pares à de Waldo
Vieira.
Acresce dizer que todas as
poesias que constam nesta obra foram psicografadas em sessões públicas da
Comunhão Espírita Cristã, a maioria sob o nosso testemunho pessoal e de dezenas
de pessoas de Uberaba e de outras cidades do Brasil e, às vezes, da Argentina e
de outros países vizinhos.
Perceberá o leitor que
alternamos sonetos de um lirismo profundo com outros de humorismo incomparável,
perfeitamente dentro daquele conceito de Amadeu Amaral, em artigo publicado em
O Estado de S. Paulo de 3 de setembro de 1926, a propósito de Patacoadas:
O humorismo de Cornélio não
é uma expressão literária num um meio, nem um condimento. É a matéria constante
e sem mistura dos seus trabalhos. O único objetivo que o preocupa é o próprio
humorismo à boa moda de todos os tempos: fazer rir. E quem ler O Espírito de
Cornélio Pires, há de rir ou sorrir o tempo todo, mas não apenas isso, de vez
que sentirá também o impacto às vezes do estado poético superior, como em
alguns sonetos primorosos, entrando, de imediato, na esfera dos princípios
doutrinários do Espiritismo, notadamente da lei reencarnacionista. A
preocupação de Cornélio Pires, percebe-se logo, é demonstrar a realidade da
reencarnação, e, em segundo plano, o continuísmo da vida após o túmulo, as
sensações experimentadas pelos Espíritos, felizes ou menos felizes, após a
travessia das barreiras da morte, quase sempre fazendo rir ou pensar...
Tais verdades, ele mesmo já
as proclamava em vida, afirmando, outrossim, que o Espiritismo-cristão nos
proporciona a FÉ RACIOCINADA, nos arrebata ao jugo do Dogma e nos ensina a
compreender a DEUS COMO ELE É.
Impossível analisar todos os
poemas constantes do presente livro. De escantilhão, porém, vejamos dois
sonetos psicografados na mesma noite, 13/6/64, isto é, um em seguida do outro,
o primeiro através do lápis do médium Waldo Vieira, intitulado Bota-fora de Nhô
Chico, e o segundo, através de Chico Xavier. Por diversas vezes, registramos
este fato: um mesmo poeta se comunicando pelos dois médiuns na mesma noite,
minutos após o outro, inclusive com admiráveis quadras. Vejamos, pois, o soneto
psicografado por Waldo Vieira:
Caiu Nhô Chico morto, ao fim
da janta, Papou tatu ervado e foi caipora.
O povo segue o enterro, reza
e chora:
- "Coitado de Nhô Chico
Couro D'Anta!"
O avarento vivia de penhora.
Sovinaria nele era já tanta,
Que engastalhava o cuspe na
garganta
Com pena de jogar o cuspe
fora...
Mas Nhô Chico sabia tanto
ensino!
Assunto o céu sereno e não
atino
Por onde sobe ele e se
agasalha...
Pasmo, vejo o caixão roxinho
perto;
Nhô Chico está no corpo, de
olho esperto,
Caçando aflito um bolso na
mortalha...
E, em seguida, o primoroso
Despedida de Vital, pelo médium Francisco Cândido Xavier:
Lua cheia... Na choça a que
se apega,
Morre Vital, velhinho,
olhando o morro...
Por prece, escuta a arenga
do cachorro,
Ganindo nas touceiras da
macega.
Pobre amigo!... Agoniza sem
socorro,
Chora lembrando o milho na
moega...
Oitenta anos de lágrimas
carrega
Na carcaça jogada ao chão
sem forro.
Suando, enxerga um moço na
soleira.
- "Eu sou
leproso..." - avisa em voz rasteira,
Mas diz o moço, envolto em
luz dourada:
- "Vital, eu sou Jesus!
Venha comigo!..."
E o velho sai das chagas de
mendigo
Para um carro de estrelas da
alvorada.
Com relação às trovas, por
exemplo, Waldo Vieira, entre outras, psicografou esta joia de versos
setissílabos:
Grande inscrição de
lembrança
Na campa do João de Souza:
- Afinal, aqui descansa
Quem nunca fez outra cousa.
E Chico Xavier, estoutra, no
mesmo assunto, dentre diversas do mais alto quilate:
Li num sepulcro de pedra:
- Aqui jaz Maria Gaza.
Era mendiga na rua,
Com cinco milhões em casa.
E assim por diante, Cornélio
nos leva ao sublime reino da Poesia (a que poucos poetas chegam),
enternecendo-nos, sobretudo...
Para um estudioso dos
costumes do povo que vive no hinterland brasileiro, esta obra lhe oferece
recursos preciosos, como, verbi gratia,
o caso de Vital. Ainda hoje, a situação de alguns dos nossos irmãos portadores
do mal de Hansen é aquela mesma de Vital em relação aos demais; o que se deu
com Sá Biluva e Tonho Fazendeiro é exatamente o que encontramos nas pequenas
cidades, nos lugarejos e mesmo entre pessoas que habitam as grandes metrópoles;
o caso de Dona Cissa; a atitude de Nhô Quinca é característica de muita gente
que se encontra entre nós; o mesmo se diga de Adão Passoca; e aqueles que
passam a vida inteira qual Zé da Hora; os harpagões do tipo de Tutuca Sapecado,
Nhô Chico, João Cazeca, Calatrava, Maria Gaza, Ormindo, Nhá Cota e Tonho
Macambira; a obsessão de Nico Raimundo é comum a muita gente, da roça e da
cidade; as recomendações ao Zé do Zote e a Nico do Norato servem para inúmeras
pessoas; os que vivem à maneira do devoto Zé Pilão; a recompensa a que fizeram
jus um Nhô Manduco ou uma Nhá Mina.
Com respeito ao soneto que
descreve a morte de Nhá Mina, que situamos entre os melhores de quantos o poeta
desencarnado escreveu através das vias mediúnicas, reconhecemos que ele nos
bouleversa, como diria Manuel Bandeira, citado por Mário de Andrade,
transportando-nos àquele estado absolutamente especial, de que nos fala o autor
de Pauliceia Desvairada, com a diferença de que aqui tudo compreendemos,
enquanto arte e enquanto poesia.
Atentemos, finalmente, para
a tônica principal do livro: o combate à avareza, descrevendo Cornélio, para
tanto, autênticas personagens que poderiam competir com um Harpagon de Molière,
ou um Pai Grandet de Balzac.
Em Antologia dos Imortais,
tivemos oportunidade de chamar a atenção para alguns dos aspectos formais da
poesia corneliana, especialmente no que tange ao prisma rimático e à frequência
com que o poeta lança mão de palavras quais Nhá, Nhô, etc.
Na presente obra, o distinto
rapsodo continua naquela mesma linha de manifestação, sendo de notar-se que a
disposição rímica preferida tem sido a do tipo abba, abba, ccd, eed, para os
sonetos, com variações imensas nas trovas, inclusive algumas nas quais rimam
apenas o segundo e quarto versos, muito do gosto popular.
Digno de nota, sem dúvida,
observar-se a característica da linguagem. Fosse dado ao distinto filólogo Prof.
Sousa da Silveira a leitura de O Espírito de Cornélio Pires, e o autor de
Lições de Português haveria de proclamar que se encontrava diante de um poeta
cuja manifestação se faz em língua portuguesa em tudo dentro da modalidade
brasileira. Com efeito, expressões quais afundava na rede, emborcada na quina
do fogão, Lalau liquidou Quinquim, dar a sapituca, suar em bica, dar um vintém
de mel coado, ao fim da janta, papar tatu ervado, engastalhar o cuspe na
garganta, saber tanto ensino, deitar no ronco e camoeca, sentir calos na
munheca, por preceito em, trazer lombeira no cangote, agarrar no truque e no
calote, pinchar o nome entre..., arrenegar de, espichar (desencarnar), dar na
trela, calo de cotovelo na janela, rasgar o cavaquinho, etc., etc., são expressões,
repetimos, precipuamente brasileiras.
Belíssimas imagens usa-as o
poeta. De passagem, destacamos as seguintes comparações, nas quais o que nem
popular, feito e parecer substituem o como usado por tantos vates de nomeada:
chorar que nem cana na moenda, berrar que nem cabrito, magrela que nem gaveto,
morrer feito sapo no tijuco, parecer cachorro de bom faro, etc.
Julgamo-nos no dever de
encerrar estas notas, sem o que dificilmente o leitor nos perdoará a ousadia de
chegarmos até aqui. Acontece que Cornélio Pires é desses poetas que exigem um
estudo tão aprofundado quanto possível, para que lhe penetremos, de algum modo,
a simplicidade e a grandeza. Cornélio é um mundo de poesia... seus versos lhe
saem do lápis qual linfa cristalina de um manancial... brota... e vem
chegando... te expressar-se nos gêneros mais difíceis - o soneto e a trova -
revela-se autêntico mestre... Beleza conjugada ao ensinamento da Doutrina
Espírita. Através do autor de Musa Caipira aprendemos que a morte não é o fim,
e que a evolução na Lei Reencarnacionista é uma realidade palpável, tanto
quanto a justiça na Lei de Causa e Efeito é uma fatalidade a que não podemos
fugir.
Neste livro, como se não
bastassem os ensinamentos, a indução do estado poético e do humorismo sadio,
tudo, tudo, num conjunto admirável, nos enleva.
Terminando, pedimos vênia
para reverenciar Allan Kardec, no Centenário de O Céu e o Inferno, bem assim
rogar paciência ao leitor para que possamos transcrever o soneto, a nosso ver,
um dos mais bouleversadores, a fim de encerrarmos o nosso longo limiar.
Antes, porém, preciso se
diga que inicialmente tencionávamos analisar, depois de cada peça poética, o
seu conteúdo espírita, mas nos lembramos de que seria abusar do poeta e do
leitor, já que quando a gente atinge aquela comoção, aquela divinização, aquele
transporte que o verdadeiro poeta sempre produzirá como bem disse Mário de
Andrade, qualquer comentário que aduzíssemos seria levado à conta de
excrescência. Esta a razão por que nos limitamos ao que fica exposto, considerando
que sonetos quais Céu, Inferno e Purgatório e Matava por prazer são
perfeitamente compreensíveis à luz da Doutrina Espírita.
Juntos, pois, entremos no
reino da Divina Poesia, com escusas por nos estendermos demasiadamente em nossa
despretensiosa apresentação, que finalizamos em esta obra-prima de Cornélio
Pires ressuscitado dentre os mortos:
A MORTE DE NHÁ MINA
Nhá Mina morre aos poucos,
num palheiro!...
Lembra a orquestra do Mestre
Carmelinho...
Quando moça, rasgava o
cavaquinho
Nas noites de alegria no
terreiro.
Sozinha lembra... A flauta
de Antoninho,
A sanfona de Juca Funileiro,
Depois... o mundaréu triste
e inzoneiro,
Os maus-tratos e as mágoas
do caminho...
Larga o corpo... Ouve
acordes na janela,
A orquestra antiga toca
junto dela,
Juca, Antoninho, Rita, Zico
Prata...
A lua brilha... A noite é
uma beleza!...
Nhá Mina sai... Parece uma
princesa
Que vai casar no céu com
serenata.
Elias Barbosa
(Uberaba, 1º de agosto de 1965.)
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