Obras póstumas – Parte 1.I

BIOGRAFIA DE ALLAN KARDEC

É ainda sob o golpe da dor profunda que nos causou a prematura partida do fundador da Doutrina Espírita, que nos abalançamos a uma tarefa, simples e fácil para suas mãos sábias e experientes, mas cujo peso e gravidade nos esmagariam, se não contássemos com o auxílio eficaz dos Espíritos bons e com a indulgência dos nossos leitores.

Quem, dentre nós, poderia, sem ser tachado de presunçoso, lisonjear-se de possuir o espírito de método e organização de que se mostram iluminados todos os trabalhos do mestre? Só a sua pujante inteligência podia concentrar tantos materiais diversos, triturá-los e transformá-los, para os espalhar em seguida, como orvalho benfazejo, sobre as almas desejosas de conhecer e de amar.

Incisivo, conciso, profundo, sabia agradar e fazer-se compreendido numa linguagem simples e elevada, ao mesmo tempo, tão distanciada do estilo familiar quanto das obscuridades da metafísica.

Multiplicando-se incessantemente, pudera até agora bastar a tudo. Entretanto, o cotidiano alargamento de suas relações e o contínuo desenvolvimento do Espiritismo lhe faziam sentir a necessidade de reunir em torno de si alguns auxiliares inteligentes e preparava simultaneamente a nova organização da Doutrina e de seus labores, quando nos deixou, para ir, num mundo melhor, receber a sanção da missão que desempenhara e coletar elementos para uma nova obra de devotamente e sacrifício.

Era sozinho!... Chamar-nos-emos legião e, por muito fracos e inexperientes que sejamos, nutrimos a convicção íntima de que nos conservaremos à altura da situação, se, partindo dos princípios estabelecidos e de incontestável evidência, nos consagrarmos a executar, tanto quanto nos seja possível e de acordo com as necessidades do momento, os projetos que ele pretendia realizar no futuro.

Enquanto nos mantivermos nas suas pegadas e todos os de boa vontade se unirem, num esforço comum pelo progresso e pela regeneração intelectual e moral da Humanidade, conosco estará o Espírito do grande filósofo a nos secundar com a sua influência poderosa, dado lhe seja possível suprir à nossa insuficiência e nos possamos mostrar dignos do seu concurso, dedicando-nos à obra com a mesma abnegação e a mesma sinceridade que ele, embora sem tanta ciência e inteligência.

Em sua bandeira, inscrevera o mestre estas palavras: Trabalho, solidariedade, tolerância. Sejamos, como ele, infatigáveis; sejamos, acordemente com os seus anseios, tolerantes e solidários e não temamos seguir-lhe o exemplo, reconsiderando, quantas vezes forem precisas, os princípios ainda controvertidos. Apelemos ao concurso e às luzes de todos. Tentemos avançar, antes com segurança e certeza do que com rapidez, e não ficarão infrutíferos os nossos esforços, se, como estamos persuadidos, e seremos os primeiros a dar disso exemplo, cada um cuidar de cumprir o seu dever, pondo de lado todas as questões pessoais, a fim de contribuir para o bem geral. Sob auspícios mais favoráveis não poderíamos entrar na nova fase que se abre para o Espiritismo, do que dando a conhecer aos nossos leitores, num rápido escorço, o que foi, durante toda a sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio inteligente e fecundo, cuja memória se transmitirá aos séculos vindouros com a auréola dos benfeitores da Humanidade.

Nascido em Lyon, a 3 de outubro de 1804, de uma família antiga que se distinguiu na magistratura e na advocacia, Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) não seguiu essas carreiras. Desde a primeira juventude, sentiu-se inclinado ao estudo das Ciências e da Filosofia.

Educado na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes discípulos desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas do seu sistema de educação, que tão grande influência exerceu sobre a reforma do ensino na França e na Alemanha.

Dotado de notável inteligência e atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas aptidões especiais, já aos 14 anos ensinava o que sabia àqueles dos seus condiscípulos que haviam aprendido menos do que ele. Foi nessa escola que lhe desabrocharam as ideias que mais tarde o colocariam na classe dos homens progressistas e dos livres-pensadores.

Nascido sob a religião católica, mas educado num país protestante, os atos de intolerância que por isso teve de suportar, no tocante a essa circunstância, cedo o levaram a conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos com o intuito de alcançar a unificação das crenças. Faltava-lhe, porém, o elemento indispensável à solução desse grande problema.

O Espiritismo veio, a seu tempo, imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.

Concluídos seus estudos, voltou para a França. Conhecendo a fundo a língua alemã, traduziu para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o que é muito característico, as obras de Fénelon, que o tinham seduzido de modo particular.

Era membro de várias sociedades sábias, entre outras, da Academia Real de Arras, que, em o concurso de 1831, lhe premiou uma notável memória sobre a seguinte questão: Qual o sistema de estudos mais de harmonia com as necessidades da época?

De 1835 a 1840, fundou, em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Anatomia comparada, Astronomia etc., empresa digna de encômios em todos os tempos, mas, sobretudo, numa época em que só um número muito reduzido de inteligências ousava enveredar por esse caminho.

Preocupado sempre com o tornar atraentes e interessantes os sistemas de educação, inventou, ao mesmo tempo, um método engenhoso de ensinar a contar e um quadro mnemônico da História de França, tendo por objetivo fixar na memória as datas dos acontecimentos de maior relevo e as descobertas que celebrizaram cada reinado.

Entre as suas numerosas obras de educação, citaremos as seguintes: Plano proposto para melhoramento da instrução pública (1828); Curso prático e teórico de Aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família (1824); (1) Gramática francesa clássica (1831); Manual dos exames para os títulos de capacidade; Soluções racionais das questões e problemas de aritmética e de geometria (1846); Catecismo gramatical da língua francesa (1848); Programa dos cursos usuais de química, física, astronomia, fisiologia, que professava no Liceu Polimático; Ditados normais dos exames da municipalidade e da Sorbonne, seguidos de Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849), obra muito apreciada na época do seu aparecimento e da qual ainda recentemente eram tiradas novas edições.

(1) N.E.: Na Revista Espírita (maio 1869), consta a seguinte nota do tradutor: Embora no original francês conste o ano de 1829, o correto é como está grafado acima (1824).

Antes que o Espiritismo lhe popularizasse o pseudônimo de Allan Kardec, já ele se ilustrara, como se vê, por meio de trabalhos de natureza muito diferente, porém tendo todos, como objetivo, esclarecer as massas e prendê-las melhor às respectivas famílias e países.

Pelo ano de 1855, (2) posta em foco a questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou a observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe deduzir as consequências filosóficas. Entreviu, desde logo, o princípio de novas Leis Naturais: as que regem as relações entre o mundo visível e o Mundo Invisível. Reconheceu, na ação deste último, uma das forças da Natureza, cujo conhecimento haveria de lançar luz sobre uma imensidade de problemas tidos por insolúveis, e lhe compreendeu o alcance, do ponto de vista religioso.

(2) N.E.: Foi em 1855, e não em 1850, como consta no original, que Allan Kardec ouviu pela primeira vez, por meio de seu amigo, o Sr. Carlotti, a explicação de que os fenômenos das mesas girantes se deviam à intervenção de Espíritos desencarnados (Obras póstumas, 2ª parte, A minha primeira iniciação no Espiritismo).

Suas obras principais sobre esta matéria são: O livro dos espíritos, referente à parte filosófica, e cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857; O livro dos médiuns, relativo à parte experimental e científica (jan. 1861); O evangelho segundo o espiritismo, concernente à parte moral (abr. 1864); O céu e o inferno, ou A justiça de Deus segundo o espiritismo (agosto de 1865); A gênese, os milagres e as predições (janeiro de 1868); a Revista Espírita: Jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1o de janeiro de 1858. Fundou em Paris, a 1o  de abril de 1858, a primeira sociedade espírita regularmente constituída, sob a denominação de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo de quanto possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se defendeu, com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência de ideias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo, observou os fatos e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o primeiro a apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um corpo de doutrina, metódico e regular.

Demonstrando que os fatos erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a leis, ele os incluiu na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o último refúgio do maravilhoso e um dos elementos da superstição.

Durante os primeiros anos em que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram antes objeto de curiosidade do que de meditações sérias. O livro dos espíritos fez que o assunto fosse considerado sob aspecto muito diverso. Abandonaram-se as mesas girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar na Doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade.

Data do aparecimento de O livro dos espíritos a fundação do Espiritismo que, até então, só contara com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem toda gente pudera apreender. A partir daquele momento, a Doutrina prendeu a atenção de homens sérios e tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos, aquelas ideias conquistaram numerosos aderentes em todas as camadas sociais e em todos os países. Esse êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia que tais ideias despertaram, mas também é devido, em grande parte, à clareza com que foram expostas e que é um dos característicos dos escritos de Allan Kardec.

“Evitando as fórmulas abstratas da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição essencial à vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controversos, sua argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da existência da alma e da vida futura tendem a destruir as ideias materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa Doutrina e que deriva do precedente é o da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão de filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por Jean Reynaud, Charles Fourier, Eugène Sue e outros. Conservara-se, todavia, em estado de hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstra a realidade e prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade. Dele promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre.

As ideias inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos povos e a da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e que revivem, depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela natureza das relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família humana de todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de fraternidade, de igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as próprias Leis da Natureza, e não mais uma simples teoria.

“Em vez do postulado: Fora da Igreja não há salvação, que alimenta a separação e a animosidade entre as diferentes seitas religiosas e que há feito correr tanto sangue, o Espiritismo tem como divisa: Fora da Caridade não há salvação, isto é, a igualdade entre os homens perante Deus, a tolerância, a liberdade de consciência e a benevolência mútua.

Em vez da fé cega, que anula a liberdade de pensar, ele diz: Fé inabalável só o é a que pode encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade. À fé, uma base se faz necessária e essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este século. É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio (O evangelho segundo o espiritismo).

Trabalhador infatigável, sempre o primeiro a tomar da obra e o último a deixá-la, Allan Kardec sucumbiu, a 31 de março de 1869, quando se preparava para uma mudança de local, imposta pela extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Diversas obras que ele estava quase a terminar, ou que aguardavam oportunidade para vir a lume, demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o poder das suas concepções.

Morreu conforme viveu: trabalhando. Sofria, desde longos anos, de uma enfermidade do coração, que só podia ser combatida por meio do repouso intelectual e pequena atividade material. Consagrado, porém, todo inteiro à sua obra, recusava-se a tudo o que pudesse absorver um só que fosse de seus instantes, à custa das suas ocupações prediletas. Deu-se com ele o que se dá com todas as almas de forte têmpera: a lâmina gastou a bainha.

O corpo se lhe entorpecia e se recusava aos serviços que o Espírito lhe reclamava, enquanto este último, cada vez mais vivo, mais enérgico, mais fecundo, ia sempre alargando o círculo de sua atividade.

Nessa luta desigual não podia a matéria resistir eternamente. Acabou sendo vencida: rompeu-se o aneurisma e Allan Kardec caiu fulminado. Um homem houve de menos na Terra, mas um grande nome tomava lugar entre os que ilustraram este século; um grande Espírito fora retemperar-se no Infinito, onde todos os que ele consolara e esclarecera lhe aguardavam impacientes a volta!

“A morte”, dizia, “faz pouco tempo, redobra os seus golpes nas fileiras ilustres!... A quem virá ela agora libertar?”

Ele foi, como tantos outros, recobrar-se no Espaço, procurar elementos novos para restaurar o seu organismo gasto por uma vida de incessantes labores. Partiu com os que serão os fanais da nova geração, para voltar em breve com eles a continuar e acabar a obra deixada em dedicadas mãos. O homem já aqui não está; a alma, porém, permanecerá entre nós. Será um protetor seguro, uma luz a mais, um trabalhador incansável que as falanges do Espaço conquistaram. Como na Terra, sem ferir a quem quer que seja, ele fará que cada um lhe ouça os conselhos oportunos; abrandará o zelo prematuro dos ardorosos, amparará os sinceros e os desinteressados e estimulará os tíbios. Vê agora e sabe tudo o que ainda há pouco previa! Já não está sujeito às incertezas, nem aos desfalecimentos e nos fará partilhar da sua convicção, fazendo-nos tocar com o dedo a meta, apontando-nos o caminho, naquela linguagem clara, precisa, que o tornou aureolado nos anais literários.

Já não existe o homem, repetimo-lo. Entretanto, Allan Kardec é imortal e a sua memória, seus trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que empunharem forte e vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer respeitado.

Uma individualidade pujante constituiu a obra. Era o guia e o fanal de todos. Na Terra, a obra substituirá o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão em torno do Espiritismo, tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos, sua influência, avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas à Humanidade regenerada. Revista Espírita, maio 1869

DISCURSO PRONUNCIADO JUNTO AO TÚMULO DE ALLAN KARDEC

Por Camille Flammarion

Senhores,

Aceitando com deferência o convite simpático dos amigos do pensador laborioso cujo corpo terreno jaz agora aos nossos pés, vem-me à mente um dia sombrio do mês de dezembro de 1865, em que pronunciei palavras de supremo adeus junto à tumba do fundador da Livraria Acadêmica, do honrado Didier, que, como editor, foi colaborador convicto de Allan Kardec, na publicação das obras fundamentais de uma doutrina que lhe era cara. Também ele morreu subitamente, como se o Céu houvesse querido poupar a esses dois Espíritos íntegros o embaraço fisiológico de sair desta vida por via diferente da comumente seguida. A mesma reflexão se aplica à morte do nosso ex-colega Jobard, de Bruxelas.

Hoje, maior ainda é a minha tarefa, porquanto eu desejara figurar à mente dos que me ouvem e à das milhões de criaturas que na Europa inteira e no Novo Mundo se têm ocupado com o problema ainda misterioso dos fenômenos chamados espíritas; — eu quisera, digo, poder figurar-lhes o interesse científico e o porvir filosófico do estudo desses fenômenos, ao qual se hão consagrado, como ninguém ignora, homens eminentes dentre os nossos contemporâneos. Estimaria fazer-lhes entrever os horizontes desconhecidos que a mente humana verá rasgar-se diante de si, à medida que ela ampliar o conhecimento positivo das forças naturais que em torno de nós atuam; mostrar-lhes que essas comprovações constituem o mais eficaz antídoto para a lepra do ateísmo, de que parece atacada, principalmente, a nossa época de transição; dar, enfim, aqui, testemunho público do eminente serviço que o autor de O livro dos espíritos prestou à Filosofia, chamando a atenção e provocando discussões sobre fatos que até então pertenciam ao domínio mórbido e funesto das superstições religiosas.

Seria, com efeito, um ato importante firmar aqui, junto deste túmulo eloquente, que o metódico exame dos fenômenos erroneamente qualificados de sobrenaturais, longe de renovar o espírito de superstição e de enfraquecer a energia da razão, ao contrário, afasta os erros e as ilusões da ignorância e serve melhor ao progresso do que as negações ilegítimas dos que não querem dar-se ao trabalho de ver.

Mas este não é lugar apropriado a estabelecer uma arena às discussões desrespeitosas. Deixemos apenas que das nossas mentes desçam, sobre a face impassível do homem ora estendido diante de nós, testemunhos de afeição e sentimentos de pesar, que lhe permaneçam ao derredor em seu túmulo, qual embalsamamento do coração! E, pois que sabemos que sua alma eterna sobrevive a estes despojos mortais, do mesmo modo que a eles preexistiu; pois que sabemos que laços indestrutíveis unem o nosso mundo visível ao Mundo Invisível; pois que esta alma existe hoje tão bem como há três dias e que não é impossível se ache atualmente na minha presença. Digamos-lhe que não quisemos se desvanecesse a sua imagem terrena encerrada no sepulcro, sem unanimemente rendermos homenagem a seus trabalhos e à sua memória, sem pagar um tributo de reconhecimento à sua encarnação terrena, tão útil e tão dignamente preenchida.

Traçarei, primeiro, num esboço rápido, as linhas principais da sua carreira literária.

Morto na idade de 65 anos, Allan Kardec consagrara a primeira parte de sua vida a escrever obras clássicas, elementares, destinadas, sobretudo, ao uso dos educadores da mocidade. Quando, pelo ano de 1855,  as manifestações, novas na aparência, das mesas girantes, das pancadas sem causa ostensiva, dos movimentos insólitos de objetos e móveis começaram a prender a atenção pública, determinando mesmo, nos de imaginação aventureira, uma espécie de febre, devida à novidade de tais experiências, Allan Kardec, estudando ao mesmo tempo o magnetismo e seus singulares efeitos, acompanhou com a maior paciência e clarividência judiciosa as experimentações e as tentativas numerosas que então se faziam em Paris. Recolheu e pôs em ordem os resultados conseguidos dessa longa observação e com eles compôs o corpo de doutrina que publicou em 1857, na primeira edição de O livro dos espíritos. Todos sabeis que êxito alcançou essa obra, na França e no estrangeiro. Havendo atingido a 16a  edição, tem espalhado em todas as classes esse corpo de doutrina elementar que, na sua essência, não é absolutamente novo, porquanto a escola de Pitágoras, na Grécia, e a dos druidas, na nossa pobre  Gália, ensinavam os seus princípios fundamentais, mas que agora reveste uma forma de verdadeira atualidade, por corresponder aos fenômenos.

Depois dessa primeira obra apareceram, sucessivamente, O livro dos médiuns, ou Espiritismo experimental; O que é o espiritismo, ou resumo sob a forma de perguntas e respostas; O evangelho segundo o espiritismo; O céu e o inferno; A gênese. A morte o surpreendeu no momento em que, com a sua infatigável atividade, trabalhava noutra sobre as relações entre o Magnetismo e o Espiritismo.

Pela Revista Espírita e pela Sociedade de Paris, cujo presidente ele era, se constituíra, de certo modo, o centro a que tudo ia ter, o traço de união de todos os experimentadores. Faz alguns meses, sentindo próximo o seu fim, preparou as condições de vitalidade de tais estudos para depois de sua morte e instituiu a Comissão Central que lhe sucede.

Suscitou rivalidades; fez escola de feição um pouco pessoal, havendo ainda alguns dissídios entre os “espiritualistas” e os “espíritas”. Doravante, senhores (tal, pelo menos, o voto que formulam os amigos da verdade), devemos unir-nos todos por uma solidariedade fraterna, pelos mesmos esforços em prol da elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal do verdadeiro e do bem.

Disseram, senhores, do digno amigo a quem rendemos hoje as derradeiras homenagens, que ele não era o que se chama um sábio, que não fora, primeiro, físico, naturalista, ou astrônomo e que preferira constituir um corpo de doutrina moral, antes de haver submetido à discussão científica a realidade e a natureza dos fenômenos.

Talvez, senhores, se deva preferir que as coisas tenham começado assim. Nem sempre se deve recusar valor ao sentimento. Quantos corações já foram consolados por esta crença religiosa! Quantas lágrimas foram enxutas! Quantas consciências abertas aos raios da beleza espiritual! Nem todos são felizes aqui na Terra. Muitas afeições foram destruídas! Muitas almas foram adormecidas no ceticismo! Não será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres que vacilavam na dúvida e que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?

Fora Allan Kardec um homem de ciência e decerto não houvera podido prestar este primeiro serviço e dilatá-lo até muito longe, como um convite a todos os corações. Ele, porém, era o que eu denominarei simplesmente “o bom senso encarnado”. Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações íntimas do senso comum. Não era essa uma qualidade somenos, na ordem de coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário, pode-se afirmá-lo, a primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não teria podido tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas. A maioria dos que se têm dado a estes estudos lembram-se de que na mocidade, ou em certas circunstâncias, foram testemunhas de manifestações inexplicadas. Poucas são as famílias que não contem na sua história provas desta natureza. O ponto de partida era aplicar-lhes a razão firme do simples bom senso e examiná-las segundo os princípios do método positivo.

Conforme o próprio organizador previu deste estudo demorado e difícil previra, esta Doutrina, até então filosófica, tem que entrar agora num período científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais a princípio não se insistia, hão de tornar-se objeto da crítica experimental, sem a qual nenhuma constatação séria é possível. Esse método experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as maravilhas da eletricidade e do vapor, deve colher os fenômenos de ordem misteriosa a que assistimos para os dissecar, medir e definir.

Porque, meus senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o abecê. Passou o tempo dos dogmas. A Natureza abrange o Universo, e o próprio Deus, feito outrora à imagem do homem, a moderna Metafísica não o pode considerar senão como um espírito na Natureza. O sobrenatural não existe. As manifestações obtidas com o auxílio dos médiuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural e devem ser severamente submetidas à verificação da experiência. Não há mais milagres. Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a que consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo desta nova psicologia?

Doravante, o mundo é regido pela Ciência e, senhores, não virá fora de propósito, neste discurso fúnebre, assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos patenteia, precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas.

Em nenhuma época da História, a Ciência desdobrou, ante o olhar espantado do homem, tão grandiosos horizontes. Sabemos agora que a Terra é um astro e que a nossa vida atual se completa no Céu. Pela análise da luz, conhecemos os elementos que ardem no Sol e nas estrelas, a milhões e trilhões de léguas do nosso observatório terrestre. Por meio do cálculo, possuímos a história do céu e da Terra, assim no passado longínquo como no futuro, passado e futuro que não existem para as leis imutáveis. Pela observação, temos pesado as terras celestes que gravitam na amplidão. O globo em que nos encontramos tornou-se um átomo estelar que voa no espaço dentro das profundezas infinitas e a nossa própria existência neste globo se tornou uma fração infinitesimal da nossa eterna vida. Mas o que, com razão, nos pode tocar ainda mais vivamente é esse surpreendente resultado dos trabalhos físicos realizados nestes últimos anos: que vivemos em meio de um Mundo Invisível, a atuar incessantemente em torno de nós. Sim, senhores, é esta, para nós, uma revelação imensa. Contemplai, por exemplo, a luz que a esta hora o Sol brilhante espalha na atmosfera; contemplai esse azul tão suave da abóbada celeste; notai os eflúvios deste ar tépido, que nos vem acariciar as faces; admirai, estes monumentos e esta terra. Pois bem: conquanto tenhamos escancarados os olhos, não vemos o que aqui se passa! Sobre cem raios emanados do Sol, apenas um terço deles é acessível à nossa vista, quer diretamente, quer refletidos por todos os corpos; os dois terços restantes existem e atuam à volta de nós, mas de maneira invisível, embora real. São quentes, sem nos serem luminosos e são, no entanto, muito mais ativos do que os que nos impressionam, porquanto são eles que atraem as flores para o lado do Sol, que produzem todas as ações químicas (6)  e também que elevam, sob forma igualmente invisível, o vapor d’água na atmosfera para formar as nuvens, exercendo assim, sem cessar, em torno de nós, de maneira oculta e silenciosa, uma ação colossal, mecanicamente equiparável ao trabalho de muitos bilhões de cavalos!

(6) A nossa retina é insensível a esses raios, mas há substâncias que os veem, como, por exemplo, o iodo e os sais de prata. Fotografado o espectro solar químico, que o nosso olhar não percebe, nenhuma imagem visível jamais apresenta a chapa fotográfica ao sair da câmara escura, se bem exista nela uma, pois que certa operação química a faz aparecer. Se nos são invisíveis os raios caloríficos e os raios químicos que constantemente atuam na Natureza, é porque os primeiros não nos ferem com bastante rapidez a retina e porque os segundos a ferem com rapidez excessiva. Os nossos olhos somente veem as coisas entre dois limites, aquém e além dos quais nada enxergam. Pode comparar-se o nosso organismo terreno a uma harpa de duas cordas, que são o nervo óptico e o nervo auditivo. Certa espécie de movimentos põe em vibração a primeira e outra espécie de movimentos faz vibrar a segunda: nisto se resume toda a sensação humana, mais restrita neste ponto do que a de alguns seres vivos, de alguns insetos, por exemplo, que possuem mais delicadas essas mesmas cordas da visão e da audição. Ora, em a Natureza, existem realmente, não dois, porém dez, cem, mil espécies de movimentos. A Ciência física nos ensina, portanto, que vivemos, assim, dentro de um mundo que nos é invisível, nada tendo de impossível que seres (também invisíveis para nós) vivam igualmente na Terra, com uma ordem de sensações absolutamente diversa da das nossas e sem que lhes possamos apreciar a presença, a menos que se nos manifestem por fatos que caibam na ordem das nossas sensações.

Diante de verdades tais, que apenas se entreabrem, quão absurda e sem valor se revela a negação a priori! Quando se compara o pouco que sabemos e a exiguidade da nossa esfera de percepção com a quantidade do que existe, não se pode deixar de concluir que nada sabemos, que tudo estamos por saber. Com que direito, então, proferiremos a palavra impossível, em presença de fatos que testemunhávamos, sem, todavia, lhes podermos descobrir a causa única?

A Ciência nos faculta perspectivas tão autorizadas quanto as precedentes, sobre os fenômenos da vida e da morte e sobre a força que nos anima. Basta observemos a circulação das existências.

Tudo são meras metamorfoses. Arrastados em seu curso eterno, os átomos constitutivos da matéria passam incessantemente de um corpo a outro, do animal à planta, da planta à atmosfera, da atmosfera ao homem, e o nosso próprio corpo, enquanto nos dura a vida, muda continuamente de substância constitutiva, do mesmo modo que a chama, que só brilha por meio dos elementos que de contínuo se renovam. E, quando a alma desfere o voo, esse mesmo corpo já tantas vezes transformado durante a vida, restitui definitivamente à Natureza todas as moléculas, para não mais as retomar. O dogma inadmissível da ressurreição da carne se acha substituído pela elevada doutrina da transmigração das almas.

O Sol de abril irradia nos céus e nos inunda com o seu primeiro rocio calorífico. Já as campinas despertam, já os primeiros rebentos se entreabrem, já a primavera refloresce, o azul-celeste sorri e a ressurreição se opera. Entretanto, esta vida nova é formada pela morte e apenas ruínas cobre! Donde vem a seiva destas árvores que reverdecem nos campos dos mortos? Donde vem esta umidade que lhe nutre as raízes? Donde vêm todos os elementos que farão apareçam, sob as carícias de maio, as silenciosas florinhas e os pássaros canoros? — Da morte!... Senhores... destes cadáveres sepultados na noite sinistra dos túmulos!... Lei Suprema da Natureza, o corpo material não passa de transitório agregado de partículas que absolutamente não lhe pertencem e que a alma grupou, segundo o seu próprio tipo, a fim de criar para si órgãos que a ponham em relação com o nosso mundo físico. E, enquanto o nosso corpo assim se renova, peça por peça, mediante a perpétua troca das matérias; enquanto um dia ele cai, massa inerte, para não mais se reerguer, o nosso espírito, ser pessoal, conservou constantemente a sua indestrutível identidade, reinou soberanamente sobre a matéria de que se revestira, estabelecendo, por meio desse fato perene e universal, a sua personalidade independente, sua essência espiritual não sujeita ao império do espaço e do tempo, sua grandeza individual, sua imortalidade.

Em que consiste o mistério da vida? Por que laços a alma se prende ao organismo? Por efeito de que desatamento se lhe escapa? Sob que forma e em que condições existe ela após a morte? Que lembrança, que afeições conserva? Como se manifesta? — Eis aí, meus senhores, problemas que longe se acham de estar resolvidos e que, em seu conjunto, constituirão a ciência psicológica do futuro. Certos homens podem negar a existência mesma da alma, como a de Deus; podem afirmar que não existe a verdade moral, que não há na Natureza leis inteligentes e que nós, espiritualistas, somos vítimas de imensa ilusão. Podem outros, contrariamente, declarar que conhecem, por especial privilégio, a essência da alma humana, a forma do Ser Supremo, o estado da vida futura e tratar-nos de ateus, porque a nossa razão se nega a adotar a fé que eles alardeiam.

Uns e outros, senhores, não impedirão que estejamos aqui em presença dos maiores problemas, que nos interessemos por estas coisas (que de modo nenhum nos são estranhas) e que tenhamos o direito de aplicar o método experimental da ciência contemporânea à pesquisa da verdade. Pelo estudo positivo dos efeitos é que se remonta à apreciação das causas. Na ordem dos estudos que se grupam sob a denominação de “Espiritismo”, os fatos existem, mas ninguém lhes conhece o modo de produção. Eles existem tanto quanto os fenômenos elétricos, luminosos, calóricos; porém, senhores, nós não conhecemos nem a Biologia, nem a Fisiologia. Que é o corpo humano? que é o cérebro? qual a ação absoluta da alma? Ignoramo-lo. Igualmente ignoramos a essência da eletricidade, a essência da luz. Prudente é, pois, que observemos sem parcialidade todos esses fatos e tentemos determinar-lhes as causas, que talvez sejam de espécies diversas e mais numerosas do que o tenhamos suposto até agora. Que os que têm a vista restringida pelo orgulho ou pelo preconceito não compreendam absolutamente os anseios de nossas mentes ávidas de conhecer e lancem sobre este gênero de estudos seus sarcasmos ou anátemas, pouco importa. Colocamos mais alto as nossas contemplações!... Foste o primeiro, ó mestre e amigo! foste o primeiro a dar, desde o princípio da minha carreira astronômica, testemunho de viva simpatia às minhas deduções relativas à existência das Humanidades celestes, pois, tomando do livro sobre a Pluralidade dos mundos habitados, o puseste imediatamente na base do edifício doutrinário com que sonhavas. Muito amiúde conversávamos sobre essa vida celeste tão misteriosa; agora, ó alma, sabes, por visão direta, em que consiste a vida espiritual a que voltaremos e que esquecemos durante a existência na Terra.

Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-se o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a tua palavra... Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao Espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado.

É-nos mais grato saber esta verdade, do que acreditar que jazes todo inteiro nesse cadáver e que tua alma se haja aniquilado com a cessação do funcionamento de um órgão. A imortalidade é a luz da vida, como este refulgente Sol é a luz da Natureza. Até a vista, meu caro Allan Kardec, até a vista!

  

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