DOS HOMENS DUPLOS E
DAS APARIÇÕES DE PESSOAS VIVAS
É
fato hoje comprovado e perfeitamente explicado que o Espírito, isolando-se de
um corpo vivo, pode, com auxílio do seu envoltório fluido-perispirítico,
aparecer em lugar diferente do em que está o corpo material. Até o presente,
porém, a teoria, de acordo com a experiência, parece demonstrar que essa
separação somente durante o sono se dá, ou, pelo menos, durante a inatividade
dos sentidos corpóreos. Se são exatos, os fatos seguintes provam que ela
igualmente se produz no estado de vigília. Extraímo-las da obra alemã: Os
fenômenos místicos da vida humana, por Maximiliano Perty, professor da
Universidade de Berne, publicada em 1861 (Leipzig e Heidelberg).
1.
“Um camponês proprietário foi visto, pelo seu cocheiro, na cavalariça, com o
olhar dirigido para os animais, no momento mesmo em que estava a comungar na
Igreja. Narrando o fato, mais tarde, ao seu pastor, perguntou-lhe este em que
pensava ele no momento da comunhão. — Para dizer a verdade — respondeu o
camponês —, pensava nos meus animais. — Aí está explicada a sua aparição —
replicou o eclesiástico.”
Estava
com a verdade o pastor, porquanto, sendo o pensamento atributo essencial do
Espírito, tem este que se achar onde se ache o seu pensamento. A questão é
saber se, no estado de vigília, pode o desprendimento do perispírito ser
suficientemente grande para produzir uma aparição, o que implicaria um como
desdobramento do Espírito, uma de cujas partes animaria o corpo fluídico e a
outra o corpo material. Nada terá isto de impossível, se considerarmos que,
quando o pensamento se concentra num ponto distante, o corpo apenas atua
maquinalmente, por efeito de uma espécie de impulsão mecânica, o que se
verifica, sobretudo, com as pessoas distraídas. A vida espiritual acompanha o
Espírito. É, pois, provável que o homem de quem se trata haja tido, naquele
momento, uma distração forte e que os seus animais o preocupavam mais do que a
comunhão.
Este
outro fato é da mesma categoria; apresenta, porém, uma particularidade mais
notável:
2. “O juiz de cantão, J..., em Fr... mandou certo dia seu amanuense a uma aldeia dos arredores. Passado algum tempo, ele o viu entrar de novo, tomar de um livro no armário e folheá-lo. Perguntou-lhe bruscamente por que ainda não fora onde o mandara. A essas palavras, o amanuense desapareceu. O livro cai no chão e o juiz o coloca em cima de uma mesa, aberto como caíra. À tarde, de regresso o amanuense, o juiz o interrogou sobre se lhe acontecera alguma coisa em caminho, se tinha voltado à sala onde naquele momento se achavam. — Não — respondeu o amanuense —; fiz a viagem na companhia de um amigo; ao atravessarmos a floresta, pusemo-nos a discutir acerca de uma planta que encontráramos e eu lhe disse que, se estivesse em casa, fácil me seria mostrar-lhe uma página de Lineu que me daria razão. Era justamente esse o livro que ficara aberto na página indicada.”
Por
muito extraordinário que pareça o fato, não se poderia taxá-lo de materialmente
impossível, por isso que ainda longe estamos de conhecer todos os fenômenos da
vida espiritual. Contudo, faz-se mister a confirmação. Num caso desses, seria
preciso comprovar, de maneira positiva, o estado do corpo no momento da
aparição. Até prova em contrário, duvidamos de que o fato seja possível, desde
que o corpo se ache em atividade inteligente.
Os
que seguem bem mais extraordinários são e francamente confessamos que nos
inspiram dúvidas ainda maiores. Compreende-se facilmente que a aparição do
Espírito de uma pessoa viva seja vista por uma terceira pessoa, porém não que
um indivíduo possa ver a sua própria aparição, principalmente nas condições
abaixo referidas.
3.
“O secretário do governo, Triptis, em Weimar, indo à chancelaria, em busca de
um maço de documentos de que muito precisava, deparou lá consigo, já sentado na
sua cadeira habitual e tendo diante de si os documentos. Assustado, volta para
casa e manda seu empregado com ordem de apanhar os documentos que se achavam no
lugar do costume. O empregado vai e igualmente vê o patrão sentado na sua
cadeira.”
4.
“Becker, professor de Matemática em Rostok, estava à mesa com alguns amigos,
entre os quais surge uma questão teológica. Becker vai à sua biblioteca em
busca de uma obra que decidiria a questão e dá consigo assentado no lugar
costumeiro. Olhando por cima dos ombros do seu outro eu, verifica que este lhe
aponta a seguinte passagem da Bíblia, num volume aberto: ‘Arranja tua casa, pois
tens de morrer.’ Volta para junto de seus amigos que em vão se esforçam por lhe
demonstrar que era loucura ligar a menor importância àquela visão. — Ele morreu
no dia seguinte.”
5.
“Hoppack, autor da obra: Materiais para o estudo da psicologia, diz que o padre
Steinmetz, com visitas em casa, estando no seu quarto, se viu a si próprio em
seu jardim, no lugar que lhe era preferido. Apontando para si mesmo e depois
para o seu semelhante, disse: ‘Aqui está Steinmetz, o mortal; lá está o
imortal.’”
6.
“F..., da cidade de Z..., que foi juiz mais tarde, achando-se, quando moço, em
vilegiatura no campo, uma moça da casa lhe pediu fosse buscar ao seu quarto um
guarda-sol. Ele foi e viu a moça sentada à sua mesa de trabalho, porém mais
pálida do que quando a deixara. Olhava para a frente. F..., apesar do medo de
que foi presa, apanhou o guarda-sol, que estava ao lado dela, e o levou.
Vendo-o de semblante transtornado, disse- -lhe a moça: ‘Confesse que viu alguma
coisa, que me viu no quarto. Não se aflija, não estou para morrer. Sou dupla
(em alemão: Doppelgaenger, que quer dizer, literalmente: alguém que anda
duplo). Em pensamento, eu estava junto do meu trabalho e já muitas vezes dei
com a minha imagem ao meu lado. Nada fazemos uma à outra.’”
7.
“O conde D... e as sentinelas pretenderam ter visto uma noite a imperatriz
Elisabeth da Rússia, sentada em seu trono, na sala onde este se erguia, em
trajes de grande gala, estando ela deitada e a dormir no seu aposento. A dama
de honra, que se achava de serviço, convencida do fato, foi despertá-la. A
imperatriz se dirigiu também para a sala do trono e viu lá a sua imagem.
Ordenou a uma sentinela que fizesse fogo; imediatamente desapareceu a imagem. A
imperatriz morreu três meses depois.”
8.
“Um estudante, chamado Elger, tornou-se muito melancólico, depois de se ter
visto a si mesmo com o costume vermelho que habitualmente usava. Nunca via o
seu rosto, mas apenas os contornos de uma forma vaporosa que se lhe assemelhava
e sempre ao cair da tarde ou ao luar. Via a imagem no lugar onde estivera por
longo tempo a estudar.”
9.
“Uma governanta francesa, Émilie Sagée, perdeu 19 vezes esse cargo, porque
aparecia por toda parte em duplo. As moças de um pensionato em Neuwelke, na
Livônia, viram-na algumas vezes no salão ou no jardim, ao mesmo tempo que, em
realidade, ela se achava algures. Doutras vezes, viam, diante do quadro-negro,
duas senhoritas Sagée, uma ao lado da outra, exatamente iguais, fazendo os
mesmos movimentos, com a única diferença de que só a verdadeira Sagée tinha na
mão um pedaço de giz, com que escrevia no quadro.”
A
obra do Sr. Perty contém grande número de fatos deste gênero. É de notar-se
que, em todos os casos citados, o princípio inteligente se mostra do mesmo modo
ativo nos dois indivíduos e, até, mais ativo no ser material, quando o
contrário é que deveria dar-se. Mas o que nos parece radicalmente impossível é
que haja antagonismo, divergência de ideias, de pensamentos e de sentimentos
nos dois seres. Entretanto, essa divergência é manifesta, sobretudo, no fato no
4, em o qual um previne o outro de sua
morte, e no nº 7, em que a imperatriz manda fazer fogo contra o seu outro eu.
Admitindo-se
a divisão do perispírito e uma força fluídica suficiente a manter a atividade
normal no corpo; supondo-se também a divisão do princípio inteligente, ou uma
irradiação sua capaz de animar os dois seres e de lhe facultar uma espécie de
ubiquidade, esse princípio, que é uno, tem que se conservar idêntico; não
poderia, pois, haver, de um lado, uma vontade que não existisse do outro, a
menos se admita que haja Espíritos gêmeos, como há corpos gêmeos, isto é, que
dois Espíritos se identifiquem para encarnar num só corpo, o que não é
concebível.
Se,
em todas essas histórias fantásticas, alguma coisa há que se deva guardar,
também há muito que repudiar, havendo ainda a parte pertencente à lenda. Longe
de nos induzir a aceitá-las cegamente, o Espiritismo nos ajuda a separar o
verdadeiro do falso, o possível do impossível, mediante leis que nos revela,
concernentes à constituição e ao papel do elemento espiritual. Não nos
apressemos, todavia, em rejeitar a priori tudo o que não compreendemos, porque
muito distante estamos de conhecer todas as leis e porque a Natureza ainda nos
não patenteou todos os seus segredos. O Mundo Invisível é um campo ainda novo
de observações e seríamos presunçosos se pretendêssemos haver sondado todas as
suas profundezas, quando incessantemente novas maravilhas se ostentam aos
nossos olhos. Entretanto, há fatos cuja impossibilidade material a lógica e as
leis conhecidas demonstram. Tal, por exemplo, o que vem relatado na Revista
Espírita de fevereiro de 1859, sob a epígrafe: Meu amigo Hermann. Trata-se de um
jovem alemão da alta roda, delicado, atencioso, de bom caráter, que, todas as
tardes, ao pôr do sol, caía em estado de morte aparente, durante o qual seu
Espírito despertava nos antípodas, na Austrália, em o corpo de um bandido que
acabava sendo enforcado.
O
simples bom senso demonstra que, admitida como possível essa dualidade
corpórea, o mesmo Espírito não pode ser, alternativamente, um homem honesto,
durante o dia, num corpo e, à noite, um bandido, noutro corpo. Quem diga que o
Espiritismo acredita em tais histórias prova que não o conhece, pois que, ao
contrário, ele fornece os meios de evidenciar a absurdidade delas. Mas, ao
mesmo tempo que demonstra o erro de uma crença, prova que muitas vezes essa
crença repousa num princípio verdadeiro, desfigurado ou exagerado pela
superstição. Cumpre se destaque o fruto da casca que o envolve.
Que
contos ridículos se não engendraram sobre o raio, antes que se conhecesse a lei
da eletricidade! Outro tanto se dá no que concerne às relações do mundo visível
com o Mundo Invisível. Tornando conhecida a lei que preside a essas relações, o
Espiritismo as coloca no terreno da realidade. Esta realidade, porém, ainda é
excessiva para os que não admitem nem almas, nem Mundo Invisível. Ao ver
desses, é superstição tudo o que sai dos limites do mundo visível e tangível.
Tal a razão por que achincalham o Espiritismo.
Nota
– A questão, muito interessante, dos homens duplos e a dos agêneres, que àquela
se liga intimamente, até agora a ciência espírita as relegou para segundo plano,
à falta de documentos para completa elucidação de uma e outra. Essas
manifestações, por muito singulares que sejam, por incríveis que pareçam à
primeira vista, sancionadas pelas narrativas dos mais sérios historiadores da
Antiguidade e da Idade Média, confirmadas por fatos recentes, anteriores ao
advento do Espiritismo, ou contemporâneos, de modo nenhum podem ser postas em
dúvida. O livro dos médiuns, no artigo intitulado: Visitas espirituais entre
pessoas vivas, e a Revista Espírita, em muitas passagens, confirmam a realidade
de tais manifestações de forma absolutamente incontestável. De um confronto e
de um exame aprofundado de todos esses fatos, talvez ressaltasse uma solução
pelo menos parcial da questão e a eliminação de algumas das dificuldades que
parecem envolvê-la.
Muito
gratos ficaríamos àqueles dos nossos correspondentes que se dignassem de fazer
dessa questão um estudo especial, quer pessoalmente, quer por intermédio dos
Espíritos, e de nos comunicarem o resultado de suas pesquisas, no interesse, bem
entendido, da difusão da verdade.
Percorrendo
rapidamente os anos anteriores da Revista e considerando os fatos assinalados e
as teorias enunciadas para explicá-los, chegamos à conclusão de que talvez conviesse
separar os fenômenos em duas categorias bem distintas, o que permitiria se lhes
dessem explicações diferentes e se demonstrasse que são mais aparentes do que
reais as impossibilidades que se levantam contra a aceitação pura e simples dos
mesmos fenômenos. (Vejam-se a respeito os artigos da Revista Espírita de
janeiro de 1859, O louquinho de Bayonne; fevereiro de 1859, Os agêneres e Meu
amigo Hermann; maio de 1859, O laço entre o Espírito e o corpo; novembro de
1859, A alma errante; janeiro de 1860, O Espírito de um lado e o corpo do
outro; março de 1860, Estudo sobre o Espírito das pessoas vivas, O doutor V...
e a senhorita S...; abril de 1860, O fabricante de São Petersburgo, Aparições
tangíveis; novembro de 1860, História de Maria de Agreda; julho de 1861, Uma
aparição providencial etc. etc.).
A
faculdade de expansão dos fluidos perispiríticos já está sobejamente
demonstrada pelas mais dolorosas operações cirúrgicas realizadas em doentes
adormecidos, quer pelo clorofórmio e o éter, quer pelo magnetismo animal. Não
raro, com efeito, estes últimos conversam de coisas agradáveis com os
assistentes, ou se transportam para longe, em Espírito, enquanto o corpo se
retorce com todas as aparências de estar experimentando as mais horríveis
torturas. A máquina humana, imobilizada no todo ou em parte, é retalhada pelo
escalpelo brutal do cirurgião, os músculos se agitam, crispam-se os nervos e
transmitem a sensação ao aparelho cerebroespinhal, mas a alma, que é quem, no
estado normal, sente a dor e a manifesta exteriormente, afastada, por alguns
momentos, do corpo sujeito à operação, dominada por outras ideias, por outras
ações, só muito surdamente é avisada do que se passa no seu envoltório mortal e
se conserva perfeitamente insensível. Quantas vezes não se têm visto soldados
gravemente feridos, absorvidos pelo ardor do combate, a perder sangue e forças,
combaterem por muito tempo ainda, sem se aperceberem de seus ferimentos? Um
homem vivamente preocupado recebe um golpe violento sem sentir coisa alguma, e
só quando cessa a abstração da sua inteligência, reconhece tê-lo atingido a
sensação dolorosa que experimenta. A quem não aconteceu ainda, durante uma
profunda contenção do Espírito, passar pelo meio de uma multidão tumultuosa e
ululante, sem nada ver, nem ouvir, embora o nervo óptico e o aparelho auditivo
hajam percebido e transmitido à alma as sensações? Pelos casos que precedem e
por uma imensidade de fatos que seria ocioso reproduzir aqui, mas que a todos é
possível conhecer e apreciar, torna-se fora de dúvida que o corpo pode
desempenhar suas funções orgânicas, estando longe o Espírito, levado por
preocupações de outra ordem. Indefinidamente expansível, conservando ao corpo a
elasticidade e a atividade necessárias à sua existência, o perispírito
acompanha constantemente o Espírito durante a sua prolongada viagem pelo mundo
ideal.
Se,
ademais, considerarmos a propriedade, muito conhecida, que ele possui, de condensar-se,
propriedade que lhe permite tornar-se visível sob aparências corpóreas aos
médiuns videntes e, embora mais raramente, a quem quer que se ache presente no
lugar para onde o Espírito se haja transportado, não poderemos pôr em dúvida a
possibilidade do fenômeno da ubiquidade.
Temos,
pois, como demonstrado que uma pessoa viva pode aparecer simultaneamente em
dois lugares afastados um do outro: num, com o seu corpo real; no outro, com o
seu perispírito momentaneamente condensado sob a aparência de suas formas
materiais. Entretanto, de acordo nisto, como sempre, com Allan Kardec, não
podemos admitir a ubiquidade, senão quando reconhecemos identidade perfeita nos
modos por que se comporta o ser aparente. Tais, por exemplo, os fatos anteriormente
citados, nos 1 e 2. Quanto aos fatos que se seguem a esses e que consideramos
inexplicáveis, se lhes aplicamos a teoria da ubiquidade, logo nos parecem,
senão indiscutíveis, pelo menos admissíveis, desde que considerados de outro
ponto de vista.
Nenhum
dos nossos leitores ignora que os Espíritos desencarnados têm a faculdade de
mostrar-se, sob aparência material, em certas circunstâncias e, em particular,
aos médiuns videntes. Contudo, em bom número de casos, tais como os das
aparições visíveis e tangíveis para uma multidão, ou para umas tantas pessoas, evidente
se faz que a percepção da aparição não é devida à faculdade mediúnica dos
assistentes, mas à realidade da aparência corpórea do Espírito e, nessa
circunstância, como nos casos de ubiquidade, essa aparência corpórea resulta da
condensação do aparelho perispirítico. Ora, se, as mais das vezes, os
Espíritos, para se tomarem reconhecíveis, se apresentam tais quais eram em
vida, com as vestes que habitualmente usavam, impossível não há de ser que se
apresentem vestidos de modo diferente, ou mesmo sob aspectos quaisquer, como,
por exemplo, O louquinho de Bayonne, que aparecia ora sob a sua forma pessoal,
ora com a figura de um irmão seu, já igualmente morto, ora sob o aspecto de
pessoas vivas e até presentes. O Espírito tinha o cuidado de fazer lhe
reconhecessem a identidade, sem embargo das várias formas sob que se
apresentava. Nada, porém, teria ele feito, se não fosse evidente que as
testemunhas da manifestação estavam persuadidas de que assistiam a um fenômeno
de ubiquidade.
Se,
considerando como um precedente esse fato, que absolutamente não é único, procurarmos
explicar os de nos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, talvez se nos torne possível aceitar-lhes
a realidade, ao passo que, admitida a ubiquidade, a incompatibilidade das ideias,
o antagonismo dos sentimentos e a atividade do organismo das duas partes não
nos permitem considerá-los possíveis.
No
fato no 4 se, em vez de imaginarmos o
professor Becker em presença do seu sósia, admitirmos que ele tinha diante de
si um Espírito que lhe aparecia com o seu aspecto, deixa de haver qualquer
antagonismo e o fenômeno entra no domínio do possível. O mesmo se dá com o fato
nº 7. Não se compreende que Elisabeth da
Rússia haja mandado atirar sobre a sua própria imagem, mas admite-se perfeitamente
que o haja feito contra um Espírito que tomara a sua aparência para mistificá-la.
Alguns Espíritos tomam às vezes nomes de empréstimo e adotam o estilo e as
formas de dizer de outro, para alcançarem a confiança dos médiuns e conseguirem
penetrar nos grupos. Que haveria de impossível que a um Espírito orgulhoso
aprouvesse tomar a forma da imperatriz Elisabeth e sentar-se no seu trono, a
fim de dar vã satisfação aos seus sonhos ambiciosos? O mesmo se pode dizer com
relação a outros fatos.
Esta
explicação damo-la apenas pelo que possa valer. Não passa, para nós, de uma suposição
bastante plausível; não é a solução real do problema. Mas qual a apresentamos,
ela nos parece de natureza a esclarecer a questão, de atrair para esta as luzes
da discussão e da refutação. A esse título é que a submetemos aos nossos
leitores. Possam as reflexões que provoque, as meditações a que abra ensejo
cooperar para a elucidação de um problema que apenas esfloramos, deixando que
outros mais dignos de o fazerem dissipem a obscuridade que ainda a envolvem. Nota
da Redação
CONTROVÉRSIAS SOBRE A
IDEIA DA EXISTÊNCIA DE SERES INTERMEDIÁRIOS ENTRE O HOMEM E DEUS
N.,
4 de fevereiro de 1867.
Caro
Mestre,
Algum
tempo já faz que não dou sinal de vida. Muito ocupado sempre, durante a minha
estada em Lyon, não pude ter conhecimento tão perfeito, quanto desejara, do
estado atual da Doutrina, neste grande centro. A uma única reunião espírita
assisti. Entretanto, cheguei a comprovar que, neste meio, a primitiva fé
continua sendo qual deve ser nos corações verdadeiramente sinceros.
Em
diversos outros Centros do Meio-dia, ouvi discutirem a seguinte opinião
externada por alguns magnetizadores: que muitos fenômenos, ditos espíritas, são
simples efeitos de sonambulismo e que o Espiritismo mais não fez do que se
substituir ao magnetismo, ou, antes, do que lhe substituir ridiculamente o
nome. É, como vedes, um novo ataque dirigido contra a mediunidade. Assim,
segundo essas pessoas, tudo o que escrevem os médiuns resulta das faculdades da
alma encarnada; é esta quem, desprendendo-se momentaneamente, lê o pensamento
das pessoas presentes; é ela quem vê, a distância, e prevê os acontecimentos;
quem, por meio de um fluido magnético-espiritual, agita, levanta, derriba
mesas, ouve os sons etc. Tudo, em suma, assentaria na essência anímica, sem a
intervenção de seres puramente espirituais.
Direis
que não vos dou nenhuma novidade. Eu mesmo, com efeito, tenho ouvido, desde
alguns anos, a sustentação dessa tese por parte de alguns magnetizadores.
Agora, porém, procuram implantar essas ideias que, a meu ver, são contrárias à
verdade. É sempre errôneo cair nos extremos e tanto exagero há em tudo
atribuir-se ao Magnetismo, quanto haveria, da parte dos espíritas, em negarem
as leis do Magnetismo. Não se poderiam arrebatar à matéria as leis magnéticas,
como não se poderiam arrebatar ao Espírito as leis puramente espirituais.
Onde
acaba o poder da alma sobre os corpos? Qual a parte dessa força inteligente nos
fenômenos do Magnetismo? Qual a do organismo? Aí estão questões de muito
interesse, questões graves para a Filosofia, como para a Medicina.
Aguardando
a solução desses problemas, citar-vos-ei algumas passagens de Charpignon, o
doutor de Orléans, partidário da transmissão do pensamento. Vereis que ele se
reconhece impotente para demonstrar que, na visão propriamente dita, a causa
reside na extensão do simpático orgânico, como o pretendem muitos autores.
Diz,
à p. 289:
Acadêmicos,
duplicai o trabalho dos vossos candidatos; moralistas, promulgai leis para a
sociedade, para o mundo, esse mundo que de tudo ri, que quer os seus gozos,
desprezando as Leis de Deus e os direitos do homem e que zomba dos vossos esforços,
porque tem a seu serviço uma força de que não suspeitais e que deixastes crescesse
de tal maneira, que não sois senhores de contê-la.
À p.
323:
Compreendemos
muito bem, até aqui, o modo de transmissão do pensamento, mas somos incapazes
de compreender, por meio dessas Leis de simpatia harmônica, o sistema pelo qual
o homem forma em si mesmo tal ou tal pensamento, tal ou tal imagem, e a
solicitação de objetos exteriores. Isso está fora das propriedades do organismo
e a Psicologia, achando nessa faculdade rememorativa ou criadora, conforme o
desejo do homem, alguma coisa de antagônico com as propriedades do organismo,
fá-la depender de um ser substancial, diferente da matéria. Começamos, então, a
encontrar, no fenômeno do pensamento, algumas lacunas entre a capacidade das
leis fisiológicas do organismo e o resultado obtido. O rudimento do fenômeno,
se assim nos podemos exprimir, é bem fisiológico, mas a sua extensão,
verdadeiramente prodigiosa, não o é. E, aqui, necessário se torna admitir que o
homem goza de uma faculdade que não pertence a nenhum dos dois elementos
materiais de que, até o presente, o temos visto composto. O observador de
boa-fé reconhecerá, pois, uma terceira parte que entrará na composição do
homem, parte que começa a se lhe revelar, do ponto de vista da Psicologia
magnética, por meio de caracteres novos, e que se relacionam com o que os
filósofos atribuem à alma.
A
existência, porém, da alma se encontra mais fortemente demonstrada pelo estudo
de algumas outras faculdades do sonambulismo magnético. Assim, a visão a
distância, quando completa e nitidamente destacada da transmissão do
pensamento, não poderia, segundo a nossa maneira de ver, explicar-se pela
extensão do simpático orgânico.
Depois,
à p. 330:
“Tínhamos,
como se vê, grandes motivos para avançar que o estudo dos fenômenos magnéticos
guarda fortes relações com a Filosofia e a Psicologia. Assinalamos um trabalho
a ser feito e a fazê-lo convidamos os homens da especialidade”.
Nas
páginas seguintes, trata dos seres imateriais e de suas possíveis relações com
as nossas individualidades.
P.
349:
Para
nós, é fora de dúvida e precisamente por motivo das leis psicológicas que esboçamos
neste trabalho, que a alma humana pode ser esclarecida diretamente, ou por
Deus, ou por uma outra inteligência. Cremos que essa comunicação sobrenatural
pode dar-se, assim no estado normal, como no estado extático, seja espontâneo,
seja artificial.
P.
351:
“Mas
insistimos em dizer que a previsão natural no homem é limitada e não poderia
ser tão precisa, tão constante e tão amplamente exposta, como as previsões
feitas pelos profetas sagrados, ou por homens que tinham a inspirá-los uma
inteligência superior à alma humana”.
P.
391:
A
Ciência e a crença no mundo sobrenatural são dois termos antagônicos, mas apressamo-nos
a dizê-lo, são-no em consequência das exagerações que surgiram dos dois lados.
É possível, ao nosso parecer, que a Ciência e a lei façam aliança; então, o
espírito humano se achará no nível da sua perfectibilidade terrestre.
P.
396:
O
Antigo, tanto quanto o Novo Testamento, assim como os anais de todos os povos,
estão cheios de fatos que não se podem explicar, a não ser pela ação de seres superiores
ao homem. Aliás, os estudos de Antropologia, de Metafísica e de Ontologia
provam a realidade da existência de seres imateriais entre o homem e Deus e a
possibilidade de eles influírem sobre a espécie humana.
Agora,
a opinião de uma das principais autoridades em Magnetismo, sobre a existência
de seres fora da Humanidade. Extraímo-la da correspondência de Deleuze com o
Dr. Billot:
O
único fenômeno que parece comprovar a comunicação com os seres imateriais são
as aparições, das quais há muitos exemplos. Como estou convencido da
imortalidade da alma, não encontro razões para negar a possibilidade da
aparição das pessoas que, tendo deixado esta vida, se preocupam com os que aqui
lhes foram caros e vêm apresentar-se-lhes, para lhes darem salutares conselhos.
O Dr. Ordinaire, de Mâcon, outra autoridade na matéria, assim se exprime:
O
fogo sagrado, a influência secreta (de Boïleau), a inspiração, não provêm,
pois, de tal ou tal contextura, como o pretendem os frenologistas, mas de uma
alma poética, em relação com um Gênio ainda mais poético. O mesmo com relação à
música, à pintura etc. Essas inteligências superiores não seriam almas
desprendidas da matéria e que se elevam gradualmente, à medida que se depuram,
até a grande, a universal inteligência que as abrange todas, até Deus? Não
tomariam lugar as nossas almas, após diversas migrações, entre esses seres
materiais?
Diz
o mesmo autor: Do que precede, concluímos: que o estudo da alma ainda está na
infância; que, existindo, do pólipo ao homem, uma série de inteligências e
sendo certo que nada em a Natureza se interrompe bruscamente, é racional que
exista, do homem a Deus, outra série de inteligências. O homem é o elo que liga
as inteligências inferiores, associadas à matéria, às inteligências superiores,
imateriais. Do homem a Deus desdobra-se uma série semelhante à que vai do
pólipo ao homem, isto é, uma série de seres etéreos, mais ou menos perfeitos,
no gozo de especialidades diversas, com empregos e funções variadas.
Que
essas inteligências superiores se revelam tangivelmente no sonambulismo artificial;
Que essas inteligências têm relações íntimas com as nossas almas; Que a essas
inteligências é que devemos os remorsos, quando praticamos o mal, e o contentamento,
quando praticamos uma boa ação; Que a essas inteligências é que os homens
superiores devem as boas inspirações; Que a essas inteligências é que os
extáticos devem a faculdade de prever o futuro e de anunciar acontecimentos
porvindouros; Enfim, que, para atuar sobre essas inteligências e torná-las
propícias, ação poderosa têm a virtude e a prece.
Nota
– A opinião de tais homens, e eles não são os únicos, tem decerto um valor que
ninguém poderia contestar; porém, nunca passaria de uma opinião mais ou menos
racional, se a observação não a confirmasse. O Espiritismo está todo nas ideias
que acabamos de citar; apenas, ele as completa por meio de observações especiais
e as coordena, imprimindo-lhes a sanção da experiência.
Os
que se obstinam em negar a existência do Mundo Espiritual, sem poderem,
contudo, negar os fatos, se esfalfam por lhes encontrar a causa exclusivamente
no mundo corpóreo. Mas uma teoria, para ser verdadeira, tem que explicar todos
os fatos a que diz respeito; um único fato contraditório a destrói, porquanto
não há exceções nas Leis da Natureza. Foi o que aconteceu à maioria das que no
princípio se imaginaram para explicar os fenômenos espíritas. Quase todas
caíram, uma a uma, diante de fatos que elas não abrangiam. Depois de haverem
experimentado, sem resultado algum, todos os sistemas, forçoso se tornou
volverem às teorias espíritas, como as mais concludentes, porque, não tendo
sido formuladas prematuramente e sobre observações feitas à pressa, abrangem
todas as variedades, todos os matizes dos fenômenos. O que fez fossem aceitas
tão rapidamente pela maioria das gentes foi que cada um achou nelas a solução completa
e satisfatória para o que inutilmente procuram resolver por outras vias.
Entretanto,
muitos ainda as repelem, o que é comum a todas as grandes ideias novas que
mudam os hábitos e as crenças, as quais todas esbarraram durante longo tempo em
contraditores obstinados, mesmo entre os homens mais esclarecidos. Um dia,
porém, chega em que o que é verdadeiro sobreleva o que é falso e todos se admiram
da oposição que lhe moveram, tão natural parece o que fora repelido. O mesmo se
dará com o Espiritismo, sendo de notar-se que de todas as grandes ideias que
hão revolucionado o mundo, nenhuma conquistou em tão pouco tempo tão grande
número de adeptos em todos os países e em todas as camadas sociais. Tal a razão
por que os espíritas, cuja fé não é cega, antes se funda na observação, não se
preocupam nem com os seus contraditores, nem com os que lhes partilham das ideias.
Eles ponderam que, ressaltando das próprias Leis da Natureza, em vez de basear-se
numa derrogação dessas leis, não pode a Doutrina deixar de prevalecer, desde
que essas leis sejam reconhecidas.
Como
todos sabem, não é nova a ideia da existência de seres intermediários entre Deus
e o homem. Em geral, porém, toda gente supunha que esses seres constituíam uma
criação à parte. As religiões os designaram pelos nomes de anjos e demônios, os
pagãos lhes chamavam deuses. Provando que tais seres não são senão as almas dos
homens em diferentes graus da escala espiritual, o Espiritismo reintegra a
criação na unidade grandiosa que é a essência mesma das Leis divinas. Em vez de
uma imensidade de criações estacionárias, que implicariam, da parte da Divindade,
capricho ou parcialidade, ele mostra haver uma única, essencialmente progressiva,
sem privilégio para qualquer criatura, elevando-se cada individualidade do
estado de embrião ao de desenvolvimento completo, como o gérmen que da semente
se eleva ao estado de árvore. O Espiritismo, pois, revela a unidade, a harmonia
e a justiça na Criação. Segundo ele, os demônios são as almas atrasadas, ainda
prenhes dos vícios da Humanidade; os anjos são essas mesmas almas depuradas e
desmaterializadas; entre esses dois pontos extremos, a multidão das almas nos
diferentes graus da escala progressiva. Estabelece desse modo a solidariedade entre
o Mundo Espiritual e o mundo corpóreo.
Quanto
à questão proposta: “Nos fenômenos espíritas ou sonambúlicos, qual o limite
onde cessa a ação própria da alma e começa a dos Espíritos?” — diremos que
semelhante limite não existe, ou, melhor, que nada tem de absoluto. Desde que
não há espécies distintas, que a alma é apenas um Espírito encarnado, e o Espírito
apenas uma alma desprendida dos liames terrenos; que uma e outro são um mesmo
ser em meios diferentes, as faculdades e aptidões têm que ser as mesmas. O
sonambulismo é um estado transitório entre a encarnação e a desencarnação, um
estado de desprendimento parcial, um pé antecipadamente posto no Mundo
Espiritual. A alma encarnada, ou, se o preferirem o próprio Espírito do
sonâmbulo ou do médium, pode, portanto, fazer quase o que fará a alma
desencarnada e até mais, se for mais adiantado, com a única diferença, todavia,
de que, estando mais livre pelo seu desprendimento completo, a alma tem percepções
especiais inerentes ao seu estado.
É
por vezes muito difícil distinguir, num dado efeito, o que provém diretamente da
alma do médium do que promana de uma causa estranha, porque com frequência as
duas ações se confundem e convalidam. É assim que nas curas por imposição das
mãos, o Espírito do médium pode atuar por si só, ou com a assistência de outro
Espírito; que a inspiração poética ou artística pode ter dupla origem. Mas do
fato de ser difícil fazer-se uma distinção como essa não se segue seja ela impossível.
Não raro, a dualidade é evidente e, em todos os casos, quase sempre ressalta de
atenta observação.
CAUSA E NATUREZA DA CLARIVIDÊNCIA
SONAMBÚLICA
Explicação do
fenômeno da lucidez
Sendo
de natureza diversa das que ocorrem no estado de vigília, as percepções que se
verificam no estado sonambúlico não podem ser transmitidas pelos mesmos órgãos.
É sabido que neste caso a visão não se efetua por meio dos olhos que, aliás, se
conservam, em geral, fechados e que até podem ser abrigados dos raios luminosos,
de maneira a afastar todo motivo de suspeita. Ademais, a visão a distância e
através dos corpos opacos exclui a possibilidade do uso dos órgãos ordinários
da vista. Forçoso é, pois, se admita que no estado de sonambulismo um sentido
novo se desenvolve, como sede de faculdades e de percepções novas, que
desconhecemos e das quais não nos podemos aperceber, senão por analogia e pelo
raciocínio. Bem se vê que nada de impossível há nisso, mas qual a sede desse
novo sentido? Não é fácil determiná-la com exatidão. Nem mesmo os sonâmbulos fornecem
a tal respeito qualquer indicação precisa. Uns há que, para verem melhor,
aplicam os objetos sobre o epigástrio, outros sobre a fronte, outros no
occipital. O sentido de que se trata não parece, portanto, circunscrito a um
lugar determinado; é, todavia, certo que a sua maior atividade reside nos
centros nervosos. O que é positivo é que o sonâmbulo vê. Por onde e como? É o
que nem ele mesmo pode explicar.
Notemos,
porém, que, no estado sonambúlico, os fenômenos da visão e as sensações que o
acompanham são essencialmente diferentes do que se passa no estado ordinário,
pelo que não nos serviremos do termo ver, senão por comparação e por nos faltar
naturalmente um com que designemos uma coisa desconhecida. Um povo composto de
cegos de nascença certo careceria de uma palavra para designar a luz e
referiria as sensações que ela produz a alguma das que lhe fossem familiares
por lhes estar ele sujeito.
Alguém
procurava explicar a um cego a impressão viva e deslumbrante da luz sobre os
olhos. Compreendo, disse ele, é como o som de uma trombeta. Outro, um pouco
mais prosaico sem dúvida, ao qual queriam fazer que compreendesse a emissão dos
raios luminosos em feixes ou cores, respondeu: Ah! sim, é como um pão de
açúcar. Estamos nas mesmas condições, relativamente à lucidez sonambúlica:
somos verdadeiros cegos e, do mesmo modo que estes últimos com relação à luz,
comparamo-la ao que tem mais analogia com a nossa faculdade visual. Mas, se
quisermos estabelecer uma analogia absoluta entre essas duas faculdades e
julgar de uma pela outra, forçosamente nos enganaremos, como os dois cegos que acabamos
de citar. É esse o erro de quase todos os que procuram pretensamente
convencer-se pela experiência: intentam submeter a clarividência sonambúlica às
mesmas provas que a vista ordinária, sem ponderarem que entre elas a única
relação existente é a do nome que lhes damos. Daí, como os resultados nem
sempre lhes correspondem à expectativa, acham mais simples negar.
Se
procedermos por analogia, diremos que o fluido magnético, disseminado por toda
a Natureza e cujos focos principais parece que são os corpos animados, é o
veículo da clarividência sonambúlica, como o fluido luminoso é o veículo das
imagens que a nossa faculdade visual percebe. Ora, assim como o fluido luminoso
torna transparentes corpos que ele atravessa livremente, o fluido magnético,
penetrando todos os corpos sem exceção, torna inexistentes os corpos opacos
para os sonâmbulos. Tal a explicação mais simples e mais material da lucidez,
falando do nosso ponto de vista. Temo-la como certa, porquanto o fluido
magnético incontestavelmente desempenha importante papel nesse fenômeno; ela,
entretanto, não poderia elucidar todos os fatos. Há outra que os abrange todos,
mas, para expô-la, fazem-se indispensáveis algumas explicações preliminares.
Na
visão a distância, o sonâmbulo não distingue um objeto ao longe, como o
faríamos nós com o auxílio de uma luneta. Não é que o objeto, por uma ilusão de
óptica, se aproxime dele, ELE É QUE SE APROXIMA DO OBJETO. O sonâmbulo vê o
objeto exatamente como se este se achasse a seu lado; vê-se a si mesmo no lugar
que ele observa; numa palavra: transporta-se para esse lugar. Seu corpo, no
momento, parece extinto, a palavra lhe sai mais surda, o som da sua voz
apresenta qualquer coisa de singular; a vida animal também parece que se lhe
extingue; a vida espiritual está toda no lugar aonde o transporta o seu próprio
pensamento: somente a matéria permanece onde estava. Há pois uma certa porção
do ser que se lhe separa do corpo e se transporta instantaneamente através do
espaço, conduzida pelo pensamento e pela vontade. Evidentemente, é imaterial
essa porção; a não ser assim, produziria alguns dos efeitos que a matéria
produz. É a essa parcela de nós mesmos que chamamos: a alma.
É a
alma que confere ao sonâmbulo as maravilhosas faculdades de que ele goza. A
alma é quem, dadas certas circunstâncias, se manifesta, isolando-se em parte e
temporariamente do seu invólucro corpóreo. Para quem quer que haja observado
com atenção os fenômenos do sonambulismo em toda a sua pureza, é patente a
existência da alma, tornando-se-lhe uma insensatez demonstrada até a evidência
a ideia de que tudo em nós acaba com a vida animal. Pode-se, pois, dizer com
alguma razão que o magnetismo e o materialismo são incompatíveis. Se alguns
magnetizadores se afastam desta regra e professam as doutrinas materialistas, é
sem dúvida que se hão cingido a um estudo muito superficial dos fenômenos
físicos do Magnetismo e não procuram seriamente a solução do problema da visão a
distância. Como quer que seja, nunca vimos um único sonâmbulo que não se
mostrasse penetrado de profundo sentimento religioso, fossem quais fossem suas
opiniões no estado vígil.
Voltemos
à teoria da lucidez. Sendo a alma o princípio básico das faculdades do
sonâmbulo, necessariamente nela é que reside a clarividência, e não nesta ou
naquela parte circunscrita do corpo material. Essa a razão por que o sonâmbulo
não pode indicar o órgão dessa faculdade, como designaria os olhos, se se
tratasse da visão exterior. Ele vê por todo o seu ser moral, isto é, por toda a
sua alma, visto que a clarividência é um dos atributos de todas as partes da
alma, como a luz é um dos atributos de todas as partes do fósforo. Onde quer,
pois, que a alma possa penetrar, há clarividência; essa a causa da lucidez dos
sonâmbulos através de todos os corpos, sob os mais espessos envoltórios e a
todas as distâncias.
Uma
objeção, como é natural, se apresenta a esse sistema e apressamo-nos a
responder a ela. Se as faculdades sonambúlicas são as mesmas da alma
desprendida da matéria, por que não são constantes essas faculdades? Por que
alguns sonâmbulos são mais lúcidos do que outros? Por que, num mesmo indivíduo,
a lucidez é variável? Concebe-se a imperfeição física de um órgão, mas não se
concebe a da alma.
Esta
se acha presa ao corpo por laços misteriosos que não nos fora dado conhecer
antes que o Espiritismo houvesse demonstrado a existência e o papel do
perispírito. Tendo sido esta questão tratada de modo especial na Revista
Espírita e nas obras fundamentais da Doutrina, não nos estenderemos aqui sobre
ela, limitando-nos a dizer que é pelos nossos órgãos materiais que a alma se
manifesta ao exterior. Em nosso estado normal, essas manifestações ficam
naturalmente subordinadas à imperfeição do instrumento, do mesmo modo que o
melhor artífice não pode fazer obra perfeita com utensílios ruins. Assim, por
muito admirável que seja a estrutura do nosso corpo, qualquer que tenha sido a
providência da Natureza, com relação ao nosso organismo, para o exercício das
funções vitais, acima desses órgãos sujeitos a todas as perturbações da
matéria, há a sutileza da nossa alma. Enquanto, pois, ela se conserva presa ao
corpo, sofre-lhe os entraves e as vicissitudes.
O
fluido magnético não é a alma; é um liame, um intermediário entre a alma e o
corpo. Atuando mais ou menos sobre a matéria é que ele torna mais ou menos
livre a alma, donde a diversidade das faculdades sonambúlicas. O sonâmbulo é o
homem despojado apenas de uma parte das suas vestiduras e cujos movimentos são
embaraçados pelo que lhe resta dessas vestiduras. Somente quando tem alijado de
si os últimos restos da ganga terrena, como a borboleta que abandona a sua
crisálida, encontra-se a alma na plenitude de si mesma e goza de liberdade
completa no uso de suas faculdades. Se houvesse um magnetizador bastante
poderoso para dar liberdade absoluta à alma, romper-se-ia o liame terrestre e a
morte imediata se seguiria. O sonambulismo, portanto, fez que puséssemos o pé
na vida futura; ergueu uma ponta do véu sob que se ocultam as verdades que o Espiritismo
nos faz hoje entrever. Não na conheceremos, todavia, em sua essência, senão
quando nos houvermos desembaraçado por completo da cobertura material que neste
mundo a obscurece.
Nenhum comentário:
Postar um comentário