A questão da versão final do
livro A Gênese de Allan Kardec e os desdobramentos da tese de adulteração de
seu conteúdo após a desencarnação do codificador espírita.
Sinopse do caso
A Gênese é o quinto e
derradeiro livro de Allan Kardec a compor o conjunto das obras básicas do
Espiritismo, sendo este livro considerado por certos estudiosos como a
obra-chave para a compreensão da Revelação Espírita.
Ocorre que a partir da 5ª
edição o conteúdo desse livro foi substancialmente modificado; por ter sido
publicada posteriormente à desencarnação do autor, gerou-se uma polêmica
histórica sobre a autenticidade dessas alterações (se elas foram mesmo feitas
por Kardec) e, com isso, a legalidade desta edição atualizada.
Lançamento da obra
A obra em questão foi
lançada em 6 de janeiro de 1868, com o título original (em francês) La Genèse,
les Miracles et les Prédictions selon le Spiritisme, cuja tradução para o nosso
português é A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo.
Kardec fez o primeiro
anúncio desta obra na Revista Espírita de setembro de 1867, na qual inseriu um
artigo ("Caracteres da Revelação Espírita") que viria a ser o
primeiro capítulo do novo livro. Na primeira nota de rodapé desse artigo, ele
informa que a obra já estava no prelo (para impressão) e seria lançada antes do
final daquele ano (embora o lançamento oficial ficaria para o primeiro mês do
ano seguinte: 1868).
Na edição do mês de novembro
seguinte, da mesma revista (em "Notas bibliográficas"), foi feita
outra publicidade da obra, também prometida para o próximo dezembro.
Curiosidade: na Revista daquele dezembro (1867), Kardec faz alusão ao livro A Gênese no artigo "Algumas palavras à Revista Espírita", enquanto tratava da questão dos "milagres", dizendo: "(...) Aliás, a questão dos milagres é tratada de maneira completa, e com todos os desenvolvimentos que comporta, na segunda parte da nova obra que publicamos...". Será então que já naquele dezembro de 1867 a obra estava à venda? (Note-se bem que Kardec diz "que publicamos" e não "que publicaremos"). Isso pode não ser muito relevante, mas pode servir de parâmetro para não nos apegarmos demasiadamente às letras.
De qualquer forma, o lançamento oficial é conhecido como 6 de janeiro de 1868, conforme a sessão "Bibliografia" da Revista Espírita do referido mês.
Importância da obra
Diz-se ser uma
"obra-chave" para a compreensão da Doutrina Espírita porque ela
contém o desenvolvimento de muitos conceitos que ficaram em aberto nas obras
precedentes de Kardec, além de tocar em temas novos, especialmente no tocante
ao âmbito científico do Espiritismo.
O Espírito São Luís fez uma
apreciação da obra numa comunicação recebida pelo médium Desliens em 18 de
dezembro de 1867, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), sendo
essa mensagem publicada na Revista Espírita de fevereiro de 1868, sessão
"Instruções dos Espíritos". Diz o Espírito (mentor da SPEE):
"Esta obra vem na hora certa, na medida em que a doutrina está hoje bem
estabelecida do ponto de vista moral e religioso. Seja qual for a direção que tome
de agora em diante, tem precedentes muito arraigados no coração dos adeptos,
para que ninguém possa temer que ela se desvie de seu caminho. (...) Por esse
livro, como vos disse, o Espiritismo entra numa nova fase e esta preparará as
vias da fase que mais tarde se abrirá, porque cada coisa deve vir a seu tempo.
Antecipar o momento propício é tão prejudicial quanto deixá-lo escapar."
Vê-se, pois, que a
espiritualidade depositava grande expectativas no sucesso desse livro.
As quatro primeiras
edições
Um mês depois do lançamento
oficial, o autor anuncia a segunda edição: "Estando quase esgotada a
primeira edição de A Gênese, neste momento procede-se à tiragem da segunda
edição, na qual não foi feita nenhuma alteração", conforme lemos na
Revista Espírita de fevereiro de 1868, sessão "Bibliografia". Além
disso, naquela mesma edição da Revista, informa do lançamento à parte do
primeiro capítulo ("Caracteres da Revelação Espírita") em forma de
brochura: Caractères de la Révélation Spirite.
Eis que no mês seguinte
(março, 1868), lá estava o autor da obra informando: "A segunda edição de
A Gênese está quase esgotada. Neste momento tira-se a terceira, de maneira a
não haver interrupção." (Ver: Revista Espírita de março, 1868: "Notas
bibliográficas") E assim foi lançada a 3ª edição, também sem qualquer
alteração.
Uma 4ª edição, cujo conteúdo
é igualmente às precedentes, veio à lume também naquele 1868, conforme consta
na folha de rosto (capa interna).
Curiosidade: Não temos
certeza do mês em que esta quarta edição foi publicada, inclusive, é curioso
que Kardec não a tenha anunciado em nenhuma edição da Revista Espírita.
Desde a obra original até
esta 4ª edição, o conteúdo do livro é rigorosamente o mesmo.
Edições ou
reimpressões?
É de se pensar que uma
"edição" implique, naturalmente, em uma obra nova ou modificada,
posto que "editar" signifique "alterar"; por isso dizemos
que cada nova publicação de um jornal ou revista é uma edição.
Se um livro não sofre
nenhuma modificação e dele apenas se faz novas cópias, o mais correto poderia
ser chamarmos esse novo montante de exemplares de "reimpressão".
Percebemos então que os quatro
primeiros montantes de A Gênese não passam mesmo de reimpressões, posto que até
as matrizes para impressão são as mesmas, exceção feita à numeração da edição
(1ª, 2ª, 3ª e 4ª edição).
Ainda assim, a disposição
burocrática vigente na França nos tempos de Kardec utilizava para cada
reimpressão solicitada uma nova numeração e, com isso, cada novo montante
poderia ser tratado como se fosse uma edição.
Ou seja, A Gênese de Allan
Kardec foi lançada em 1868 e teve três reimpressões, que, no caso, receberam o
registro como sendo edições (2ª, 3ª e 4ª edição), todas elas — não nos custa
salientar — com o mesmo conteúdo.
A propósito, é interessante
conhecermos as formalidades da época em relação ao controle literário feito
pelo governo francês.
Controle literário
governamental
Kardec desenvolveu a
Doutrina Espírita nos tempos do imperador Napoleão III, chamado de "O
pequeno", ironia em relação ao seu tio Napoleão Bonaparte, dito "O
Grande". Seu governo autoritário fez valer o Decreto Imperial de 5 de
fevereiro de 1810 (da autoria do seu tio, então imperador da França) que regulamentava
a impressão e a publicação de obras literárias, a pretexto de garantir a
autenticidade das obras e os direitos financeiros e intelectuais dos autores e
herdeiros, mas que, na prática, não passava de uma “lei de censura”, que visava
controlar a imprensa. O artigo 10, por exemplo, considerava delito “imprimir
qualquer coisa que pudesse afetar os deveres do sujeito com relação ao
soberano”. Importa considerar, além, que o código napoleônico para lei de
imprensa foi sendo reajustado ao longo do tempo.
Burocracia para
registrar e publicar um livro na França de Kardec
Quem quisesse publicar uma
obra literário na França nos tempos da codificação espírita precisaria pedir
autorização formal ao Governo, por intermédio de uma das livrarias
“juramentadas e licenciadas”. O pedido de registro era feito ao prefeito
regional contendo os dados bibliográficos (título, autor, edição, editora etc.)
ordenados pela data do pedido (art. 11 da do Decreto Imperial citado no tópico
anterior). O pré-requisito mais importante era o art. 33: “apego à pátria e ao
soberano”.
Cada impressor deveria
depositar na prefeitura da polícia cinco cópias de cada obra, a saber: duas
para a biblioteca imperial, uma para o Ministro do Interior, uma para a
biblioteca de nosso Conselho de Estado, uma para a diretor administrativo das
obras de impressão (art. 48).
Uma vez examinado o pedido
de registro da obra, se esta não fosse considerada “imprópria”, a autorização
seria assinada pelo ministro de polícia geral e então liberada para impressão e
publicação.
A lei estabelecia confisco e
multa se o livro saísse sem o nome do autor e da gráfica, se o autor ou o
impressor não tivesse efetuado o registro e a declaração do artigo 11, se a
obra fosse pedida para exame e a impressão não tivesse sido suspensa enquanto
se faz, se a obra fosse publicada sem a autorização do ministro da polícia
geral, se fosse uma falsificação ou se fosse impressa sem o consentimento e em
detrimento do direito do autor ou do editor.
O artigo 39 assegura o
direito de propriedade ao autor e à sua viúva, e aos filhos por vinte anos.
Conforme a regra, portanto,
tendo a obra sido aprovada pelas autoridades, a livraria (ou editora)
responsável, em nome do autor, tinha que registrar uma Déclaration d'Imprimer
(DI), quer dizer, Declaração de Impressão, informando a tiragem desejada
(número de exemplares a serem impressos), depois, tendo sido a obra impressa,
precisava efetuar o Dépôt Légal (DL), ou seja, o Depósito Legal do livro:
entregar cópias do livro para os arquivos governamentais. Se o livro sofresse
qualquer alteração no seu conteúdo, um novo DL da obra editada seria exigido;
caso contrário, a nova tiragem só precisava de uma nova DI para reimpressões.
Mesmo assim, ainda que tenha sido devidamente autorizada, a obra permanecia sob
o controle de censura e, a qualquer momento, estava sujeita a ser penalizada,
caso sua publicação gerasse qualquer desconforto ao Governo.
Importante:
Apesar do rigor da letra, convém considerar que, na prática, o controle de
impressão não era executado com tanta precisão, inclusive com um progressivo
afrouxamento, principalmente em se tratando de obras literárias de grande
porte, cujo público era muito restrito. Em seu Political Censorship of Arts and
the Press in Nineteenth-Century Europe, o especialista em ciências políticas
Robert Justin Goldstein, professor da Universidade de Oakland, EUA, observa que
a preocupação maior dos censores se aplicava às artes mais populares, como
música e teatro; no caso de material impresso, os cuidados maiores se
concentravam em jornais e panfletos.
Uma lei baseada na liberdade
de imprensa, que garante a livre circulação dos jornais, sem regulamentação
governamental foi aprovada em 1881 e está em vigor até hoje.
Destaque:
Allan Kardec utilizou os serviços de editoras diferentes para publicar suas
obras. Como podemos observar nos registros das DIs e DLs de suas obras, encontrados
até o momento, as editoras procuraram agir sempre “dentro da lei” e seguir o
protocolo exigido pela regulamentação imposta. No entanto, há situações
anômalas em algumas publicações de sua autoria, conforme apontado em CSI do
Espiritismo, cabendo-se averiguar a origem da falha — seria mesmo da editora?
Dos funcionários dos Arquivos Nacionais?
É útil termos em mente
igualmente que o próprio Kardec, em certo momento, fez questão de explicar que
não se ocupava com a comercialização de sua produção bibliográfica, conforme
lemos no seu artigo "Assim se escreve a História! - Os milhões do Sr.
Allan Kardec":
[...]
Na impossibilidade em que me encontrei, não tendo ainda os milhões em questão,
para assumir pessoalmente os gastos de todas as minhas publicações e,
sobretudo, de me ocupar com a sua comercialização, cedi por algum tempo o
direito de publicação, mediante um direito do autor, calculado a tantos
centavos por exemplar vendido; assim, desconheço inteiramente os detalhes da
venda e das transações que os intermediários possam fazer com as remessas
feitas pelos editores aos seus correspondentes, transações de cuja
responsabilidade eu declino, estando obrigado, no que me concerne, a prestar
contas aos editores, mediante um valor estipulado, de todos os livros
retirados, vendidos ou considerados perdidos. Allan Kardec. (Revista Espírita,
Allan Kardec - junho de 1862)
Com isso, se ele não cuidava
daqueles negócios comerciais, é de se supor que também não se ocupava das
tratativas burocráticas de suas publicações — o que o isentaria de possíveis
complicações legais junto aos órgãos competentes para o controle literário.
A nova fase do
Espiritismo
Estaria Kardec já pensando
numa 5ª edição de A Gênese? E se sim, viria esta edição com alguma modificação?
Bem, até então, o público ignorava, pois ele não havia informado nada sobre
isso, inclusive porque estava bastante ocupado com outros projetos urgentes.
Dentre aqueles
"projetos urgentes" estava a inauguração da Livraria Espírita (não
apenas uma loja de livros, mas a sua própria editora), que funcionaria em
conjunto com o escritório da Revista Espírita; o local era Rua de Lille, 7,
centro de Paris, para onde também iria a sede da SPEE e da Comissão Central,
instituição que Kardec planejara estabelecer para sucedê-lo na administração do
movimento espírita (e até da herança pessoal que ele e a esposa destinariam em
favor do Espiritismo), enquanto para ele, livre das obrigações burocráticas,
pleiteava dedicar-se somente ao trabalho intelectual em sua nova morada, na
Vila de Ségur (Ver em Obras Póstumas, 2ª parte: "Constituição do
Espiritismo").
Entretanto, não houve tempo
para Kardec assistir, enquanto encarnado, à fundação daquela comitê.
A edição revisada de
A Gênese
Já com o selo da Livraria
Espírita, a Sociedade Anônima (detentora dos direitos autorais das obras de
Kardec) publica a 5ª edição de A Gênese, desta vez, editada mesma, e com
bastante modificações, explicitadas na folha de rosto pela linha "Revue,
corrigée et augmentée", quer dizer, "Revisada, corrigida e
aumentada" — da qual seriam copiadas as reimpressões subsequentes e as
traduções autorizadas (inclusive a que se consagrou no Brasil).
Portanto, sem maiores
rumores, essa edição atualizada foi recebida e aceita pelo público em geral.
Fundação da União
Espírita Francesa
É bem verdade que Madame
Kardec decidiu "gerir tudo" deixado pelo esposo, inclusive cuidando
pessoalmente das reimpressões das obras kardequianas (ver: Revista Espírita -
maio de 1869, "Caixa Geral do Espiritismo"). Ocorreu, no entanto, que
os administradores da Sociedade Anônima foram pouco a pouco deixando-a de fora
das suas decisões. A partir da gestão Leymarie, Amélie foi praticamente
descartada das atividades da sociedade. Ela detinha plenos poderes para
intervir legalmente sobre a instituição, da qual era sócia majoritária e
administradora superior; contudo, absteve-se de efetuar qualquer intervenção,
na intenção de evitar escândalos.
Foi aí que algumas vozes se
levantaram contra Leymarie e, para fazer lhe frente, fundaram uma nova
instituição: União Espírita Francesa (UEF), que também lançou o seu jornal
oficial: Le Spiritisme (O Espiritismo) (saiba mais aqui). Os principais
fundadores de UEF foram: Berthe Fropo, Gabriel Delanne e Léon Denis, com a
anuência da viúva Kardec.
Léon Denis, Berthe Fropo e Gabriel Delanne
Indignada com os ultrajes sofridos por Madame Kardec, diante da Sociedade Anônima, agora nas mãos de Leymarie, Berthe Fropo vai preparar um livro para levar ao conhecimento dos demais confrades o que estava acontecendo na cúpula da movimento espírita. Acontece então de Amélie desencarnar (21 de janeiro de 1883); no ano seguinte, Fropo publica a explosiva brochura Beaucoup de Lumière (mais tarde traduzida para o nosso português como Muita Luz), denunciando os desmandos administrativos de Leymarie e os desvios doutrinários da Sociedade Anônima.
Importante:
convém dizer que os fartos documentos que ora dispomos (como o livro de Fropo)
a respeito dos desvios doutrinários daquele movimento espírita pós-Kardec
ficariam por longo tempo (todo o século XX) ocultos da historiografia espírita
clássica, de modo que Pierre-Gaëtan Leymarie permaneceria figurado como um
"grande continuador da obra de Allan Kardec" e "mártir do
Espiritismo. A revista Reformador de abril de 2001 (FEB Editora) comemorou o
centenário de nascimento de Leymarie com uma matéria especial atestando-o como
"fiel obreiro da seara espírita, digno continuador da obra de Allan
Kardec". No livro Personagens do Espiritismo, de Antonio de Souza Lucena e
Paulo Alves Godoy (Edições FEESP), diz-se dele: "Foi um homem
desinteressado, sensível e profundamente honesto, foi grande em sua
singeleza".
A denúncia de Henri
Sausse
Mais adiante, o jornal da UEF ganharia um importante articulista: Henri Sausse. Pois então, num artigo intitulado "Uma infâmia" e publicado no Le Spiritisme, 1ª quinzena de dezembro de 1884, Sausse denuncia que Leymarie havia adulterado o livro A Gênese; ele inclusive fez um estudo comparativo da 1ª edição (1868) para a versão atualizada publicada por Leymarie, a 5ª edição, e apontou onde os textos haviam sido modificados, os parágrafos excluídos e a aparição de itens estranhos ao conteúdo original da obra.
"Descobri,
comparando os textos da primeira e da quinta edição, que 126 trechos tinham
sido modificados, acrescentados ou suprimidos. Desse número, onze (11) forma
objetos de uma revisão parcial. Cinquenta (50) foram acrescidos e sessenta e
cinco (65) foram suprimidos, e não conto os números dos parágrafos trocados de
lugar nem os títulos que foram adicionados.
"Todas
as partes desse livro sofreram mutilações mais ou menos graves, mas o capítulo
XVIII: Os tempos são chegados, é o que foi mais maltratado; as modificações
feitas nele o tornam quase irreconhecível.
"Agora,
digam-me, quem são os culpados?
"Qual
o motivo dessas manobras?" Henri Sausse.
O articulista baseia sua
denúncia no fato de a edição revisada ser post mortem — portanto, sem a
garantia de que as atualizações tenham sido feitas pelo legítimo autor — e na
suposição que as alterações beneficiasse (Sausse não cita literalmente, mas
deixa implícito) aos roustainguistas, por causa da questão da natureza do corpo
de Jesus.
A resposta de
Leymarie
Leymarie apresentou a defesa
da obra revisada através da Revista Espírita, edição daquele mesmo dezembro de
1884, com o artigo "Continuação de 'Ficções e insinuações'"
("Continuação..." porque aqui Leymarie ajunta no mesmo bojo a
acusação de Henri Sausse com as de Berthe Fropo, sobre os supostos desvios de
Leymarie, que este respondeu através da brochura Ficções e Insinuações -
Resposta à brochura Muita Luz (Beaucoup de Lumière), assinada pela Sociedade
Científica do Espiritismo (renomeação da Sociedade Anônima), presidida por
Leymarie; por esta brochura, alegou ele tudo não passar exatamente do que
chamou de "ficções e insinuações".
Primeiramente, diz que o
autor de 'Uma infâmia' bem poderia ter dissipado suas dúvidas quando a
legitimidade da obra revisada se tivesse feito um pedido de informação. E para
assegurar a todos que ele, Leymarie, prontamente poderia satisfazer a quem
duvidasse, então vai oferecer suas justificativas.
Em suma, ele declarou que a
revisão foi feita por Allan Kardec em 1868 e ajuntou à sua defesa depoimentos
de duas pessoas diretamente ligadas à produção do livro: Joseph Rousset e o Sr.
Rouge.
O Sr. Rousset, profissional
que confeccionava placas de impressão, confirmou ter trabalhado para a gráfica
Rouge nas placas de A Gênese no ano de 1868 e testemunhou que essas matrizes
não passaram pelas mãos de Leymarie.
O Sr. Rouge, um dos irmãos
Frères, donos da tipografia que havia impresso as primeiras edições da obra
(atenção: nessa ocasião Leymarie contou seis edições). Diz o Sr. Rouge que fez
a primeira tiragem em 1867 da qual foram impressas as três primeiras edições
iguais; depois, de uma segunda tiragem, em agosto de 1868, a tipografia Rouge
Frères teria impresso três edições já com a revisão de Kardec, correspondentes
à 4ª, 5ª e 6ª edição, todas no ano 1868.
Por fim, Leymarie evoca o
conselho da sua Sociedade a intimidar a UEF por ordem judicial a fim de que a
refutação oferecida fosse aceita pelo jornal Le Spiritisme.
Um vazio e a confusão
de ideias
A acusação de Henri Sausse é
desacompanhada de uma prova cabal da tese de adulteração, como ele sugere;
porém, ela levanta, com propriedade, a dúvida da autenticidade da "edição
revisada", em razão de a obra ter sido publicada depois da estadia física
de Allan Kardec, dúvida que pode ser alimentada pelo confronto de conteúdo,
dado o aparecimento de algumas ideias esquisitas na 5ª edição — conforme a
interpretação de alguns estudiosos. Mas, efetivamente, faltou a prova do crime.
Até que, posteriormente ao
artigo-resposta de Leymarie, Sausse tentou melhor justificar sua denúncia: na
edição da 1ª quinzena de fevereiro de 1885, o jornal da UEF publicou uma
Correspondência de seu articulista de Lyon, pela qual ele explica que soube da
"adulteração" por intermédio de um conterrâneo lionês, um amigo de
Leymarie e também "fervoroso adepto do roustainguismo", que lhe
advertia sobre a obra de Kardec não ser tão perfeita quanto se pensava, visto
que seu amigo (Leymarie) teria precisado introduzir "correções" no
livro A Gênese; isso foi o que motivou Sausse a se debruçar nas comparações
entre os dois conteúdos em questão.
Por outro lado, a autodefesa
de Pierre-Gaëtan Leymarie também é oca; embora o ônus da prova seja de quem
acusa (neste caso, Henri Sausse), uma vez que o diretor da Sociedade propôs-se
explicar tudo, deveria tê-lo feito com exatidão — ainda mais porque era ele
quem detinha os documentos esclarecedores do caso; mas, ao invés disso, fez uma
confusão de ideias (por exemplo, a inexatidão da relação das edições e suas
datas), também não bem explicadas pelas suas "testemunhas". E essas
confusões acabariam por suscitar ainda mais questionamentos.
Na tentativa de encerrar o
caso, Leymarie evoca o depoimento do homem que havia assumido a condução das
obras de Kardec imediatamente à desencarnação do Mestre: Armand Desliens.
Vejamos a seguir.
O testemunho de
Desliens
Armand Théodore Desliens era
o secretário-geral de Allan Kardec e o homem forte no processo de sucessão do
Mestre; foi ele quem assumiu a redação da Revista Espírita a partir da edição
de maio de 1869 (Kardec falecera no mês de março, mas já tinha deixado a edição
de abril prontinha); foi membro fundador da Sociedade Anônima e continuou sendo
um dos sete integrantes da diretoria da SPEE. Desliens permaneceu em suas
prerrogativas por mais dois anos; em 27 de junho de 1871, devido problema de saúde,
ele apresentou sua renúncia de todas as suas funções institucionais e
recluiu-se do movimento espírita. Foi em seu lugar que Leymarie adentrou na
cúpula do Espiritismo francês.
Convocado pelo seu
substituto, quatorze anos depois, Desliens redige o seu testemunho, que foi
transcrita para a edição de março de 1885 da Revista Espírita no item — de
título emblemático — "A Gênese de Allan Kardec". O sumo desse
depoimento é que Desliens exclui Leymarie de qualquer intervenção no processo
de redação do periódico e demais obras publicadas pela Livraria Espírita antes
de 1871; detalhou os procedimentos para impressão (montagem das matrizes e
clichês) e a implausibilidade de alteração alheia já que Kardec havia comprado
as placas de impressão da segunda tiragem, feitas ainda em 1868, depois de
concluída a edição final do livro; com isso, ele garantiu que todas as
atualizações foram feitas por Kardec e, por determinação dele, elas haviam sido
introduzidas naquela segunda tiragem (montadas em 1868), da qual seriam
impressas (em 1869) as 4ª, 5ª e 6ª edições, bem como as subsequentes.
Naqueles anos 1880 a
reputação de Leymarie estava completamente comprometida dentro do movimento
espírita, mas nada pesava contra Desliens, que foi aquele que segurou o batente
nos primeiros dois anos de luto do Mestre, sendo homem de confiança — por isso
secretário-geral — de Kardec. Havia uma inconsistência patente em seu
depoimento, bem como no das demais testemunhas: todos contavam que o conteúdo
atualizado de A Gênese fora introduzido desde a 4ª edição, enquanto, na
verdade, encontrava-se esta 4ª edição, datada de 1868, não sendo mais do que
uma reimpressão das anteriores. Além disso, todos contabilizaram que a obra
revisada receberam três reimpressões, correspondentes às 4ª, 5ª e 6ª edições,
mas onde estariam essas outras reimpressões 4ª e 6ª, posto ue a que estava em
voga era a 5ª edição?
Contudo, pelo que tudo
indica, essas inconsistências passaram batidas, ninguém as levantou perante
Leymarie.
Havia outro ponto crucial
ali: o silêncio da Viúva Kardec. Se ela não se levantou contra tal
"infâmia", quem o poderia fazer? — diria Leymaria. Henri Sausse o
fez, mas passados quase dois anos da desencarnação da esposa de Kardec.
Revisão de A Gênese
aconselhada pela espiritualidade
Não convencido das
explicações dadas por Leymarie e suas testemunhas, Henri Sausse voltou a
questionar a legitimidade da revisão introduzida em A Gênese, desde a 5º
edição, levantando uma questão interessante, conforme se lê no Le Spiritisme de
fevereiro de 1885: "Se [Allan Kardec] tivesse ele mesmo feito essas
modificações tão consideráveis que constituem quase uma nova obra, ele nos
teria dado a conhecer. Para essas edições, revistas, corrigidas e aumentadas,
ele teria escrito um novo prefácio, como o fez para O Livro dos
Espíritos."
Leymarie, por sua vez, sacou
um trunfo: ele detinha em suas mãos os arquivos pessoais de Kardec, dentre os
quais muitos manuscritos inéditos; esses documentos, aliás, começaram a ser
publicados por Desliens na Revista Espírita, numa sessão chamada "Obras
Póstumas" já na edição de junho de 1869. Pois bem, eis que Leymarie vai
buscar dois deles, para seu auxílio na presente questão, tornando-os públicos
no jornal de março de 1887 , precedidos pelo artigo "Previsões e
revelações" informando:
"(...)
com data de 22 de fevereiro de 1868 e de 4 de julho de 1868, encontramos as
páginas seguintes, escritas textualmente à mão por Allan Kardec, tanto como o
são todas as notas, observações e dissertações do manuscrito: a Sociedade julga
conveniente reproduzi-las textualmente, pois elas respondem amplamente, ao
mesmo tempo, às suposições de pessoas mal-intencionadas e às críticas dos
espíritas desinformados."
Vamos ao primeiro texto
oferecido por Leymarie:
22
de fevereiro de 1868. A GÊNESE. (Comunicação particular). "Em seguida a
uma comunicação do Dr. Demeure, na qual ele me deu conselhos muito sábios sobre
as modificações a serem feitas no livro da Gênese, para cuja reimpressão ele me
exortava a ocupar-me sem demora, eu lhe digo: a venda, tão rápida até agora,
esfriará, sem dúvida; é o efeito do primeiro momento. Acredito, portanto, que
as 4ª e 5ª edições levarão mais tempo para esgotar-se. No entanto, como é
necessário algum tempo para a revisão e a reimpressão, é importante não ser
pego desprevenido. Poderíeis dizer-me aproximadamente quanto tempo eu tenho
para agir a respeito disso?"
Resposta.
Médium Sr. D... É um trabalho sério o desta revisão, e exorto-vos a que não
espere demais para empreendê-lo; vale mais que estejais pronto antes da hora
que se tivesse que esperar depois de vós. Sobretudo não vos apresseis. Apesar
da aparente contradição de minhas palavras, não tenho dúvida de que me
compreendeis: começai imediatamente o trabalho, mas não vos mantenhais nele sem
interrupção por excessivo tempo. Ao tomardes vosso tempo, as ideias serão mais
nítidas, vosso corpo ganhará com isso por fatigar-se menos.
Deveis
contar com um sucesso filosófico e material.
A título de informação, o
Dr. Demeure é o Espírito do médico recém-desencarnado, que, em outras
passagens, cuidou diretamente da saúde de Allan Kardec. O médium autor dessa
psicografia não é revelado pela revista (é identificado como "Sr.
D..."), mas já podemos revelar: é o nosso conhecido Desliens Veja adiante
mais implicações sobre essa comunicação.
Vamos para a segunda
mensagem publicada por Leymarie:
4 de
julho de 1868. Médium Sr. D... Vossos trabalhos pessoais estão indo bem;
continuai com a reimpressão de vossa última obra.
Quando
vos aconselhamos recentemente que não esperásseis demais para ocupar-vos da
revisão da Gênese, dizíamo-vos que haveria de fazer acréscimos em diferentes
partes, preencher algumas lacunas e noutras partes condensar o assunto a fim de
não dar mais extensão ao volume; nossas observações não foram em vão, e
ficaremos felizes em colaborar na remodelação dessa obra, bem como em ter
contribuído para sua execução.
Eu
vos exortarei hoje a que reveja com cuidado sobretudo os primeiros capítulos,
nos quais todas as ideias são excelentes, que não contém nada que não seja
verdadeiro, mas certas expressões ali poderiam prestar-se a uma interpretação
errônea. Com exceção dessas retificações, que vos aconselho não negligenciar,
porque as pessoas voltam-se contra as palavras quando não podem atacar as
ideias, não tenho nada mais para vos indicar sobre esse tema. Aconselho, por
exemplo, que não percais tempo; é preferível que os volumes esperem pelo
público do que estejam em falta. Nada deprecia mais uma obra do que a
interrupção de sua venda. O editor, impaciente por não poder satisfazer os
pedidos que lhe são feitos e que perde a oportunidade de vender, desanima com
as obras de um autor imprevidente; o público cansa-se de esperar, e a impressão
produzida custa a se apagar.
O
próximo ano chegará em breve; é necessário, portanto, no final deste, liquidar
inteiramente o passado da doutrina; dai a última demão na primeira parte da
obra espírita, a fim de ter o campo livre para terminar a tarefa que concerne
ao futuro. Didier.
Didier havia sido o dileto
editor das obras de Kardec e por ele convencido das luzes do Espiritismo.
Desencarnado em 1865, viria agora, na condição espiritual, dar conselhos
técnicos ao amigo a respeito do livro em atualização, a fim de que seu
lançamento se desse o mais rapidamente possível.
Com essas duas mensagens,
Leymarie oferecia suas explicações sobre porque o mestre trabalhava célere e
discretamente na elaboração do que viria a ser a 5º edição, "revisada,
corrigida e aumentada" de A Gênese.
Revisão de A Gênese
em Obras Póstumas
Alguns dos tais manuscritos
do Mestre, em posse da Sociedade Anônima, foram reunidos em formato de livro,
editado por Leymarie e publicado em 1890 sob o título Œuvres Posthumes (ebook)
— posteriormente seria vertido para o Brasil como Obras Póstumas (ebook) —,
ostentando o nome de Allan Kardec como seu verídico autor. E seu subtítulo
merece ser citado: "Il faut propager la Morale et la Vérité.", cuja
uma boa tradução é "É preciso propagar a Moral e a Verdade". Na
primeira parte, dissertações sobre os mais variados temas; na segunda,
anotações pessoais de Kardec que detalham os bastidores do trabalho do Mestre
na codificação da Doutrina Espírita. É de fato um diário. O editor (Leymarie)
anotou que são "extratos, in extenso", ou seja: cópia literal, de um
livro das "Previsões concernentes ao Espiritismo", cujos textos são
colocados em ordem cronológica. E não é que aquelas duas comunicações
particulares sobre a atualização de A Gênese entraram nessa compilação?
Sim, só que tem um detalhe
importante: elas sofreram modificações em relação ao que havia sido publicado
na Revista Espírita, ao passo que nas duas ocasiões é dito que os textos
estavam sendo transcritos fielmente dos originais "escritos textualmente à
mão por Allan Kardec". Ora, isso significa que pelo menos uma das cópias
não era uma transcrição fiel ao manuscrito do autor. Pode-se alegar que o
"contexto" foi preservado; Todavia, isso deixa claro que a reprodução
in extenso é falha, abrindo um
precedente sobre a confiabilidade dos editores da Sociedade Anônima quanto às
transcrições dos manuscritos de Kardec.
Verifiquemos o que
encontramos em Obras Póstumas:
22 de fevereiro de 1868
(Comunicação particular. Médium Sr. D.)
A Gênese
Em seguida a uma comunicação
do Dr. Demeure, na qual ele me deu conselhos muito sábios sobre as modificações
a serem feitas no livro da Gênese, para cuja reimpressão ele me exortava a
ocupar-me sem demora, eu lhe digo.
A venda, tão rápida até
agora, esfriará, sem dúvida; é o efeito do primeiro momento. Acredito,
portanto, que as 4ª e 5ª edição levarão mais tempo para esgotar-se. No entanto,
como é necessário algum tempo para a revisão e a reimpressão, é importante não
ser pego desprevenido. Poderíeis dizer-me aproximadamente quanto tempo eu tenho
para agir a respeito disso?
Resposta. Médium Sr. D... É
um trabalho sério o desta revisão, e exorto-vos a que não espere demais para empreendê-lo;
vale mais que estejais pronto antes da hora que se tivesse que esperar depois
de vós. Sobretudo não vos apresseis. Apesar da aparente contradição de minhas
palavras, não tenho dúvida de que me compreendeis. Começai imediatamente o
trabalho, mas não vos mantenhais nele sem interrupção por excessivo tempo.
Tomai vosso tempo: as ideias serão mais nítidas, e com isso vosso corpo ganhará
por fatigar-se menos.
Vós deveis, entretanto,
esperar um fluxo rápido. Quando lhe dissemos que este livro seria um sucesso
dentre vossos sucessos, queríamos dizer-vos tanto um sucesso filosófico quanto
material. Como podeis ver, nossas previsões estavam corretas. Esteja sempre
pronto, será mais rápido do que supondes.
Continuando, temos aquela
comunicação de 4 de julho destaca em Obras Póstumas, sob o título "Meus
trabalhos pessoais. Conselhos diversos" — aqui, porém, bem aumentada e sem
assinatura do Espírito comunicante (Didier). Vejamos:
Meus trabalhos pessoais. Conselhos
diversos
Paris, 4 de julho de 1868 - Médium Sr.
D.
Vossos trabalhos pessoais
estão indo bem; continuai com a reimpressão de vossa última obra; fazei vosso
sumário para o fim do ano, é uma utilidade, e deixai o restante por nossa
conta.
A impulsão produzida pela
Gênese é só o começo, e muitos elementos abalados por sua aparição se colocarão
em breve sob sua bandeira; outras obras sérias ainda virão para acabar de
esclarecer o pensamento humano sobre a nova doutrina.
Aplaudi igualmente a
publicação das cartas de Lavater: é uma coisa mínima destinada a produzir
grandes efeitos. Em suma, o ano será frutífero para todos os amigos do
progresso racional e liberal.
Estou também inteiramente de
acordo que publiqueis o resumo que vós propondes a fazer na forma de catecismo
ou manual, mas também acho que deves esmiuçá-lo com cuidado. Quando estiverdes
a publicá-lo, não vos esqueçais de me consultar sobre o título, terei talvez
uma boa sugestão a dar e cujos termos dependerão dos acontecimentos ocorridos.
Quando vos aconselhamos
recentemente que não esperásseis demais para ocupar-vos da revisão da Gênese, dizíamos-vos
que haveria de fazer acréscimos em diferentes partes, preencher algumas lacunas
e noutras partes condensar o assunto a fim de não dar mais extensão ao volume.
Nossas observações não foram
em vão, e ficaremos felizes em colaborar na remodelação dessa obra, bem como em
ter contribuído para sua execução.
Eu vos exortarei hoje a que
reveja com cuidado sobretudo os primeiros capítulos, nos quais todas as ideias
são excelentes, que não contém nada que não seja verdadeiro, mas certas
expressões ali poderiam prestar-se a uma interpretação errônea. Com exceção
dessas retificações, que vos aconselho não negligenciar, porque as pessoas
voltam-se contra as palavras quando não podem atacar as ideias, não tenho nada
mais para vos indicar sobre esse tema. Aconselho, por exemplo, que não percais
tempo; é preferível que os volumes esperem pelo público do que estejam em
falta. Nada deprecia mais uma obra do que a interrupção de sua venda. O editor,
impaciente por não poder satisfazer os pedidos que lhe são feitos e que perde a
oportunidade de vender, desanima com as obras de um autor imprevidente; o
público cansa-se de esperar, e a impressão produzida custa a apagar-se.
Por outro lado, não é mau
que vós tenhais certa liberdade de espírito para tratar das eventualidades que
possam surgir em torno de vós, e dirigir vossos cuidados aos estudos
particulares que, conforme os eventos, podem ser suscitados de momento ou relegados
aos tempos mais propícios.
Estai, pois, pronto para
tudo; ficai livre de todo entrave, seja por vos entregardes a uma tarefa
especial, se a tranquilidade geral o permite, seja por estar preparado a todo
acontecimento se complicações imprevisíveis venham necessitar de vossa parte
uma súbita determinação. O próximo ano chegará em breve; é necessário,
portanto, que no final deste, deis a última demão na primeira parte da obra
espírita, a fim de ter o campo livre para terminar a tarefa que concerne ao futuro.
Bem, para todos os efeitos,
o primeiro round dessa polêmica terminou sem maiores consequências: Leymarie
não convenceu muita gente, mas Henri Sausse e a União Espírita Francesa também
não conseguiram as provas concretas para a acusação de adulteração do livro A
Gênese. Não ocorreu a pacificação entre os confrades nem uma revolução — o que
talvez ilustre bem o que ocorreu com o Movimento Espírita original na virada do
século XIX para o XX: uma apatia geral.
As traduções da
Gênese
Enquanto os direitos autorais
das obras de Allan Kardec estiveram sob domínio da Sociedade Anônima, todas as
reimpressões e traduções autorizadas para La Genèse, les miracles et les
prédictions selon le Spiritisme tinham como base a 5º edição. Com isso, a
versão consagrada desse livro mundo à fora foi aquela revisada, corrigida e
aumentada. A única exceção que conhecemos é a tradução espanhola La Génese, los
milagros y las predicciones según el Espiritismo empreendida por José Maria
Fernández Colavida em 1871, com base na 2ª edição (1868).
No Brasil, a obra foi
traduzida pela primeira vez em 1882, tendo com base a 8ª edição francesa,
"sob os auspícios" da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade,
sediada no Rio de Janeiro, com o sugestivo nome A Gênese, os milagres e as
predições segundo o Espiritismo (respeitando a atualização ortográfica). Logo
mais viria aquela que se consagraria como a mais popular tradução brasileira no
século XX: a de Guillon Ribeiro, então presidente da FEB, tradução essa baseada
na edição atualizada pela Sociedade Anônima.
Outra tradução brasileira
muito difundida, também oriunda da edição revisada, foi a de João Teixeira de
Paula, publicada pela LAKE Editora, contendo introdução, nota e supervisão do
respeitado filósofo espírita José Herculano Pires.
E é mesmo de se admirar que
até mesmo Herculano, esse profícuo e sagaz estudioso espírita, tenha ignorado a
questão de que aqui tratamos. Portanto, reflexo evidente que a Historiografia
espírita estava carente de investigadores mais atentos às suas origens, e
também que o caso havia sido muito bem abafado. Por um século, ficou ignorado
que o quinto livro básico do Espiritismo tinha duas versões — e que talvez a
segunda delas fosse uma adulteração.
Com efeito, só mesmo
"um golpe de sorte" poderia reacender a chama daquela discussão; mas,
esse golpe efetivou-se!
Em 1998, o estudioso
espírita Carlos de Brito Imbassahy (filho do renomado advogado, jornalista e
escritor espírita Carlos Imbassahy) participava de um bate-papo online sobre
filosofia espírita. Estando os participantes convidados a acompanhar a leitura
de um trecho de A Gênese, tendo ele em mãos um exemplar em francês da 3ª edição
que herdara do pai, percebeu a diferença dos textos; inicialmente supôs ter
sido erro de tradução contidos nos livros de seus interlocutores (que usavam
exemplares traduzidos da edição revisada); depois, supôs se tratar mesmo de uma
adulteração premeditada pela FEB. Disposto a recuperar e compartilhar com seus
companheiros o que considerava o "conteúdo original", ele fez uma
tradução livre a partir do seu exemplar e a disponibilizou publicamente pela
internet, valendo-se do fato que a obra de Kardec já havia caído em domínio
público.
Logo mais, Imbassahy seria
informado desta histórica polêmica pelo estudioso espírita paraense João
Vendrani Donha que tinha uma vaga lembrança do caso e, das duas versões
diferentes da tratada obra, por ter lido a respeito numa biografia de Henri
Sausse. Donha, agora motivado a saber mais sobre o caso, a partir da equivocada
denúncia de Imbassahy, empreende uma minuciosa pesquisa sobre A Gênese e mais
adiante será um dos primeiros a publicamente fazer frente a uma nova campanha
em favor da ideia de adulteração da obra kardequiana, como veremos no próximo
tópico e seguintes.
O legado de Simoni
Privato
Certa vez, Gustavo Martinez,
presidente da Confederação Espírita Argentina - CEA e tradutor da obra
literária de Allan Kardec, recebeu por e-mail um questionamento sobre as
controvérsias históricas sobre o conteúdo final do livro A Gênese, o que
despertou nele o interesse em estudar o caso melhor; o interesse foi
compartilhado com Simoni Privato Goidanich e daí deu-se o início de um
memorável trabalho, como veremos a seguir, e que podemos dizer que é um grande
legado desta pesquisadora para a História do Espiritismo.
Natural da cidade de São
Paulo e radicada em Montevidéu - Uruguai, Simoni é uma estudiosa espírita de
longa data e reconhecidos serviços prestados à divulgação da Doutrina Espírita
em países da América Latina, bem conciliados com seu trabalho de diplomata
brasileira. Motivada pelo confrade, ela foi a Paris em 2017 para uma série de
pesquisas junto aos documentos do Arquivos Nacionais da França e da Biblioteca
Nacional da França. Suas descobertas não apenas reabriram o debate do caso A
Gênese como trouxeram novas e valiosíssimas contribuições para a discussão.
Naquele mesmo ano, seu livro El Legado de Allan Kardec (em espanhol) seria
lançado pela CEA, em 3 de outubro, 213° aniversário do nascimento Mestre.
Entre as contribuições de
sua pesquisa, destacamos:
·
Simoni pesquisou in loco os documentos
conservados pelas autoridades francesas, e, a partir dessas fontes primárias,
pôde levantar evidências importantes, além de explicar muito bem o
funcionamento da burocracia para se registrar livros na França dos tempos da
Codificação do Espiritismo;
·
Sua explanação sobre os procedimentos legais
para registro do livro (RL), declaração de impressão (DI) e depósito legal (DL)
serviu de parâmetro para novas pesquisas, por outros pesquisadores, a fim de
esmiuçar os documentos com mais segurança e efetividade, estabelecendo um
caráter mais científico ao debate;
·
Acessando os livros originais depositados na
Biblioteca da França, Simoni conferiu o conteúdo de um exemplar da 4ª edição de
A Gênese e constatou que este se trata de uma reimpressão da edição original.
Com isso, ela demonstrou a inexatidão dos depoimentos de Leymarie, Rousset,
Rouge e Desliens de que a edição revisada seria espelho da 4ª edição;
·
Consultando os DIs e DLs da época, ela não
encontrou nenhum registro de uma edição atualizada do livro em questão (o que
seria uma 5ª edição), donde concluiu que, enquanto encarnado, Kardec não
publicou nenhuma versão "revisada, corrigida e aumentada" da obra ora
tratada;
·
Descobriu os registros da 5ª edição —
revisada, corrigida e aumentada — datando de 19 de dezembro de 1872 a sua DI
(pela qual a gráfica Rouge et Frères solicitava a impressão de 2 mil cópias
desta tiragem) e datando o seu DL de 23 daquele mesmo mês. Esses registros
seriam então correspondentes àquela edição cujo ano de publicação ficou omitido
na folha de rosto, segundo ela, intencionalmente para passar-se por uma edição
da época de Kardec ainda encarnado e fazer crer ter sido publicada por ele
mesmo.
·
Em seu livro, El Legado de Allan Kardec,
desenvolve então uma tese que converge para a mesma acusação de adultério
literário feita por Henri Sausse há mais de um século, responsabilizando
diretamente Pierre-Gaëtan Leymarie e seus comparsas na Sociedade Anônima, tendo
como motivação desvirtuar conceitos básicos do Espiritismo para acomodar ideias
estranhas à doutrina, especialmente provindas do Roustainguismo.
Conexão estabelecida
com o Brasil
A tese de Simoni Privato
ecoa retumbante no Brasil, oportunamente evocada por simpatizantes, em janeiro
de 2018, por conta das comemorações do 150° aniversário de lançamento da obra,
em sintonia com um movimento crescente de estudos e pesquisas históricas acerca
da sucessão de Kardec na condução das atividades espíritas, para cujo movimento
veio contribuir o lançamento, naquele mesmo mês jubilar, do filme-documentário
Espiritismo à Francesa: a derrocada do Movimento Espírita francês pós-Kardec;
com o cenário — fartamente documentado — desfavorável à reputação de Leymarie
na administração do Movimento Espírita no final do século XIX, a ideia de
adulteração ganhou bastante plausibilidade entre os pesquisadores espíritas.
Começa-se as tratativas para
a tradução em português do livro da diplomata espírita e um seminário para seu
lançamento com a presença da autora. As primeiras entidades mais importantes a
apoiar a tese de Simnoi foram a União das Sociedades Espíritas de São Paulo
(USE-SP), o Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo - Eduardo
Carvalho Monteiro (CCDPE-ECM) e a Fundação Espírita André Luiz (FEAL) (à qual
pertencem os importantes veículos de comunicação espírita Rádio Boa Nova e TV
Mundo Maior).
Todavia, como era de se
esperar, não houve unanimidade.
Contraponto
A primeira personalidade do
meio espírita a se contrapor explicitamente à tese da Simoni Privato foi Cosme
Massi, conhecido diretor do site Kardecpedia. Numa entrevista em vídeo, ele
apresentou a sua refutação para os principais argumentos oferecidos em El
Legado de Allan Kardec e assumiu a posição de legitimidade da edição atualizada
e que, portanto, não houve adulteração no livro A Gênese. Por outro lado, viu
na polêmica reacendida a oportunidade de todos estudarem mais a obra
kardequiana, inclusive as duas versões do livro em questão.
Apesar de ser bem lógico no
que se propôs a enfrentar, Massi não abordou o que parecia ser o argumento mais
forte de Simoni para desqualificar aquela 5º edição de 1872: o especto
jurídico, considerando que, passados três anos do falecimento do autor, o
conteúdo do livro não poderia ser modificado sem as devidas garantias de que
fora encomendadas por aquele.
Independentemente da questão
legal, havia sim um cenário propício à desconfiança de que realmente Allan
Kardec tivesse feito as modificações tais como aquelas contidas na edição
atualizada, que o entrevistado procurou vencer pelo silência da Viúva Kardec;
para Cosme Massi, o fato de Amélie Boudet (a herdeira direta) não ter
questionado o conteúdo "revisado, corrigido e aumentado" era forte o
bastante para garantir a atualização.
Pronunciamento
oficial da FEB
Em 29 de janeiro de 2018,
diante da polêmica vigente, o Conselho Diretor da Federação Espírita Brasileira
lançou uma nota oficial para declarar que, segundo a FEB, a "edição
definitiva" do livro A Gênese era a versão atualizada, a partir da 5ª
edição "revisada, corrigida e aumentada" de 1872, tomando como
princípio segurador a inexistência de uma "prova cabal" de
adulteração, também sustentando a anuência de Madame Kardec — que
"sobreviveu mais de dez anos à publicação da 5ª edição francesa da
obra".
Em referência aos possíveis
"conflitos doutrinários" presentes na edição revisada, suscitados
pela tese de adulteração, a nota também recobra os estudos comparativos
realizados nos anos 1960 pelo notável pesquisador espírita Zêus Wantuil
(1924-2011); confrontando "palavra por palavra, frase por frase, linha por
linha, a 3ª e a 5ª edições francesas", Wantuil havia "chegado à
conclusão de que modificações havidas só poderiam ter sido realizadas pelo
próprio Allan Kardec".
Por outro lado, a nota traz
o anúncio de que a FEB providenciaria a confecção de uma edição especial, no
ensejo das festividades do sesquicentenário de lançamento de A Gênese com
conteúdo bilíngue (original em francês e tradução em português) das duas
versões — o que, de fato, verificaríamos em setembro daquele ano, sendo o seu
tradutor o respeitado estudioso espírita Evandro Noleto. Com efeito, impressa
essa edição especial, o público em geral teria mais uma opção de estudar a
edição original da obra, independentemente da polêmica.
Projeto Cartas de
Kardec
Em seminário, com a presença
de Simoni Privato, a FEAL lança sua edição especial de A Gênese de Allan Kardec,
com base na tradução de Carlos Imbassahy, a partir da primeira versão da obra,
que a FEAL adotou como "a autêntica", ao mesmo passo em que define
como "apócrifa", "adulterada" e "clandestina" a
segunda versão, expressa desde a 5ª edição francesa lançada pela Sociedade
Anônima.
Na ocasião, a FEAL também
anunciou o lançamento de um grandioso projeto, na mesma esteira dos ideais da
tese da recuperação histórica do legado de Kardec hasteada por Simoni Privato:
o projeto Cartas de Kardec, tendo como principal matéria-prima o célebre acervo
espírita do Dr. Canuto Abreu — uma coleção de livros e documentos de interesse
espírita, incluindo cartas e manuscritos escritos pelo codificador espírita,
que Canuto conseguiu reunir em viagem à França e outros países, no começo do
século XX. A expectativa era a de que se encontrasse nesse acervo mais
evidências dos desvios doutrinários pós-Kardec que ajudassem nesse resgate
histórico. A coordenadoria desse projeto foi confiada ao pesquisar espírita
Paulo Henrique de Figueiredo.
Kardec adulterado em
Obras Póstumas
O Projeto Cartas de Kardec
começa cedo a dar frutos significativos: em fevereiro de 2018, é divulgada a
descoberta do manuscrito de Kardec referente à mensagem do Dr. Demeure
aconselhando o autor de A Gênese a apressar a revisão desta obra — mensagem
essa que Leymarie havia reproduzido na Revista Espírita e, com pequenas
modificações, em Obras Póstumas. De posse da peça original, constatou-se então
que as reproduções feitas por Leymarie não foram fidedignas, ao que Paulo
Henrique de Figueiredo classificou de "fraude", premeditada para
distorcer dados referentes à alegada adulteração da obra em debate.
·
O manuscrito traz o nome Desliens para o
médium que recebeu a mensagem, enquanto nas publicações de Leymarie aparece
apenas a inicial (Sr. D...);
·
O Espírito comunicante (Dr. Demeure) sugere a
Kardec corrigir "detalhes" da obra, especialmente no uso de certos
termos e comparações, que não estavam inexatos, mas que, por efeito linguístico,
poderiam dar margem a interpretações ambíguas e equivocadas;
·
A mensagem diz que tudo na versão original da
obra era doutrinalmente "útil e satisfatório" e que, eliminadas as
repetições já desenvolvidas em outros livros, Kardec deveria "deixar intactas
todas as teorias que aparecem pela primeira vez aos olhos do público";
·
Leymarie adulterou os dados das edições: de
3ª e 4ª (originais) para 4ª e 5ª, para fazer crer que Kardec já havia feito as
alterações na obra a partir da 4ª edição, publicada enquanto o autor estava
encarnado.
·
Kardec fraudado por Leymarie.
·
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