Obras póstumas - Parte 1.VIII

O EGOÍSMO E O ORGULHO

Suas causas, seus efeitos e os meios de destruí-los

É bem sabido que a maior parte das misérias da vida tem origem no egoísmo dos homens. Desde que cada um pensa em si antes de pensar nos outros e cogita antes de tudo de satisfazer aos seus desejos, cada um naturalmente cuida de proporcionar a si mesmo essa satisfação, a todo custo, e sacrifica sem escrúpulo os interesses alheios, assim nas mais insignificantes coisas, como nas maiores, tanto de ordem moral quanto de ordem material. Daí todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e todas as misérias, visto que cada um só trata de despojar o seu próximo.

O egoísmo, por sua vez, se origina do orgulho. A exaltação da personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros. Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que, por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta.

O egoísmo e o orgulho nascem de um sentimento natural: o instinto de conservação. Todos os instintos têm sua razão de ser e sua utilidade, porquanto Deus nada pode ter feito inútil. Ele não criou o mal; o homem é quem o produz, abusando dos dons de Deus, em virtude do seu livre-arbítrio. Contido em justos limites, aquele sentimento é bom em si mesmo. A exageração é o que o torna mau e pernicioso. O mesmo acontece com todas as paixões que o homem frequentemente desvia do seu objetivo providencial. Ele não foi criado egoísta, nem orgulhoso por Deus, que o criou simples e ignorante; o homem é que se fez egoísta e orgulhoso, exagerando o instinto que Deus lhe outorgou para sua conservação.

Não podem os homens ser felizes, se não viverem em paz, isto é, se não os animar um sentimento de benevolência, de indulgência e de condescendência recíprocas; numa palavra: enquanto procurarem esmagar-se uns aos outros. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres sociais; uma e outra, porém, pressupõem a abnegação. Ora, a abnegação é incompatível com o egoísmo e o orgulho; logo, com esses vícios, não é possível a verdadeira fraternidade, nem, por conseguinte, igualdade, nem liberdade, dado que o egoísta e o orgulhoso querem tudo para si. Eles serão sempre os vermes roedores de todas as instituições progressistas; enquanto dominarem, ruirão aos seus golpes os mais generosos sistemas sociais, os mais sabiamente combinados. É belo, sem dúvida, proclamar-se o reinado da fraternidade, mas para que fazê-lo, se uma causa destrutiva existe? É edificar em terreno movediço; o mesmo fora decretar a saúde numa região malsã. Em tal região, para que os homens passem bem, não bastará se mandem médicos, pois que estes morrerão como os outros; insta destruir as causas da insalubridade. Para que os homens vivam na Terra como irmãos, não basta se lhes deem lições de moral; importa destruir as causas de antagonismo, atacar a raiz do mal: o orgulho e o egoísmo.

Essa a chaga sobre a qual deve concentrar-se toda a atenção dos que desejem seriamente o bem da Humanidade. Enquanto subsistir semelhante obstáculo, eles verão paralisados todos os seus esforços, não só por uma resistência de inércia, como também por uma força ativa que trabalhará incessantemente no sentido de destruir a obra que empreendam, por isso que toda ideia grande, generosa e emancipadora arruína as pretensões pessoais. Impossível, dir-se-á, destruir o orgulho e o egoísmo, porque são vícios inerentes à espécie humana. Se fosse assim, houvéramos de desesperar de todo progresso moral; entretanto, desde que se considere o homem nas diferentes épocas transcorridas, não há negar que evidente progresso se efetuou. Ora, se ele progrediu, ainda naturalmente progredirá. Por outro lado, não se encontrará homem nenhum sem orgulho, nem egoísmo? Não se veem, ao contrário, criaturas de índole generosa, em quem parecem inatos os sentimentos do amor ao próximo, da humildade, do devotamente e da abnegação? O número delas, positivamente, é menor do que o dos egoístas; se assim não fosse, não seriam estes últimos os fautores da lei. Há muito mais criaturas dessas do que se pensa e, se parecem tão pouco numerosas, é porque o orgulho se põe em evidência, ao passo que a virtude modesta se conserva na obscuridade. Se, portanto, o orgulho e o egoísmo se contassem entre as condições necessárias da Humanidade, como a da alimentação para sustento da vida, não haveria exceções. O ponto essencial, pois, é conseguir que a exceção passe a constituir regra; para isso, trata-se, antes de tudo, de destruir as causas que produzem e entretêm o mal.

Dessas causas, a principal reside evidentemente na ideia falsa que o homem faz da sua natureza, do seu passado e do seu futuro. Por não saber donde vem, ele se crê mais do que é; e não sabendo para onde vai, concentra na vida terrena todo o seu pensar; acha-a tão agradável, quanto possível; anseia por todas as satisfações, por todos os gozos; essa a razão por que atropela sem escrúpulo o seu semelhante, se este lhe opõe alguma dificuldade. Mas, para isso, é preciso que ele predomine; a igualdade daria, a outros, direitos que ele só quer para si; a fraternidade lhe imporia sacrifícios em detrimento do seu bem-estar; a liberdade também ele só a quer para si e somente a concede aos outros quando não lhe fira de modo algum as prerrogativas. Alimentando todos as mesmas pretensões, têm resultado os perpétuos conflitos que os levam a pagar bem caro os raros gozos que logram obter. Identifique-se o homem com a vida futura e completamente mudará a sua maneira de ver, como a do indivíduo que apenas por poucas horas haja de permanecer numa habitação má e que sabe que, ao sair, terá outra, magnífica, para o resto de seus dias.

A importância da vida presente, tão triste, tão curta, tão efêmera, se apaga, para ele, ante o esplendor do futuro infinito que se lhe desdobra às vistas. A consequência natural e lógica dessa certeza é sacrificar o homem um presente fugidio a um porvir duradouro, ao passo que antes ele tudo sacrificava ao presente. Tomando por objetivo a vida futura, pouco lhe importa estar um pouco mais ou um pouco menos nesta outra; os interesses mundanos passam a ser o acessório, em vez de ser o principal; ele trabalha no presente com o fito de assegurar a sua posição no futuro, tanto mais quando sabe em que condições poderá ser feliz.

Pelo que toca aos interesses terrenos, podem os humanos criar-lhe obstáculos: ele tem que os afastar e se torna egoísta pela força mesma das coisas. Se lançar os olhos para o alto, para uma felicidade a que ninguém pode obstar, interesse nenhum se lhe deparará em oprimir a quem quer que seja e o egoísmo se lhe torna carente de objeto. Todavia, restará o estimulante do orgulho.

A causa do orgulho está na crença, em que o homem se firma, da sua superioridade individual. Ainda aí se faz sentir a influência da concentração dos pensamentos sobre a vida corpórea. Naquele que nada vê adiante de si, atrás de si, nem acima de si, o sentimento da personalidade sobrepuja e o orgulho fica sem contrapeso.

A incredulidade não só carece de meios para combater o orgulho, como o estimula e lhe dá razão, negando a existência de um poder superior à Humanidade. O incrédulo apenas crê em si mesmo; é, pois, natural que tenha orgulho. Enquanto, nos golpes que o atingem, unicamente vê uma obra do acaso e se ergue para combatê-la, aquele que tem fé percebe a mão de Deus e se submete. Crer em Deus e na vida futura é, conseguintemente, a primeira condição para moderar o orgulho; porém, não basta. Juntamente com o futuro, é necessário ver o passado, para fazer ideia exata do presente.

Para que o orgulhoso deixe de crer na sua superioridade, cumpre se lhe prove que ele não é mais do que os outros e que estes são tanto quanto ele; que a igualdade é um fato, e não apenas uma bela teoria filosófica; que estas verdades ressaltam da preexistência da alma e da reencarnação.

Sem a preexistência da alma, o homem é induzido a acreditar que Deus, dado creia em Deus, lhe conferiu vantagens excepcionais; quando não crê em Deus, rende graças ao acaso e ao seu próprio mérito. Iniciando-o na vida anterior da alma, a preexistência lhe ensina a distinguir, da vida corporal, transitória, a vida espiritual, infinita; ele fica sabendo que as almas saem todas iguais das mãos do Criador; que todas têm o mesmo ponto de partida e a mesma finalidade, que todas hão de alcançar, em mais ou menos tempo, conforme os esforços que empreguem; que ele próprio não chegou a ser o que é, senão depois de haver, por longo tempo e penosamente, vegetado, como os outros, nos degraus inferiores da evolução; que, entre os mais atrasados e os mais adiantados, não há senão uma questão de tempo; que as vantagens do nascimento são puramente corpóreas e independem do Espírito; que o simples proletário pode, noutra existência, nascer num trono e o maior potentado renascer proletário. Se levar em conta unicamente a vida planetária, ele vê apenas as desigualdades sociais do momento, que são as que o impressionam; se, porém, deitar os olhos sobre o conjunto da vida do Espírito, sobre o passado e o futuro, desde o ponto de partida até o de chegada, aquelas desigualdades se somem e ele reconhece que Deus nenhuma vantagem concedeu a qualquer de seus filhos em prejuízo dos outros; que deu parte igual a todos e não achanou o caminho mais para uns do que para outros; que o que se apresenta menos adiantado do que ele na Terra pode tomar-lhe a dianteira, se trabalhar mais do que ele por aperfeiçoar-se; reconhecerá, finalmente, que, nenhum chegando ao termo senão por seus esforços, o princípio da igualdade é um princípio de justiça e uma Lei da Natureza, perante a qual cai o orgulho do privilégio.

Provando que os Espíritos podem renascer em diferentes condições sociais, quer por expiação, quer por provação, a reencarnação ensina que naquele a quem tratamos com desdém pode estar um que foi nosso superior ou nosso igual noutra existência, um amigo ou um parente. Se o soubesse, o que com ele se defronta o trataria com atenções, mas, nesse caso, nenhum mérito teria; por outro lado, se soubesse que o seu amigo atual foi seu inimigo, seu servo ou seu escravo, sem dúvida o repeliria. Ora, não quis Deus que fosse assim, pelo que lançou um véu sobre o passado. Deste modo, o homem é levado a ver, em todos, irmãos seus e seus iguais, donde uma base natural para a fraternidade; sabendo que pode ser tratado como haja tratado os outros, a caridade se lhe torna um dever e uma necessidade fundados na própria natureza.

Jesus assentou o princípio da caridade, da igualdade e da fraternidade, fazendo dele uma condição expressa para a salvação, mas estava reservado à terceira manifestação da vontade de Deus, ao Espiritismo, pelo conhecimento que faculta da vida espiritual, pelos novos horizontes que desvenda e pelas leis que revela, sancionar esse princípio, provando que ele não encerra uma simples doutrina moral, mas uma Lei da Natureza que o homem tem o máximo interesse em praticar. Ora, ele a praticará desde que, deixando de encarar o presente como o começo e o fim, compreenda a solidariedade que existe entre o presente, o passado e o futuro. No campo imenso do infinito, que o Espiritismo lhe faz entrever, anula-se a sua importância capital e ele percebe que, por si só, nada vale e nada é; que todos têm necessidade uns dos outros e que uns não são mais do que os outros: duplo golpe, no seu egoísmo e no seu orgulho.

Para isso, é-lhe necessária a fé, sem a qual permanecerá na rotina do presente, não a fé cega, que foge à luz, restringe as ideias e, em consequência, alimenta o egoísmo. É-lhe necessária a fé inteligente, racional, que procura a claridade, e não as trevas, que ousadamente rasga o véu dos mistérios e alarga o horizonte. Essa fé, elemento básico de todo progresso, é que o Espiritismo lhe proporciona, fé robusta, porque assente na experiência e nos fatos, porque lhe fornece provas palpáveis da imortalidade da sua alma, lhe mostra donde ele vem, para onde vai e por que está na Terra e, finalmente, lhe firma as ideias, ainda incertas, sobre o seu passado e sobre o seu futuro.

Uma vez que haja entrado decisivamente por esse caminho, já não tendo o que os incite, o egoísmo e o orgulho se extinguirão pouco a pouco, por falta de objetivo e de alimento, e todas as relações sociais se modificarão sob o influxo da caridade e da fraternidade bem compreendidas.

Poderá isso dar-se por efeito de brusca mudança? Não, fora impossível: nada se opera bruscamente em a Natureza; jamais a saúde volta de súbito a um enfermo; entre a enfermidade e a saúde, há sempre a convalescença. Não pode o homem mudar instantaneamente o seu ponto de vista e volver da Terra para o céu o olhar; o infinito o confunde e deslumbra; ele precisa de tempo para assimilar as novas ideias. O Espiritismo é, sem contradita, o mais poderoso elemento de moralização, porque mina pela base o egoísmo e o orgulho, facultando um ponto de apoio à moral. Há feito milagres de conversão; é certo que ainda são apenas curas individuais, e não raro parciais. O que, porém, ele há produzido com relação a indivíduos constitui penhor do que produzirá um dia sobre as massas. Não lhe é possível arrancar de um só golpe as ervas daninhas. Ele dá a fé e a fé é a boa semente, mas mister se faz que ela tenha tempo de germinar e de frutificar, razão por que nem todos os espíritas já são perfeitos. Ele tomou o homem em meio da vida, no fogo das paixões, em plena força dos preconceitos e se, em tais circunstâncias, operou prodígios, que não será quando o tomar ao nascer, ainda virgem de todas as impressões malsãs; quando a criatura sugar com o leite a caridade e tiver a fraternidade a embalá-lo; quando, enfim, toda uma geração for educada e alimentada com ideias que a razão, desenvolvendo-se, fortalecerá, em vez de falsear? Sob o domínio destas ideias, a cimentarem a fé comum a todos, não mais esbarrando o progresso no egoísmo e no orgulho, as instituições se reformarão por si mesmas e a Humanidade avançará rapidamente para os destinos que lhe estão prometidos na Terra, aguardando os do Céu.

LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE

Liberdade, igualdade, fraternidade. Estas três palavras constituem, por si sós, o programa de toda uma ordem social que realizaria o mais absoluto progresso da Humanidade, se os princípios que elas exprimem pudessem receber integral aplicação. Vejamos quais os obstáculos que, no estado atual da sociedade, se lhes opõem e, ao lado do mal, procuremos o remédio.

A fraternidade, na rigorosa acepção do termo, resume todos os deveres dos homens, uns para com os outros. Significa: devotamento, abnegação, tolerância, benevolência, indulgência. É, por excelência, a caridade evangélica e a aplicação da máxima: “Proceder para com os outros, como quereríamos que os outros procedessem para conosco”. O oposto do egoísmo. A fraternidade diz: “Um por todos e todos por um”. O egoísmo diz: “Cada um por si”. Sendo estas duas qualidades a negação uma da outra, tão impossível é que um egoísta proceda fraternalmente para com os seus semelhantes, quanto a um avarento ser generoso, quanto a um indivíduo de pequena estatura atingir a de um outro alto. Ora, sendo o egoísmo a chaga dominante da sociedade, enquanto ele reinar soberanamente, impossível será o reinado da fraternidade verdadeira. Cada um a quererá em seu proveito; não quererá, porém, praticá-la em proveito dos outros, ou, se o fizer, será depois de se certificar de que não perderá coisa alguma.

Considerada do ponto de vista da sua importância para a realização da felicidade social, a fraternidade está na primeira linha: é a base. Sem ela, não poderiam existir a igualdade, nem a liberdade séria. A igualdade decorre da fraternidade e a liberdade é consequência das duas outras.

Com efeito, suponhamos uma sociedade de homens bastante desinteressados, bastante bons e benévolos para viverem fraternalmente, sem haver entre eles nem privilégios, nem direitos excepcionais, pois de outro modo não haveria fraternidade. Tratar a alguém de irmão é tratá-lo de igual para igual; é querer quem assim o trate, para ele, o que para si próprio quereria. Num povo de irmãos, a igualdade será a consequência de seus sentimentos, da maneira de procederem, e se estabelecerá pela força mesma das coisas. Qual, porém, o inimigo da igualdade? O orgulho, que faz queira o homem ter em toda parte a primazia e o domínio, que vive de privilégios e exceções, poderá suportar a igualdade social, mas não a fundará nunca e na primeira ocasião a desmantelará. Ora, sendo também o orgulho uma das chagas da sociedade, enquanto não for banido, oporá obstáculo à verdadeira igualdade.

A liberdade, dissemo-lo, é filha da fraternidade e da igualdade. Falamos da liberdade legal, e não da liberdade natural, que, de direito, é imprescritível para toda criatura humana, desde o selvagem até o civilizado. Os homens que vivam como irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de benevolência recíproca, praticarão entre si a justiça, não procurarão causar danos uns aos outros e nada, por conseguinte, terão que temer uns dos outros. A liberdade nenhum perigo oferecerá, porque ninguém pensará em abusar dela em prejuízo de seus semelhantes. Mas como poderiam o egoísmo, que tudo quer para si, e o orgulho, que incessantemente quer dominar, dar a mão à liberdade que os destronaria? O egoísmo e o orgulho são, pois, os inimigos da liberdade, como o são da igualdade e da fraternidade.

A liberdade pressupõe confiança mútua. Ora, não pode haver confiança entre pessoas dominadas pelo sentimento exclusivista da personalidade. Não podendo cada uma satisfazer-se a si própria senão à custa de outrem, todas estarão constantemente em guarda umas contra as outras. Sempre receosas de perderem o a que chamam seus direitos, a dominação constitui a condição mesma da existência de todas, pelo que armarão continuamente ciladas à liberdade e a abafarão tanto tempo quando o puderem. Aqueles três princípios são, pois, conforme acima dissemos, solidários entre si e se prestam mútuo apoio; sem a reunião deles o edifício social não estaria completo. O da fraternidade não pode ser praticado em toda a pureza, com exclusão dos dois outros, porquanto, sem a igualdade e a liberdade, não há verdadeira fraternidade. A liberdade sem a fraternidade é rédea solta a todas as más paixões, que desde então ficam sem freio; com a fraternidade, o homem nenhum mau uso faz da sua liberdade: é a ordem; sem a fraternidade, usa da liberdade para dar curso a todas as suas torpezas: é a anarquia, a licença. Por isso é que as nações mais livres se veem obrigadas a criar restrições à liberdade. A igualdade, sem a fraternidade, conduz aos mesmos resultados, visto que a igualdade reclama a liberdade; sob o pretexto de igualdade, o pequeno rebaixa o grande, para lhe tomar o lugar, e se torna tirano por sua vez; tudo se reduz a um deslocamento de despotismo.

Seguir-se-á daí que, enquanto os homens não se acharem imbuídos do sentimento de fraternidade, será necessário tê-los em servidão? Dar-se-á sejam inaptas as instituições fundadas sobre os princípios de igualdade e de liberdade? Semelhante opinião fora mais que errônea; seria absurda. Ninguém espera que uma criança se ache com o seu crescimento completo para lhe ensinar a andar. Quem, ademais, os tem sob tutela? Serão homens de ideias elevadas e generosas, guiados pelo amor do progresso? Serão homens que se aproveitem da submissão dos seus inferiores para lhes desenvolver o senso moral e elevá-los pouco a pouco à condição de homens livres? Não; são, em sua maioria, homens ciosos do seu poder, a cuja ambição e cupidez outros homens servem de instrumentos mais inteligentes do que animais e que, então, em vez de emancipá-los, os conservam, por todo o tempo que for possível, subjugados e na ignorância. Porém, esta ordem de coisas muda de si mesma, pelo poder irresistível do progresso. A reação é não raro violenta e tanto mais terrível, enquanto o sentimento da fraternidade, imprudentemente sufocado, não logra interpor o seu poder moderador; a luta se empenha entre os que querem tomar e os que querem reter; daí um conflito que se prolonga às vezes por séculos. Afinal, um equilíbrio fictício se estabelece; há qualquer coisa de melhor. Sente-se, porém, que as bases sociais não estão sólidas; a cada passo o solo treme, por isso que ainda não reinam a liberdade e a igualdade, sob a égide da fraternidade, porque o orgulho e o egoísmo continuam empenhados em fazer se malogrem os esforços dos homens de bem.

Todos vós que sonhais com essa idade de ouro para a Humanidade trabalhai, antes de tudo, na construção da base do edifício, sem pensardes em lhe colocar a cúpula; ponde-lhe nas primeiras fiadas a fraternidade na sua mais pura acepção. No entanto, para isso, não basta decretá-la e inscrevê-la numa bandeira; faz-se mister que ela esteja no coração dos homens e não se muda o coração dos homens por meio de ordenações. Do mesmo modo que para fazer que um campo frutifique, é necessário se lhe arranquem os pedrouços e os tocos, aqui também é preciso trabalhar sem descanso por extirpar o vírus do orgulho e do egoísmo, pois que aí se encontra a causa de todo o mal, o obstáculo real ao reinado do bem. Eliminai das leis, das instituições, das religiões, da educação até os últimos vestígios dos tempos de barbárie e de privilégios, bem como todas as causas que alimentam e desenvolvem esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, os quais, por assim dizer, bebemos com o leite e aspiramos por todos os poros na atmosfera social. Somente então os homens compreenderão os deveres e os benefícios da fraternidade e também se firmarão por si mesmos, sem abalos, nem perigos, os princípios complementares, os da igualdade e da liberdade.

Será possível a destruição do orgulho e do egoísmo? Responderemos alto e terminantemente: SIM. Do contrário, forçoso seria determinar um ponto de parada ao progresso da Humanidade. Que o homem cresce em inteligência, é fato incontestável; terá ele chegado ao ponto culminante, além do qual não possa ir? Quem ousaria sustentar tão absurda tese? Progride ele em moralidade? Para responder a esta questão, basta se comparem as épocas de um mesmo país. Por que teria ele atingido o limite do progresso moral, e não o do progresso intelectual? Sua aspiração por uma melhor ordem de coisas é indício da possibilidade de alcançá-la. Aos que são progressistas cabe acelerar esse movimento por meio do estudo e da utilização dos meios mais eficientes.

AS ARISTOCRACIAS

Aristocracia vem do grego aristos, o melhor, e kratos, poder. Aristocracia, pois, em sua acepção literal, significa: poder dos melhores. Há-se de convir em que o sentido primitivo tem sido por vezes singularmente deturpado, mas vejamos que influência o Espiritismo pode exercer na sua aplicação. Para esse efeito, tomemos as coisas no ponto de partida e acompanhemo-las através das idades, a fim de deduzirmos daí o que acontecerá mais tarde. Em nenhum tempo, nem no seio de nenhum povo, os homens, em sociedade, hão podido prescindir de chefes; com estes deparamos nas tribos mais selvagens. Decorre isto de que, em razão da diversidade das aptidões e dos caracteres inerentes à espécie humana, há por toda parte homens incapazes, que precisam ser dirigidos, homens fracos que reclamam proteção, paixões que exigem repressão. Daí a necessidade imperiosa de uma autoridade. É sabido que, nas sociedades primitivas, essa autoridade foi conferida aos chefes de família, aos antigos, aos anciãos; numa palavra: aos patriarcas. Essa a primeira de todas as aristocracias.

Tornando-se numerosas as sociedades, a autoridade patriarcal veio a ficar impotente em certas circunstâncias. As querelas entre povoações vizinhas deram lugar a combates; fez-se mister, para dirigi-las, não mais os velhos, porém homens fortes, vigorosos e inteligentes; daí os chefes militares. Vitoriosos, estes chefes foram investidos da autoridade, esperando os seus comandados que com a valentia deles estariam garantidos contra os ataques dos inimigos. Muitos, abusando da posição a que tinham sido elevados, se apossavam dela por si mesmos. Depois, os vencedores passaram a impor-se aos vencidos, ou os reduziram à escravidão. Daí a autoridade da força bruta, que foi a segunda aristocracia.

Os fortes, com os bens que possuíam, transmitiram muito naturalmente a seus filhos a autoridade de que desfrutavam; e os fracos, nada ousando dizer, se habituaram pouco a pouco a ter esses filhos por herdeiros dos direitos que os pais haviam conquistado e a considerá-los seus superiores. Veio assim a divisão da sociedade em duas classes: a dos superiores e a dos inferiores, a dos que mandam e a dos que obedecem. Estabeleceu-se de tal modo a aristocracia do nascimento, que tão poderosa e preponderante se tornou, quanto a da força, visto que, se não tinha por si a força, como nos primeiros tempos, em que importava fizesse cada um o sacrifício da sua pessoa, dispunha de uma força mercenária. Na posse de todo o poder, ela naturalmente se arrogou todos os privilégios.

Para conservação destes, era necessário lhes dessem o prestígio da legalidade; ela então fez leis em seu próprio proveito, o que lhe era fácil, pois que ninguém mais as fazia. Como isto, entretanto, não bastasse, juntou aos privilégios o prestígio do direito divino, para torná-los respeitáveis e invioláveis. A fim de lhes assegurar o respeito das classes submetidas, que cada vez mais numerosas se faziam e mais difíceis de ser contidas, mesmo pela força, um único meio havia: impedi-las de ver claro, isto é, conservá- -las na ignorância.

Se a classe superior houvesse podido manter a classe inferior sem se ocupar com coisa alguma, tê-la-ia governado facilmente durante ainda longo tempo, mas como a segunda fosse obrigada a trabalhar para viver, e trabalhar tanto mais quanto mais premida se achava, resultou que a necessidade de encontrar incessantemente novos recursos, de lutar contra uma concorrência invasora, de procurar novos mercados para os produtos, lhe desenvolveu a inteligência e fez com que as próprias causas, de que os da classe superior se serviam para trazê-la sujeita, a esclarecessem. Não se patenteia aí o dedo da Providência?

A classe submetida viu com clareza as coisas; viu a fraca consistência que lhe opunham e, sentindo-se forte pelo número, aboliu os privilégios e proclamou a igualdade perante a lei. Este princípio, no seio de alguns povos, marcou o fim do reinado da aristocracia de nascimento, que passou a ser apenas nominal e honorífica, porquanto já não confere direitos legais.

Elevou-se então uma nova potência, a do dinheiro, porque com dinheiro se dispõe dos homens e das coisas. Era um Sol nascente e diante do qual todos se inclinaram, como outrora se curvavam diante de um brasão. O que não se concedia ao título, concedia-se à riqueza e a riqueza teve igualmente seus privilégios. Logo, porém, se aperceberam de que, para conseguir a riqueza, certa dose de inteligência era necessária, não sendo necessária muita para herdá-la, e de que os descendentes são quase sempre mais hábeis em a consumir do que em ganhá-la, de que os próprios meios de enriquecimento nem sempre são irreprocháveis, donde resultou ir o dinheiro perdendo pouco a pouco o seu prestígio moral e tender essa potência a ser substituída por outra, por uma aristocracia mais justa: a da inteligência, diante da qual todos podem curvar-se, sem se envilecerem, porque ela pertence tanto ao pobre quanto ao rico.

Será a última? Será a mais alta expressão da Humanidade civilizada? Não.

A inteligência nem sempre constitui penhor de moralidade e o homem mais inteligente pode fazer péssimo uso de suas faculdades. Doutro lado, a moralidade, isolada, pode, muita vez, ser incapaz. A reunião dessas duas faculdades, inteligência e moralidade, é, pois, necessária a criar uma preponderância legítima, a que a massa se submeterá cegamente, porque lhe inspirará plena confiança, pelas suas luzes e pela sua justiça. Será essa a última aristocracia, a que se apresentará como consequência, ou, antes, como sinal do advento do reinado do bem na Terra. Ela se erguerá muito naturalmente pela força mesma das coisas. Quando os homens de tal categoria forem bastante numerosos para formarem uma maioria imponente, a massa lhes confiará seus interesses.

Como vimos, todas as aristocracias tiveram sua razão de ser; nasceram do estado da Humanidade; assim há de acontecer com o que se tornará uma necessidade. Todas preencheram ou preencherão seu tempo, conforme os países, porque nenhuma teve por base o princípio moral; só este princípio pode constituir uma supremacia durável, porque terá a animá-la sentimentos de justiça e caridade. A essa aristocracia chamaremos: aristocracia intelecto-moral.

Mas semelhante estado de coisas será possível com o egoísmo, o orgulho, a cupidez que reinam soberanos na Terra? Responderemos terminantemente: sim, não só é possível, como se implantará, por ser inevitável. Já hoje a inteligência domina; é soberana, ninguém o pode contestar. É tão verdade isto, que já se vê o homem do povo chegar aos cargos de primeira ordem. Essa aristocracia não será mais justa, mais lógica, mais racional do que a da força bruta, do nascimento, ou do dinheiro? Por que, então, seria impossível que se lhe juntasse a moralidade? — Porque, dizem os pessimistas, o mal domina sobre a Terra. — Quem ousará dizer que o bem nunca o sobrepujará? Os costumes e, por conseguinte, as instituições sociais, não valem cem vezes mais hoje do que na Idade Média? Cada século não se assinala por um progresso? Por que, então, a Humanidade pararia, quando ainda tem tanto que fazer? Por instinto natural, os homens procuram o seu bem-estar; se não o acharem completo no reino da inteligência, procurá-lo-ão algures, e onde poderão encontrá-lo, senão no reino da moralidade? Para isso, torna-se preciso que a moralidade sobrepuje numericamente. Não há contestar que muitíssimo se tem que fazer, mas, ainda uma vez, fora tola pretensão dizer-se que a Humanidade chegou ao apogeu, quando é vista a avançar continuamente pela senda do progresso.

Digamos, antes de tudo, que os bons, na Terra, não são absolutamente tão raros como se julga; os maus são numerosos, é infelizmente verdade; o que, porém, faz pareçam eles ainda mais numerosos é que têm mais audácia e sentem que essa audácia lhes é indispensável ao bom êxito. De tal modo, entretanto, compreendem a preponderância do bem, que, não podendo praticá-lo, com ele se mascaram.

Os bons, ao contrário, não fazem alarde das suas boas qualidades; não se põem em evidência, donde o parecerem tão pouco numerosos. Pesquisai, no entanto, os atos íntimos praticados sem ostentação e, em todas as camadas sociais, deparareis com criaturas de natureza boa e leal em número bastante a vos tranquilizar o coração, de maneira a não desesperardes da Humanidade. Depois, cumpre também dizê-lo, entre os maus, muitos há que apenas o são por arrastamento e que se tornariam bons, desde que submetidos a uma influência boa. Admitamos que, em 100 indivíduos, haja 25 bons e 75 maus; destes últimos, 50 se contam que o são por fraqueza e que seriam bons, se observassem bons exemplos e, sobretudo, se tivessem sido bem encaminhados desde a infância; dos 25 maus, nem todos serão incorrigíveis.

No estado atual das coisas, os maus estão em maioria e ditam a lei aos bons. Suponhamos que uma circunstância qualquer opere a conversão de 50 por cento deles: os bons ficarão em maioria e a seu turno ditarão a lei; dos 25 outros, francamente maus, muitos sofrerão a influência daqueles, restando apenas alguns incorrigíveis sem preponderância.

Tomemos um exemplo, para ilustrar o que acabamos de dizer: Há povos no seio dos quais o assassínio e o roubo são a normalidade, constituindo exceção o bem. Nos povos mais adiantados e mais bem governados da Europa, o crime é a exceção; acuado pelas leis, ele nenhuma influência exerce sobre a sociedade. O que nesses povos ainda predomina são os vícios de caráter: o orgulho, o egoísmo, a cupidez com seus cortejos.

Por que, progredindo esses povos, os vícios não se tornariam a exceção, como o são hoje os crimes, ao passo que os povos inferiores galgariam o nosso nível? Negar a possibilidade dessa marcha ascendente fora negar o progresso.

Certamente, chegar a tal estado de coisas não pode ser obra de um dia, mas se há uma causa capaz de apressar-lhe o advento, essa causa é, sem nenhuma dúvida, o Espiritismo. Fator, por excelência, da fraternidade humana, por mostrar que as provas da vida atual são a consequência lógica e racional dos atos praticados nas existências anteriores, por fazer de cada homem o artífice voluntário da sua própria felicidade, a vulgarização universal do Espiritismo dará em resultado, necessariamente, uma elevação sensível do nível moral da atualidade.

Apenas elaborados e coordenados, já os princípios gerais da nossa filosofia hão congregado, em imponente comunhão de ideias, milhões de adeptos espalhados por toda a Terra.

Os progressos realizados pela sua influência, as transformações individuais e locais que eles têm provocado em menos de quinze anos, permitem apreciemos as modificações imensas e radicais que operarão no futuro. Mas se, graças ao desenvolvimento e à aceitação geral dos ensinos dos Espíritos, o nível moral da Humanidade tende constantemente a elevar-se, singularmente se iludiria quem supusesse que a moralidade preponderará sobre a inteligência. O Espiritismo, com efeito, não quer que o aceitem cegamente; reclama a discussão e a luz.

“Em vez da fé cega, que aniquila a liberdade de pensar, diz ele: Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a razão, em todas as épocas da Humanidade. A fé necessita de uma base, base que é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer. E, para crer, não basta ver; é preciso, sobretudo, compreender” (O evangelho segundo o espiritismo). Com bom direito, pois, podemos considerar o Espiritismo como um dos mais fortes precursores da aristocracia do futuro, isto é, da aristocracia intelecto-moral.

OS DESERTORES

Se é certo que todas as grandes ideias contam apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas observações.

Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais, excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes complementar das reuniões familiares.

Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a ideia penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.

Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios, moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo com a vida material, era um censor importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode considerar tempo perdido. Graças àquele disfarce, a ideia se popularizou cem vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma, e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.

Postos em moda pelo atrativo da curiosidade, constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia, a quiromancia, a borra de café etc. etc., para se conhecer o futuro e descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os Espíritos tudo sabiam.

Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo, durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa, mas compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.

Também essa fase apresentou sua utilidade. Mostrando o que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o objetivo sério do Espiritismo e depurou a Doutrina. Sabem os Espíritos que as lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguires, ninguém mais lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos sinceros.

Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros, entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão, o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia, inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a Doutrina, a fim de torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções. Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes provocadas intencionalmente. Todas as doutrinas têm tido seus Judas; o Espiritismo não poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.

Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente, circunspecto e a não se fiar nas aparências.

Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiado febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos, isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade.

Tem esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos; é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si. Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se trai para com as almas elevadas.

Jamais pôde o gelo imitar o calor.

Se passarmos à categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfa imediatamente. As mais difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lídima acepção do termo, visto como aquele que desertasse, por motivo de interesse ou qualquer outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de uma decepção, de uma ambição frustrada, de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil. Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os interesses materiais, ante o medo do “que dirão?”; há o ser-se abatido por uma mistificação, tendo como consequência, não o afastamento, mas o esfriamento; há o querer viver para si, e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob a condição de que isso nada custe. Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas, sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria. Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.

Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as consequências da Doutrina e são reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem, além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o acessório, e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em face do objetivo esplêndido que entreveem no Além; não se intimidam com os obstáculos com que topem no caminho; veem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções, nem falências.

Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo devotamente é sincero e sem ideias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da verdade às suas ambições pessoais.

Deveremos incluir também entre os desertores do Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz; os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos? Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o desejo de propagar a verdade. — Sim, se seus esforços tendem unicamente a se porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação do amor-próprio e de interesses pessoais!...

Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!... Se os centros de estudos se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.

Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos suplantarem, temos um meio infalível de não as temer. Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos leve a obstinar-nos em ideias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais podemos todos estar seguros de nos não enganarmos nunca: o amor do bem, a abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.

Mas qual será a consequência de semelhante estado de coisas? Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados para levá-las ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a Doutrina do seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e o transmitirão intacto aos que nos sucederem.

Insta não perder de vista que estamos num momento de transição e que nenhuma transição se opera sem conflito. Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo isso se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas ideias permanecem. Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos; o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da malevolência!...

Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca; qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa pela força mesma das coisas. É uma questão de tempo a vulgarização universal do Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do progresso. Allan Kardec

Nota – Como complemento deste artigo, publicamos uma instrução que sobre o mesmo assunto Allan Kardec deu, logo que voltou ao mundo dos Espíritos. Pareceu-nos interessante, para os nossos leitores, juntar às páginas eloquentes e viris que se acabam de ler a opinião atual do organizador por excelência da nossa filosofia.

Quando eu me achava corporalmente entre vós, disse muitas vezes que havia de fazer aí uma história do Espiritismo, que não seria destituída de interesse. É este, ainda agora, o meu parecer e os elementos que eu reunira para esse fim poderão servir um dia à realização da minha ideia. É que eu, com efeito, me encontrava mais bem colocado do que qualquer outro para apreciar o curioso espetáculo que a descoberta e a vulgarização de uma grande verdade provocara. Pressentia outrora, hoje sei, que ordem maravilhosa e que harmonia inconcebível presidem à concentração de todos os documentos destinados a dar nascimento à nova obra. A benevolência, a boa vontade, o devotamento absoluto de uns; a má-fé, a hipocrisia, as maldosas manobras de outros, tudo concorre para garantir a estabilidade do edifício que se eleva. Nas mãos das potestades superiores, que presidem a todos os progressos, as resistências inconscientes ou simuladas, os ataques visando semear o descrédito e o ridículo, se tornam elementos de elaboração.

Que não têm feito! Que é o que não têm posto em ação para asfixiar no berço a criança!

A princípio o charlatanismo e a superstição quiseram, ora um, ora outra, apoderar-se dos nossos princípios, a fim de os explorarem em proveito próprio; todos os raios da imprensa se projetaram contra nós; chasquearam das coisas mais respeitáveis; atribuíram aos Espíritos do mal os ensinos dos Espíritos mais dignos da admiração e da veneração universais; entretanto, todos esses esforços conjugados mais não conseguiram, senão proclamar a impotência dos nossos adversários.

É dentro dessa luta incessante contra os preconceitos firmados, contra erros acreditados, que se aprende a conhecer os homens. Eu sabia, ao consagrar-me à obra da minha predileção, que me expunha ao ódio, à inveja e ao ciúme dos outros. O caminho se achava inçado de dificuldades que de contínuo se renovavam. Nada podendo contra a doutrina, atiravam-se ao homem, mas, por esse lado, eu me sentia forte, porque renunciara à minha personalidade. Que me importavam os esforços da calúnia; a minha consciência e a grandeza do objetivo me faziam esquecer de boa vontade as urzes e os espinhos da estrada. Os testemunhos de simpatia e de estima, que recebi dos que me souberam apreciar, constituíram a mais estimável recompensa que eu jamais ambicionara. Mas ah! Quantas vezes teria sucumbido ao peso da minha tarefa, se a afeição e o reconhecimento de muitos não me houvessem feito olvidar a ingratidão e a injustiça de alguns, porquanto, se os ataques contra mim dirigidos sempre me encontraram insensível, penosamente magoado me sentia, devo dizê-lo, todas as vezes que descobria falsos amigos entre aqueles com quem mais contava.

Se é justo censurar os que hão tentado explorar o Espiritismo ou desnaturá-lo em seus escritos, sem o terem previamente estudado, quão mais culpados não são os que, depois de lhe haverem assimilado todos os princípios, não contentes de se lhe apartarem do seio, contra ele voltaram todos os seus esforços! É, sobretudo, para os desertores dessa categoria que devemos implorar a misericórdia divina, pois que apagaram voluntariamente o facho que os iluminava e com o qual podiam esclarecer os outros. Eles, por isso, logo perdem a proteção dos bons Espíritos e, conforme a triste experiência que temos feito, bem depressa chegam, de queda em queda, às mais críticas situações!

Desde que voltei para o mundo dos Espíritos, tornei a ver alguns desses infelizes! Arrependem-se agora; lamentam a inação em que ficaram e a má vontade de que deram prova, sem lograrem, todavia, recuperar o tempo perdido!... Tornarão em breve à Terra, com o firme propósito de concorrerem ativamente para o progresso e se verão ainda em luta com as tendências antigas, até que definitivamente triunfem. Fora de crer que os espíritas de hoje, esclarecidos por esses exemplos, evitariam cair nos mesmos erros. Assim, porém, não é. Ainda por longo tempo haverá irmãos falsos e amigos desassisados, mas, tal como seus irmãos mais velhos, não conseguirão fazer que o Espiritismo saia da sua diretriz. Embora causem algumas perturbações momentâneas e puramente locais, nem por isso a Doutrina periclitará.

Ao contrário, os espíritas transviados bem depressa reconhecerão o erro em que incidiram e virão colaborar com maior ardor na obra por um instante abandonada e, atuando de acordo com os Espíritos Superiores que dirigem as transformações humanitárias, caminharão a passo rápido para os ditosos tempos prometidos à Humanidade regenerada.

Ligeira resposta aos detratores do Espiritismo

É imprescritível o direito de exame e de crítica e o Espiritismo não alimenta a pretensão de subtrair-se ao exame e à crítica como não tem a de satisfazer a toda gente. Cada um é, pois, livre de o aprovar ou rejeitar, mas, para isso, necessário se faz discuti-lo com conhecimento de causa. Ora, a crítica tem por demais provado que lhe ignora os mais elementares princípios, fazendo-o dizer precisamente o contrário do que ele diz, atribuindo-lhe o que ele desaprova, confundindo-o com as imitações grosseiras e burlescas do charlatanismo, enfim, apresentando, como regra de todos, as excentricidades de alguns indivíduos. Também por demais a malignidade há querido torná-lo responsável por atos repreensíveis ou ridículos, nos quais o seu nome foi envolvido incidentemente, e disso se aproveita como arma contra ele.

Antes de imputar a uma doutrina a culpa de incitar a um ato condenável qualquer, a razão e a equidade exigem que se examine se essa doutrina contém máximas que justifiquem semelhante ato.

Para conhecer-se a parte de responsabilidade que, em dada circunstância, caiba ao Espiritismo, há um meio muito simples: proceder de boa-fé a uma perquirição, não entre os adversários, mas na própria fonte, do que ele aprova e do que condena. Isso é tanto mais fácil, quanto ele não tem segredos; seus ensinos são patentes e quem quer que seja pode verificá-los.

Assim, se os livros da Doutrina Espírita condenam explícita e formalmente um ato justamente reprovável; se, ao contrário, só encerram instruções de natureza a orientar para o bem, segue-se que não foi neles que um indivíduo culpado de malefícios se inspirou, ainda mesmo que os possua.

O Espiritismo não é solidário com aqueles a quem apraza dizerem-se espíritas, do mesmo modo que a Medicina não o é com os que a exploram, nem a sã religião com os abusos e até crimes que se cometam em seu nome. Ele não reconhece como seus adeptos senão os que lhe praticam os ensinos, isto é, que trabalham por melhorar-se moralmente, esforçando-se por vencer os maus pendores, por ser menos egoístas e menos orgulhosos, mais brandos, mais humildes, mais caridosos para com o próximo, mais moderados em tudo, porque é essa a característica do verdadeiro espírita.

Esta breve nota não tem por objeto refutar todas as falsas alegações que se lançam contra o Espiritismo, nem lhe desenvolver e provar todos os princípios, nem, ainda menos, tentar converter a esses princípios os que professem opiniões contrárias, mas, apenas, dizer, em poucas palavras, o que ele é e o que não é, o que admite e o que desaprova.

As crenças que propugna, as tendências que manifesta e o fim a que visa se resumem nas proposições seguintes:

1o ) O elemento espiritual e o elemento material são os dois princípios,

as duas forças vivas da Natureza, as quais se completam uma a outra e reagem incessantemente uma sobre a outra, indispensáveis ambas ao funcionamento do mecanismo do Universo.

Da ação recíproca desses dois princípios se originam fenômenos que cada um deles, isoladamente, não tem possibilidade de explicar.

À Ciência, propriamente dita, cabe a missão especial de estudar as leis da matéria.

O Espiritismo tem por objeto o estudo do elemento espiritual em suas relações com o elemento material e aponta na união desses dois princípios a razão de uma imensidade de fatos até então inexplicados.

O Espiritismo caminha ao lado da Ciência, no campo da matéria: admite todas as verdades que a Ciência comprova, mas não se detém onde esta última para: prossegue nas suas pesquisas pelo campo da espiritualidade.

2o ) Sendo o elemento espiritual um estado ativo da Natureza, os fenômenos em que ele intervém estão submetidos a leis e são por isso mesmo tão naturais quanto os que derivam da matéria neutra.

Alguns de tais fenômenos foram reputados sobrenaturais, apenas por ignorância das leis que os regem. Em virtude desse princípio, o Espiritismo não admite o caráter de maravilhoso atribuído a certos fatos, embora lhes reconheça a realidade ou a possibilidade. Não há, para ele, milagres, no sentido de derrogação das Leis Naturais, donde se segue que os espíritas não fazem milagres e que é impróprio o qualificativo de taumaturgos que umas tantas pessoas lhes dão.

O conhecimento das leis que regem o princípio espiritual prende-se de modo direto à questão do passado e do futuro do homem. Cinge-se a sua vida à existência atual? Ao entrar neste mundo, vem ele do nada e volta para o nada ao deixá-lo? Já viveu e ainda viverá? Como viverá e em que condições? Numa palavra: donde vem ele e para onde vai? Por que está na Terra e por que sofre aí? Tais as questões que cada um faz a si mesmo, porque são para toda gente de capital interesse e às quais ainda nenhuma doutrina deu solução racional. A que lhe dá o Espiritismo, baseada em fatos, por satisfazer às exigências da lógica e da mais rigorosa justiça, constitui uma das causas principais da rapidez de sua propagação.

O Espiritismo não é uma concepção pessoal, nem o resultado de um sistema preconcebido. É a resultante de milhares de observações feitas sobre todos os pontos do globo e que convergiram para um centro que os coligiu e coordenou. Todos os seus princípios constitutivos, sem exceção de nenhum, são deduzidos da experiência. Esta precedeu sempre a teoria.

Assim, desde o começo, o Espiritismo lançou raízes por toda parte. A História nenhum exemplo oferece de uma doutrina filosófica ou religiosa que, em dez anos, tenha conquistado tão grande número de adeptos. Entretanto, não empregou, para se fazer conhecido, nenhum dos meios vulgarmente em uso; propagou-se por si mesmo, pelas simpatias que inspirou.

Outro fato não menos constante é que, em nenhum país, a sua doutrina não surgiu das ínfimas camadas sociais; em todos os lugares ela se propagou de cima para baixo na escala da sociedade e ainda é nas classes esclarecidas que se acha quase exclusivamente espalhada, constituindo insignificante minoria, no seio de seus adeptos, as pessoas iletradas.

Verifica-se também que a disseminação do Espiritismo seguiu, desde os seus primórdios, marcha sempre ascendente, a despeito de tudo quanto fizeram seus adversários para entravá-la e para lhe desfigurar o caráter, com o fito de desacreditá-lo na opinião pública. É mesmo de notar-se que tudo o que hão tentado com esse propósito lhe favoreceu a difusão; o arruído que provocaram por ocasião do seu advento fez que viessem a conhecê-lo muitas pessoas que antes nunca ouviram falar dele; quanto mais procuraram denegri-lo ou ridiculizá-lo, tanto mais despertaram a curiosidade geral, e, como todo exame só lhe pode ser proveitoso, o resultado foi que seus opositores se constituíram, sem o quererem, ardorosos propagandistas seus. Se as diatribes nenhum prejuízo lhe acarretaram, é que os que o estudaram em suas legítimas fontes o reconheceram muito diverso do que o tinham figurado.

Nas lutas que precisou sustentar, os imparciais lhe testificaram a moderação; ele nunca usou de represálias com os seus adversários, nem respondeu com injúrias às injúrias.

O Espiritismo é uma doutrina filosófica de efeitos religiosos, como qualquer filosofia espiritualista, pelo que forçosamente vai ter às bases fundamentais de todas as religiões: Deus, a alma e a vida futura. Mas não é uma religião constituída, visto que não tem culto, nem rito, nem templos e que, entre seus adeptos, nenhum tomou, nem recebeu o título de sacerdote ou de sumo sacerdote. Estes qualificativos são de pura invenção da crítica.

É-se espírita pelo só fato de simpatizar com os princípios da Doutrina e por conformar com esses princípios o proceder. Trata-se de uma opinião como qualquer outra, que todos têm o direito de professar, como têm o de ser judeus, católicos, protestantes, simonistas, voltairianos, cartesianos, deístas e, até, materialistas.

O Espiritismo proclama a liberdade de consciência como direito natural; reclama-a para os seus adeptos, do mesmo modo que para toda a gente. Respeita todas as convicções sinceras e faz questão da reciprocidade.

Da liberdade de consciência decorre o direito de livre-exame em matéria de fé. O Espiritismo combate a fé cega, porque ela impõe ao homem que abdique da sua própria razão; considera sem raiz toda fé imposta, donde o inscrever entre suas máximas: Não é inabalável, senão a fé que pode encarar de frente a razão em todas as épocas da Humanidade.

Coerente com seus princípios, o Espiritismo não se impõe a quem quer que seja; quer ser aceito livremente e por efeito de convicção. Expõe suas doutrinas e acolhe os que voluntariamente o procuram.

Não cuida de afastar pessoa alguma das suas convicções religiosas; não se dirige aos que possuem uma fé e a quem essa fé basta; dirige-se aos que, insatisfeitos com o que se lhes dá, pedem alguma coisa melhor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário