BIOGRAFIA DE ALLAN
KARDEC
É
ainda sob o golpe da dor profunda que nos causou a prematura partida do
fundador da Doutrina Espírita, que nos abalançamos a uma tarefa, simples e
fácil para suas mãos sábias e experientes, mas cujo peso e gravidade nos
esmagariam, se não contássemos com o auxílio eficaz dos Espíritos bons e com a
indulgência dos nossos leitores.
Quem,
dentre nós, poderia, sem ser tachado de presunçoso, lisonjear-se de possuir o
espírito de método e organização de que se mostram iluminados todos os
trabalhos do mestre? Só a sua pujante inteligência podia concentrar tantos
materiais diversos, triturá-los e transformá-los, para os espalhar em seguida,
como orvalho benfazejo, sobre as almas desejosas de conhecer e de amar.
Incisivo,
conciso, profundo, sabia agradar e fazer-se compreendido numa linguagem simples
e elevada, ao mesmo tempo, tão distanciada do estilo familiar quanto das
obscuridades da metafísica.
Multiplicando-se
incessantemente, pudera até agora bastar a tudo. Entretanto, o cotidiano
alargamento de suas relações e o contínuo desenvolvimento do Espiritismo lhe
faziam sentir a necessidade de reunir em torno de si alguns auxiliares
inteligentes e preparava simultaneamente a nova organização da Doutrina e de
seus labores, quando nos deixou, para ir, num mundo melhor, receber a sanção da
missão que desempenhara e coletar elementos para uma nova obra de devotamente e
sacrifício.
Era sozinho!... Chamar-nos-emos legião e, por muito fracos e inexperientes que sejamos, nutrimos a convicção íntima de que nos conservaremos à altura da situação, se, partindo dos princípios estabelecidos e de incontestável evidência, nos consagrarmos a executar, tanto quanto nos seja possível e de acordo com as necessidades do momento, os projetos que ele pretendia realizar no futuro.
Enquanto
nos mantivermos nas suas pegadas e todos os de boa vontade se unirem, num
esforço comum pelo progresso e pela regeneração intelectual e moral da
Humanidade, conosco estará o Espírito do grande filósofo a nos secundar com a
sua influência poderosa, dado lhe seja possível suprir à nossa insuficiência e
nos possamos mostrar dignos do seu concurso, dedicando-nos à obra com a mesma
abnegação e a mesma sinceridade que ele, embora sem tanta ciência e
inteligência.
Em
sua bandeira, inscrevera o mestre estas palavras: Trabalho, solidariedade,
tolerância. Sejamos, como ele, infatigáveis; sejamos, acordemente com os seus
anseios, tolerantes e solidários e não temamos seguir-lhe o exemplo,
reconsiderando, quantas vezes forem precisas, os princípios ainda
controvertidos. Apelemos ao concurso e às luzes de todos. Tentemos avançar,
antes com segurança e certeza do que com rapidez, e não ficarão infrutíferos os
nossos esforços, se, como estamos persuadidos, e seremos os primeiros a dar
disso exemplo, cada um cuidar de cumprir o seu dever, pondo de lado todas as
questões pessoais, a fim de contribuir para o bem geral. Sob auspícios mais
favoráveis não poderíamos entrar na nova fase que se abre para o Espiritismo,
do que dando a conhecer aos nossos leitores, num rápido escorço, o que foi,
durante toda a sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio inteligente e
fecundo, cuja memória se transmitirá aos séculos vindouros com a auréola dos
benfeitores da Humanidade.
Nascido
em Lyon, a 3 de outubro de 1804, de uma família antiga que se distinguiu na
magistratura e na advocacia, Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) não
seguiu essas carreiras. Desde a primeira juventude, sentiu-se inclinado ao
estudo das Ciências e da Filosofia.
Educado
na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes
discípulos desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas do seu
sistema de educação, que tão grande influência exerceu sobre a reforma do
ensino na França e na Alemanha.
Dotado
de notável inteligência e atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas
aptidões especiais, já aos 14 anos ensinava o que sabia àqueles dos seus
condiscípulos que haviam aprendido menos do que ele. Foi nessa escola que lhe
desabrocharam as ideias que mais tarde o colocariam na classe dos homens
progressistas e dos livres-pensadores.
Nascido
sob a religião católica, mas educado num país protestante, os atos de
intolerância que por isso teve de suportar, no tocante a essa circunstância,
cedo o levaram a conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou
em silêncio durante longos anos com o intuito de alcançar a unificação das
crenças. Faltava-lhe, porém, o elemento indispensável à solução desse grande
problema.
O
Espiritismo veio, a seu tempo, imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.
Concluídos
seus estudos, voltou para a França. Conhecendo a fundo a língua alemã, traduziu
para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o que é muito
característico, as obras de Fénelon, que o tinham seduzido de modo particular.
Era
membro de várias sociedades sábias, entre outras, da Academia Real de Arras,
que, em o concurso de 1831, lhe premiou uma notável memória sobre a seguinte
questão: Qual o sistema de estudos mais de harmonia com as necessidades da
época?
De
1835 a 1840, fundou, em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química,
Física, Anatomia comparada, Astronomia etc., empresa digna de encômios em todos
os tempos, mas, sobretudo, numa época em que só um número muito reduzido de
inteligências ousava enveredar por esse caminho.
Preocupado
sempre com o tornar atraentes e interessantes os sistemas de educação,
inventou, ao mesmo tempo, um método engenhoso de ensinar a contar e um quadro
mnemônico da História de França, tendo por objetivo fixar na memória as datas
dos acontecimentos de maior relevo e as descobertas que celebrizaram cada
reinado.
Entre
as suas numerosas obras de educação, citaremos as seguintes: Plano proposto
para melhoramento da instrução pública (1828); Curso prático e teórico de
Aritmética, segundo o método de Pestalozzi, para uso dos professores e das mães
de família (1824); (1) Gramática francesa clássica (1831); Manual dos exames
para os títulos de capacidade; Soluções racionais das questões e problemas de
aritmética e de geometria (1846); Catecismo gramatical da língua francesa
(1848); Programa dos cursos usuais de química, física, astronomia, fisiologia,
que professava no Liceu Polimático; Ditados normais dos exames da
municipalidade e da Sorbonne, seguidos de Ditados especiais sobre as
dificuldades ortográficas (1849), obra muito apreciada na época do seu
aparecimento e da qual ainda recentemente eram tiradas novas edições.
(1)
N.E.: Na Revista Espírita (maio 1869), consta a seguinte nota do tradutor: Embora
no original francês conste o ano de 1829, o correto é como está grafado acima
(1824).
Antes
que o Espiritismo lhe popularizasse o pseudônimo de Allan Kardec, já ele se
ilustrara, como se vê, por meio de trabalhos de natureza muito diferente, porém
tendo todos, como objetivo, esclarecer as massas e prendê-las melhor às
respectivas famílias e países.
Pelo
ano de 1855, (2) posta em foco a questão das manifestações dos Espíritos, Allan
Kardec se entregou a observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando
principalmente de lhe deduzir as consequências filosóficas. Entreviu, desde
logo, o princípio de novas Leis Naturais: as que regem as relações entre o
mundo visível e o Mundo Invisível. Reconheceu, na ação deste último, uma das
forças da Natureza, cujo conhecimento haveria de lançar luz sobre uma
imensidade de problemas tidos por insolúveis, e lhe compreendeu o alcance, do
ponto de vista religioso.
(2)
N.E.: Foi em 1855, e não em 1850, como consta no original, que Allan Kardec
ouviu pela primeira vez, por meio de seu amigo, o Sr. Carlotti, a explicação de
que os fenômenos das mesas girantes se deviam à intervenção de Espíritos
desencarnados (Obras póstumas, 2ª parte, A minha primeira iniciação no
Espiritismo).
Suas
obras principais sobre esta matéria são: O livro dos espíritos, referente à
parte filosófica, e cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857; O
livro dos médiuns, relativo à parte experimental e científica (jan. 1861); O
evangelho segundo o espiritismo, concernente à parte moral (abr. 1864); O céu e
o inferno, ou A justiça de Deus segundo o espiritismo (agosto de 1865); A
gênese, os milagres e as predições (janeiro de 1868); a Revista Espírita:
Jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1o de janeiro de
1858. Fundou em Paris, a 1o de abril de
1858, a primeira sociedade espírita regularmente constituída, sob a denominação
de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo
de quanto possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se
defendeu, com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência
de ideias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo,
observou os fatos e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o
primeiro a apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um
corpo de doutrina, metódico e regular.
Demonstrando
que os fatos erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a
leis, ele os incluiu na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o
último refúgio do maravilhoso e um dos elementos da superstição.
Durante
os primeiros anos em que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram
antes objeto de curiosidade do que de meditações sérias. O livro dos espíritos
fez que o assunto fosse considerado sob aspecto muito diverso. Abandonaram-se
as mesas girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar
na Doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade.
Data
do aparecimento de O livro dos espíritos a fundação do Espiritismo que, até
então, só contara com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem
toda gente pudera apreender. A partir daquele momento, a Doutrina prendeu a
atenção de homens sérios e tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos,
aquelas ideias conquistaram numerosos aderentes em todas as camadas sociais e
em todos os países. Esse êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia
que tais ideias despertaram, mas também é devido, em grande parte, à clareza
com que foram expostas e que é um dos característicos dos escritos de Allan
Kardec.
“Evitando
as fórmulas abstratas da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem
fadiga, condição essencial à vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos
controversos, sua argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à
refutação e predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo
apresenta da existência da alma e da vida futura tendem a destruir as ideias
materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa Doutrina e
que deriva do precedente é o da pluralidade das existências, já entrevisto por
uma multidão de filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por Jean
Reynaud, Charles Fourier, Eugène Sue e outros. Conservara-se, todavia, em
estado de hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstra a
realidade e prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da
Humanidade. Dele promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida
humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao
homem saber donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que
aí sofre.
As
ideias inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores;
a marcha dos povos e a da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e
que revivem, depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela
natureza das relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família
humana de todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de
fraternidade, de igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as
próprias Leis da Natureza, e não mais uma simples teoria.
“Em
vez do postulado: Fora da Igreja não há salvação, que alimenta a separação e a
animosidade entre as diferentes seitas religiosas e que há feito correr tanto
sangue, o Espiritismo tem como divisa: Fora da Caridade não há salvação, isto
é, a igualdade entre os homens perante Deus, a tolerância, a liberdade de
consciência e a benevolência mútua.
Em
vez da fé cega, que anula a liberdade de pensar, ele diz: Fé inabalável só o é a
que pode encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade. À fé, uma
base se faz necessária e essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem
de crer. Para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega
já não é para este século. É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser
hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a
abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o
livre-arbítrio (O evangelho segundo o espiritismo).
Trabalhador
infatigável, sempre o primeiro a tomar da obra e o último a deixá-la, Allan
Kardec sucumbiu, a 31 de março de 1869, quando se preparava para uma mudança de
local, imposta pela extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Diversas
obras que ele estava quase a terminar, ou que aguardavam oportunidade para vir
a lume, demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o poder das suas
concepções.
Morreu
conforme viveu: trabalhando. Sofria, desde longos anos, de uma enfermidade do
coração, que só podia ser combatida por meio do repouso intelectual e pequena
atividade material. Consagrado, porém, todo inteiro à sua obra, recusava-se a
tudo o que pudesse absorver um só que fosse de seus instantes, à custa das suas
ocupações prediletas. Deu-se com ele o que se dá com todas as almas de forte
têmpera: a lâmina gastou a bainha.
O
corpo se lhe entorpecia e se recusava aos serviços que o Espírito lhe
reclamava, enquanto este último, cada vez mais vivo, mais enérgico, mais
fecundo, ia sempre alargando o círculo de sua atividade.
Nessa
luta desigual não podia a matéria resistir eternamente. Acabou sendo vencida:
rompeu-se o aneurisma e Allan Kardec caiu fulminado. Um homem houve de menos na
Terra, mas um grande nome tomava lugar entre os que ilustraram este século; um
grande Espírito fora retemperar-se no Infinito, onde todos os que ele consolara
e esclarecera lhe aguardavam impacientes a volta!
“A
morte”, dizia, “faz pouco tempo, redobra os seus golpes nas fileiras
ilustres!... A quem virá ela agora libertar?”
Ele
foi, como tantos outros, recobrar-se no Espaço, procurar elementos novos para
restaurar o seu organismo gasto por uma vida de incessantes labores. Partiu com
os que serão os fanais da nova geração, para voltar em breve com eles a
continuar e acabar a obra deixada em dedicadas mãos. O homem já aqui não está;
a alma, porém, permanecerá entre nós. Será um protetor seguro, uma luz a mais,
um trabalhador incansável que as falanges do Espaço conquistaram. Como na
Terra, sem ferir a quem quer que seja, ele fará que cada um lhe ouça os
conselhos oportunos; abrandará o zelo prematuro dos ardorosos, amparará os
sinceros e os desinteressados e estimulará os tíbios. Vê agora e sabe tudo o que
ainda há pouco previa! Já não está sujeito às incertezas, nem aos
desfalecimentos e nos fará partilhar da sua convicção, fazendo-nos tocar com o
dedo a meta, apontando-nos o caminho, naquela linguagem clara, precisa, que o tornou
aureolado nos anais literários.
Já
não existe o homem, repetimo-lo. Entretanto, Allan Kardec é imortal e a sua
memória, seus trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que empunharem
forte e vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer respeitado.
Uma
individualidade pujante constituiu a obra. Era o guia e o fanal de todos. Na
Terra, a obra substituirá o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de
Allan Kardec; congregar-se-ão em torno do Espiritismo, tal como ele o
estruturou e, com os seus conselhos, sua influência, avançaremos, a passos
firmes, para as fases ditosas prometidas à Humanidade regenerada. Revista
Espírita, maio 1869
DISCURSO PRONUNCIADO JUNTO AO TÚMULO DE
ALLAN KARDEC
Por Camille Flammarion
Senhores,
Aceitando
com deferência o convite simpático dos amigos do pensador laborioso cujo corpo
terreno jaz agora aos nossos pés, vem-me à mente um dia sombrio do mês de
dezembro de 1865, em que pronunciei palavras de supremo adeus junto à tumba do
fundador da Livraria Acadêmica, do honrado Didier, que, como editor, foi
colaborador convicto de Allan Kardec, na publicação das obras fundamentais de
uma doutrina que lhe era cara. Também ele morreu subitamente, como se o Céu
houvesse querido poupar a esses dois Espíritos íntegros o embaraço fisiológico
de sair desta vida por via diferente da comumente seguida. A mesma reflexão se
aplica à morte do nosso ex-colega Jobard, de Bruxelas.
Hoje,
maior ainda é a minha tarefa, porquanto eu desejara figurar à mente dos que me
ouvem e à das milhões de criaturas que na Europa inteira e no Novo Mundo se têm
ocupado com o problema ainda misterioso dos fenômenos chamados espíritas; — eu
quisera, digo, poder figurar-lhes o interesse científico e o porvir filosófico
do estudo desses fenômenos, ao qual se hão consagrado, como ninguém ignora,
homens eminentes dentre os nossos contemporâneos. Estimaria fazer-lhes entrever
os horizontes desconhecidos que a mente humana verá rasgar-se diante de si, à
medida que ela ampliar o conhecimento positivo das forças naturais que em torno
de nós atuam; mostrar-lhes que essas comprovações constituem o mais eficaz antídoto
para a lepra do ateísmo, de que parece atacada, principalmente, a nossa época
de transição; dar, enfim, aqui, testemunho público do eminente serviço que o
autor de O livro dos espíritos prestou à Filosofia, chamando a atenção e
provocando discussões sobre fatos que até então pertenciam ao domínio mórbido e
funesto das superstições religiosas.
Seria,
com efeito, um ato importante firmar aqui, junto deste túmulo eloquente, que o
metódico exame dos fenômenos erroneamente qualificados de sobrenaturais, longe
de renovar o espírito de superstição e de enfraquecer a energia da razão, ao
contrário, afasta os erros e as ilusões da ignorância e serve melhor ao
progresso do que as negações ilegítimas dos que não querem dar-se ao trabalho
de ver.
Mas
este não é lugar apropriado a estabelecer uma arena às discussões
desrespeitosas. Deixemos apenas que das nossas mentes desçam, sobre a face
impassível do homem ora estendido diante de nós, testemunhos de afeição e
sentimentos de pesar, que lhe permaneçam ao derredor em seu túmulo, qual
embalsamamento do coração! E, pois que sabemos que sua alma eterna sobrevive a
estes despojos mortais, do mesmo modo que a eles preexistiu; pois que sabemos
que laços indestrutíveis unem o nosso mundo visível ao Mundo Invisível; pois
que esta alma existe hoje tão bem como há três dias e que não é impossível se
ache atualmente na minha presença. Digamos-lhe que não quisemos se desvanecesse
a sua imagem terrena encerrada no sepulcro, sem unanimemente rendermos
homenagem a seus trabalhos e à sua memória, sem pagar um tributo de
reconhecimento à sua encarnação terrena, tão útil e tão dignamente preenchida.
Traçarei,
primeiro, num esboço rápido, as linhas principais da sua carreira literária.
Morto
na idade de 65 anos, Allan Kardec consagrara a primeira parte de sua vida a
escrever obras clássicas, elementares, destinadas, sobretudo, ao uso dos
educadores da mocidade. Quando, pelo ano de 1855, as manifestações, novas na aparência, das
mesas girantes, das pancadas sem causa ostensiva, dos movimentos insólitos de
objetos e móveis começaram a prender a atenção pública, determinando mesmo, nos
de imaginação aventureira, uma espécie de febre, devida à novidade de tais
experiências, Allan Kardec, estudando ao mesmo tempo o magnetismo e seus
singulares efeitos, acompanhou com a maior paciência e clarividência judiciosa
as experimentações e as tentativas numerosas que então se faziam em Paris. Recolheu
e pôs em ordem os resultados conseguidos dessa longa observação e com eles
compôs o corpo de doutrina que publicou em 1857, na primeira edição de O livro
dos espíritos. Todos sabeis que êxito alcançou essa obra, na França e no
estrangeiro. Havendo atingido a 16a edição, tem espalhado em todas as classes esse
corpo de doutrina elementar que, na sua essência, não é absolutamente novo,
porquanto a escola de Pitágoras, na Grécia, e a dos druidas, na nossa pobre Gália, ensinavam os seus princípios
fundamentais, mas que agora reveste uma forma de verdadeira atualidade, por
corresponder aos fenômenos.
Depois
dessa primeira obra apareceram, sucessivamente, O livro dos médiuns, ou
Espiritismo experimental; O que é o espiritismo, ou resumo sob a forma de
perguntas e respostas; O evangelho segundo o espiritismo; O céu e o inferno; A
gênese. A morte o surpreendeu no momento em que, com a sua infatigável
atividade, trabalhava noutra sobre as relações entre o Magnetismo e o
Espiritismo.
Pela
Revista Espírita e pela Sociedade de Paris, cujo presidente ele era, se
constituíra, de certo modo, o centro a que tudo ia ter, o traço de união de
todos os experimentadores. Faz alguns meses, sentindo próximo o seu fim,
preparou as condições de vitalidade de tais estudos para depois de sua morte e
instituiu a Comissão Central que lhe sucede.
Suscitou
rivalidades; fez escola de feição um pouco pessoal, havendo ainda alguns
dissídios entre os “espiritualistas” e os “espíritas”. Doravante, senhores
(tal, pelo menos, o voto que formulam os amigos da verdade), devemos unir-nos
todos por uma solidariedade fraterna, pelos mesmos esforços em prol da
elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal do verdadeiro e do bem.
Disseram,
senhores, do digno amigo a quem rendemos hoje as derradeiras homenagens, que
ele não era o que se chama um sábio, que não fora, primeiro, físico,
naturalista, ou astrônomo e que preferira constituir um corpo de doutrina
moral, antes de haver submetido à discussão científica a realidade e a natureza
dos fenômenos.
Talvez,
senhores, se deva preferir que as coisas tenham começado assim. Nem sempre se
deve recusar valor ao sentimento. Quantos corações já foram consolados por esta
crença religiosa! Quantas lágrimas foram enxutas! Quantas consciências abertas
aos raios da beleza espiritual! Nem todos são felizes aqui na Terra. Muitas
afeições foram destruídas! Muitas almas foram adormecidas no ceticismo! Não
será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres que vacilavam na dúvida e
que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?
Fora
Allan Kardec um homem de ciência e decerto não houvera podido prestar este
primeiro serviço e dilatá-lo até muito longe, como um convite a todos os
corações. Ele, porém, era o que eu denominarei simplesmente “o bom senso
encarnado”. Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente
as indicações íntimas do senso comum. Não era essa uma qualidade somenos, na
ordem de coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário, pode-se afirmá-lo, a
primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não teria podido
tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas. A maioria dos que
se têm dado a estes estudos lembram-se de que na mocidade, ou em certas
circunstâncias, foram testemunhas de manifestações inexplicadas. Poucas são as
famílias que não contem na sua história provas desta natureza. O ponto de
partida era aplicar-lhes a razão firme do simples bom senso e examiná-las
segundo os princípios do método positivo.
Conforme
o próprio organizador previu deste estudo demorado e difícil previra, esta Doutrina,
até então filosófica, tem que entrar agora num período científico. Os fenômenos
físicos, sobre os quais a princípio não se insistia, hão de tornar-se objeto da
crítica experimental, sem a qual nenhuma constatação séria é possível. Esse
método experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as
maravilhas da eletricidade e do vapor, deve colher os fenômenos de ordem
misteriosa a que assistimos para os dissecar, medir e definir.
Porque,
meus senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual
apenas conhecemos o abecê. Passou o tempo dos dogmas. A Natureza abrange o
Universo, e o próprio Deus, feito outrora à imagem do homem, a moderna
Metafísica não o pode considerar senão como um espírito na Natureza. O
sobrenatural não existe. As manifestações obtidas com o auxílio dos médiuns,
como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural e devem ser
severamente submetidas à verificação da experiência. Não há mais milagres.
Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a que
consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo desta nova
psicologia?
Doravante,
o mundo é regido pela Ciência e, senhores, não virá fora de propósito, neste
discurso fúnebre, assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos
patenteia, precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas.
Em
nenhuma época da História, a Ciência desdobrou, ante o olhar espantado do
homem, tão grandiosos horizontes. Sabemos agora que a Terra é um astro e que a
nossa vida atual se completa no Céu. Pela análise da luz, conhecemos os
elementos que ardem no Sol e nas estrelas, a milhões e trilhões de léguas do
nosso observatório terrestre. Por meio do cálculo, possuímos a história do céu
e da Terra, assim no passado longínquo como no futuro, passado e futuro que não
existem para as leis imutáveis. Pela observação, temos pesado as terras
celestes que gravitam na amplidão. O globo em que nos encontramos tornou-se um
átomo estelar que voa no espaço dentro das profundezas infinitas e a nossa
própria existência neste globo se tornou uma fração infinitesimal da nossa
eterna vida. Mas o que, com razão, nos pode tocar ainda mais vivamente é esse
surpreendente resultado dos trabalhos físicos realizados nestes últimos anos:
que vivemos em meio de um Mundo Invisível, a atuar incessantemente em torno de
nós. Sim, senhores, é esta, para nós, uma revelação imensa. Contemplai, por
exemplo, a luz que a esta hora o Sol brilhante espalha na atmosfera; contemplai
esse azul tão suave da abóbada celeste; notai os eflúvios deste ar tépido, que
nos vem acariciar as faces; admirai, estes monumentos e esta terra. Pois bem:
conquanto tenhamos escancarados os olhos, não vemos o que aqui se passa! Sobre
cem raios emanados do Sol, apenas um terço deles é acessível à nossa vista,
quer diretamente, quer refletidos por todos os corpos; os dois terços restantes
existem e atuam à volta de nós, mas de maneira invisível, embora real. São
quentes, sem nos serem luminosos e são, no entanto, muito mais ativos do que os
que nos impressionam, porquanto são eles que atraem as flores para o lado do
Sol, que produzem todas as ações químicas (6) e também que elevam, sob forma igualmente
invisível, o vapor d’água na atmosfera para formar as nuvens, exercendo assim,
sem cessar, em torno de nós, de maneira oculta e silenciosa, uma ação colossal,
mecanicamente equiparável ao trabalho de muitos bilhões de cavalos!
(6)
A nossa retina é insensível a esses raios, mas há substâncias que os veem,
como, por exemplo, o iodo e os sais de prata. Fotografado o espectro solar
químico, que o nosso olhar não percebe, nenhuma imagem visível jamais apresenta
a chapa fotográfica ao sair da câmara escura, se bem exista nela uma, pois que
certa operação química a faz aparecer. Se nos são invisíveis os raios
caloríficos e os raios químicos que constantemente atuam na Natureza, é porque
os primeiros não nos ferem com bastante rapidez a retina e porque os segundos a
ferem com rapidez excessiva. Os nossos olhos somente veem as coisas entre dois
limites, aquém e além dos quais nada enxergam. Pode comparar-se o nosso
organismo terreno a uma harpa de duas cordas, que são o nervo óptico e o nervo
auditivo. Certa espécie de movimentos põe em vibração a primeira e outra
espécie de movimentos faz vibrar a segunda: nisto se resume toda a sensação
humana, mais restrita neste ponto do que a de alguns seres vivos, de alguns
insetos, por exemplo, que possuem mais delicadas essas mesmas cordas da visão e
da audição. Ora, em a Natureza, existem realmente, não dois, porém dez, cem, mil
espécies de movimentos. A Ciência física nos ensina, portanto, que vivemos,
assim, dentro de um mundo que nos é invisível, nada tendo de impossível que
seres (também invisíveis para nós) vivam igualmente na Terra, com uma ordem de
sensações absolutamente diversa da das nossas e sem que lhes possamos apreciar
a presença, a menos que se nos manifestem por fatos que caibam na ordem das
nossas sensações.
Diante
de verdades tais, que apenas se entreabrem, quão absurda e sem valor se revela a
negação a priori! Quando se compara o pouco que sabemos e a exiguidade da nossa
esfera de percepção com a quantidade do que existe, não se pode deixar de
concluir que nada sabemos, que tudo estamos por saber. Com que direito, então,
proferiremos a palavra impossível, em presença de fatos que testemunhávamos,
sem, todavia, lhes podermos descobrir a causa única?
A
Ciência nos faculta perspectivas tão autorizadas quanto as precedentes, sobre
os fenômenos da vida e da morte e sobre a força que nos anima. Basta observemos
a circulação das existências.
Tudo
são meras metamorfoses. Arrastados em seu curso eterno, os átomos constitutivos
da matéria passam incessantemente de um corpo a outro, do animal à planta, da
planta à atmosfera, da atmosfera ao homem, e o nosso próprio corpo, enquanto
nos dura a vida, muda continuamente de substância constitutiva, do mesmo modo
que a chama, que só brilha por meio dos elementos que de contínuo se renovam.
E, quando a alma desfere o voo, esse mesmo corpo já tantas vezes transformado
durante a vida, restitui definitivamente à Natureza todas as moléculas, para
não mais as retomar. O dogma inadmissível da ressurreição da carne se acha
substituído pela elevada doutrina da transmigração das almas.
O
Sol de abril irradia nos céus e nos inunda com o seu primeiro rocio calorífico.
Já as campinas despertam, já os primeiros rebentos se entreabrem, já a
primavera refloresce, o azul-celeste sorri e a ressurreição se opera.
Entretanto, esta vida nova é formada pela morte e apenas ruínas cobre! Donde
vem a seiva destas árvores que reverdecem nos campos dos mortos? Donde vem esta
umidade que lhe nutre as raízes? Donde vêm todos os elementos que farão
apareçam, sob as carícias de maio, as silenciosas florinhas e os pássaros
canoros? — Da morte!... Senhores... destes cadáveres sepultados na noite
sinistra dos túmulos!... Lei Suprema da Natureza, o corpo material não passa de
transitório agregado de partículas que absolutamente não lhe pertencem e que a
alma grupou, segundo o seu próprio tipo, a fim de criar para si órgãos que a
ponham em relação com o nosso mundo físico. E, enquanto o nosso corpo assim se
renova, peça por peça, mediante a perpétua troca das matérias; enquanto um dia
ele cai, massa inerte, para não mais se reerguer, o nosso espírito, ser pessoal,
conservou constantemente a sua indestrutível identidade, reinou soberanamente
sobre a matéria de que se revestira, estabelecendo, por meio desse fato perene
e universal, a sua personalidade independente, sua essência espiritual não
sujeita ao império do espaço e do tempo, sua grandeza individual, sua
imortalidade.
Em
que consiste o mistério da vida? Por que laços a alma se prende ao organismo?
Por efeito de que desatamento se lhe escapa? Sob que forma e em que condições
existe ela após a morte? Que lembrança, que afeições conserva? Como se
manifesta? — Eis aí, meus senhores, problemas que longe se acham de estar
resolvidos e que, em seu conjunto, constituirão a ciência psicológica do
futuro. Certos homens podem negar a existência mesma da alma, como a de Deus;
podem afirmar que não existe a verdade moral, que não há na Natureza leis
inteligentes e que nós, espiritualistas, somos vítimas de imensa ilusão. Podem
outros, contrariamente, declarar que conhecem, por especial privilégio, a
essência da alma humana, a forma do Ser Supremo, o estado da vida futura e
tratar-nos de ateus, porque a nossa razão se nega a adotar a fé que eles
alardeiam.
Uns
e outros, senhores, não impedirão que estejamos aqui em presença dos maiores
problemas, que nos interessemos por estas coisas (que de modo nenhum nos são
estranhas) e que tenhamos o direito de aplicar o método experimental da ciência
contemporânea à pesquisa da verdade. Pelo estudo positivo dos efeitos é que se
remonta à apreciação das causas. Na ordem dos estudos que se grupam sob a
denominação de “Espiritismo”, os fatos existem, mas ninguém lhes conhece o modo
de produção. Eles existem tanto quanto os fenômenos elétricos, luminosos,
calóricos; porém, senhores, nós não conhecemos nem a Biologia, nem a Fisiologia.
Que é o corpo humano? que é o cérebro? qual a ação absoluta da alma? Ignoramo-lo.
Igualmente ignoramos a essência da eletricidade, a essência da luz. Prudente é,
pois, que observemos sem parcialidade todos esses fatos e tentemos
determinar-lhes as causas, que talvez sejam de espécies diversas e mais
numerosas do que o tenhamos suposto até agora. Que os que têm a vista
restringida pelo orgulho ou pelo preconceito não compreendam absolutamente os
anseios de nossas mentes ávidas de conhecer e lancem sobre este gênero de
estudos seus sarcasmos ou anátemas, pouco importa. Colocamos mais alto as
nossas contemplações!... Foste o primeiro, ó mestre e amigo! foste o primeiro a
dar, desde o princípio da minha carreira astronômica, testemunho de viva
simpatia às minhas deduções relativas à existência das Humanidades celestes,
pois, tomando do livro sobre a Pluralidade dos mundos habitados, o puseste
imediatamente na base do edifício doutrinário com que sonhavas. Muito amiúde
conversávamos sobre essa vida celeste tão misteriosa; agora, ó alma, sabes, por
visão direta, em que consiste a vida espiritual a que voltaremos e que
esquecemos durante a existência na Terra.
Voltaste
a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos
nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-se o teu cérebro, fecharam-se-te
os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a tua palavra...
Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a
essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas não é nesse envoltório que pomos a
nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao
Espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das
nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo
desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado.
É-nos
mais grato saber esta verdade, do que acreditar que jazes todo inteiro nesse
cadáver e que tua alma se haja aniquilado com a cessação do funcionamento de um
órgão. A imortalidade é a luz da vida, como este refulgente Sol é a luz da
Natureza. Até a vista, meu caro Allan Kardec, até a vista!
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