O CAMINHO DA VIDA
A
questão da pluralidade das existências há desde longo tempo preocupado os
filósofos e mais de um reconheceu na anterioridade da alma a única solução
possível para os mais importantes problemas da Psicologia. Sem esse princípio,
eles se encontraram detidos a cada passo, encurralados num beco sem saída,
donde somente puderam escapar com o auxílio da pluralidade das existências.
A
maior objeção que podem fazer a essa teoria é a da ausência de lembranças das
existências anteriores. Com efeito, uma sucessão de existências inconscientes
umas das outras; deixar um corpo para tomar outro sem a memória do passado
equivaleria ao nada, visto que seria o nada quanto ao pensamento; seria uma
multiplicidade de novos pontos de partida, sem ligação entre si; seria a
ruptura incessante de todas as afeições que fazem o encanto da vida presente, a
mais doce e consoladora esperança do futuro; seria, afinal, a negação de toda a
responsabilidade moral. Semelhante doutrina seria tão inadmissível e tão
incompatível com a Justiça Divina, quanto a de uma única existência com a
perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas temporárias.
Compreende-se então que os que formam semelhante ideia da reencarnação a
repilam, mas não é assim que o Espiritismo no-la apresenta.
A
existência espiritual da alma, diz ele, é a sua existência normal, com
indefinida lembrança retrospectiva. As existências corpóreas são apenas
intervalos, curtas estações na existência espiritual, sendo a soma de todas as
estações apenas uma parcela mínima da existência normal, absolutamente como se,
numa viagem de muitos anos, de tempos a tempos o viajor parasse durante algumas
horas. Embora pareça que, durante as existências corporais, há solução de
continuidade, por ausência de lembrança, a ligação efetivamente se estabelece
no curso da vida espiritual, que não sofre interrupção. A solução de
continuidade, realmente, só existe para a vida corpórea exterior e de relação,
e a ausência, aí, da lembrança prova a sabedoria da Providência que assim
evitou fosse o homem por demais desviado da vida real, onde ele tem deveres a
cumprir, mas quando o corpo se acha em repouso, durante o sono, a alma levanta
o voo parcialmente e restabelece-se então a cadeia interrompida apenas durante
a vigília.
A isto ainda se pode opor uma objeção, perguntando que proveito pode o homem tirar de suas existências anteriores, para melhorar-se, dado que ele não se lembra das faltas que haja cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança de existências desgraçadas, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao pensarmos no que já fôramos! Para o nosso melhoramento, aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, sempre damos alguns passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas imperfeições. Cada uma de tais existências é, portanto, um novo ponto de partida, em que somos qual nos houvermos feito, em que nos tomamos pelo que somos, sem nos preocuparmos com o que tenhamos sido. Se, numa existência anterior, fomos antropófagos, que importa isso, desde que já não o somos? Se tivemos um defeito qualquer, de que já não conservamos vestígio, aí está uma conta saldada, de que não mais nos cumpre cogitar. Suponhamos que, ao contrário, se trate de um defeito apenas meio corrigido: o restante ficará para a vida seguinte e a corrigi-lo é do que nesta devemos cuidar. Tomemos um exemplo: um homem foi assassino e ladrão, e foi punido, quer na vida corpórea, quer na vida espiritual; ele se arrepende e corrige do primeiro pendor, porém, não do segundo. Na existência seguinte, será apenas ladrão, talvez um grande ladrão, porém, não mais assassino. Mais um passo para diante e já não será mais que um ladrão obscuro; pouco mais tarde já não roubará, mas poderá ter a veleidade de roubar, que a sua consciência neutralizará. Depois, um derradeiro esforço e, havendo desaparecido todo vestígio da enfermidade moral, será um modelo de probidade. Que lhe importa então o que ele foi? A lembrança de ter acabado no cadafalso não seria uma tortura e uma humilhação constantes? Aplicai este raciocínio a todos os vícios, a todos os desvios, e podereis ver como a alma se melhora, passando e tornando a passar pelos cadinhos da encarnação. Não terá sido Deus mais justo com o tornar o homem árbitro da sua própria sorte, pelos esforços que empregue por se melhorar, do que se fizesse que sua alma nascesse ao mesmo tempo que seu corpo e o condenasse a tormentos perpétuos por erros passageiros, sem lhe conceder meios de purificar-se de suas imperfeições? Pela pluralidade das existências, nas suas mãos está o seu futuro. Se ele gasta longo tempo a se melhorar, sofre as consequências dessa maneira de proceder: é a suprema justiça; a esperança, porém, jamais lhe é interdita.
A
seguinte comparação é de molde a tornar compreensíveis as peripécias da vida da
alma:
Suponhamos
uma estrada longa, em cuja extensão se encontram, de distância em distância,
mas com intervalos desiguais, florestas que se tem de atravessar e, à entrada
de cada uma, a estrada, larga e magnífica, se interrompe, para só continuar à
saída. O viajor segue por essa estrada e penetra na primeira floresta. Aí,
porém, não dá com caminho aberto; depara-se-lhe, ao contrário, um dédalo
inextricável em que ele se perde. A claridade do sol há desaparecido sob a
espessa ramagem das árvores. Ele vagueia, sem saber para onde se dirige.
Afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da floresta, mas
extenuado, dilacerado pelos espinhos, machucado pelos pedrouços. Lá, descobre
de novo a estrada e prossegue a sua jornada, procurando curar-se das feridas.
Mais
adiante, segunda floresta se lhe antolha, onde o esperam as mesmas
dificuldades. Mas ele já possui um pouco de experiência e dela sai menos
contundido. Noutra, topa com um lenhador que lhe indica a direção que deve
seguir para se não transviar. A cada nova travessia, aumenta a sua habilidade,
de maneira que transpõe cada vez mais facilmente os obstáculos. Certo de que à
saída encontrará de novo a boa estrada, firma-se nessa certeza; depois, já sabe
orientar-se para achá-la com mais facilidade. A estrada finaliza no cume de uma
montanha altíssima, donde ele descortina todo o caminho que percorreu desde o
ponto de partida. Vê também as diferentes florestas que atravessou e se lembra
das vicissitudes por que passou, mas essa lembrança não lhe é penosa, porque
chegou ao termo da caminhada. É qual velho soldado que, na calma do lar
doméstico, recorda as batalhas a que assistiu. Aquelas florestas que
pontilhavam a estrada lhe são como que pontos negros sobre uma fita branca e
ele diz a si mesmo: “Quando eu estava naquelas florestas, nas primeiras,
sobretudo, como me pareciam longas de atravessar! Figurava-se-me que nunca
chegaria ao fim; tudo ao meu derredor me parecia gigantesco e intransponível. E
quando penso que, sem aquele bondoso lenhador que me pôs no bom caminho, talvez
eu ainda lá estivesse! Agora, que contemplo essas mesmas florestas do ponto
onde me acho, como se me apresentam pequeninas! Afigura-se- -me que de um passo
teria podido transpô-las; ainda mais, a minha vista as penetra e lhes distingo
os menores detalhes; percebo até os passos em falso que dei”.
Diz-lhe
então um ancião: — Meu filho, eis-te chegado ao termo da viagem, mas um repouso
indefinido causar-te-á tédio mortal e tu te porias a ter saudades das
vicissitudes que experimentaste e que te davam atividade aos membros e ao Espírito.
Vês daqui grande número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu,
correm o risco de transviar-se; tens experiência, nada mais temas: vai-lhes ao
encontro e procura com teus conselhos guiá-los, a fim de que cheguem depressa.
—
Irei com alegria — replica o nosso homem —; entretanto, pergunto: por que não há
uma estrada direta desde o ponto de partida até aqui? Isso forraria aos
viajantes o terem de atravessar aquelas abomináveis florestas.
—
Meu filho — retruca o ancião —, atenta bem e verás que muitos evitam a
travessia de algumas delas: são os que, tendo adquirido mais de pronto a
experiência necessária, sabem tomar um caminho mais direto e mais curto para
chegarem aqui. Essa experiência, porém, é fruto do trabalho que as primeiras
travessias lhes impuseram, de sorte que eles aqui aportam em virtude do mérito
próprio. Que é o que saberias, se por lá não houvesses passado? A atividade que
houveste de desenvolver, os recursos de imaginação que precisaste empregar para
abrir caminho aumentaram os teus conhecimentos e desenvolveram a tua
inteligência. Sem que tal se desse, serias tão noviço quanto o eras à partida.
Ademais, procurando safar-te dos tropeços, contribuíste para o melhoramento das
florestas que atravessaste. O que fizeste foi pouca coisa, imperceptível mesmo;
pensa, contudo, nos milhares de viajores que fazem outro tanto e que,
trabalhando para si mesmos, trabalham, sem o perceberem, para o bem comum. Não
é justo que recebam o salário de suas penas no repouso de que gozam aqui? Que direito
lhes caberia a esse repouso, se nada houvessem feito?
—
Meu pai — responde o viajor —, numa das florestas, encontrei um homem que me
disse: “Na orla há um imenso abismo a ser transposto de um salto, mas, de mil,
apenas um o consegue; todos os outros lhe caem no fundo, numa fornalha ardente
e ficam perdidos sem remissão. Esse abismo eu não o vi”.
—
Meu filho, é que ele não existe, pois, do contrário, seria uma cilada abominável,
armada a todos os que para cá se dirigem. Bem sei que lhes cabe vencer
dificuldades, mas igualmente sei que cedo ou tarde as vencerão. Se eu houvera
criado impossibilidades para um só que fosse, sabendo que esse sucumbiria,
teria praticado uma crueldade, que avultaria imenso, se atingisse a maioria dos
viajores. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais receber. Olha para a
estrada e observa os intervalos das florestas. Entre os viajantes, alguns vês
que caminham com passo lento e semblante jovial; vê aqueles amigos, que se
tinham perdido de vista nos labirintos da floresta, como se sentem ditosos, por
se haverem de novo encontrado ao deixarem-na. A par deles, porém, outros há que
se arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a compaixão dos que
passam, pois que sofrem atrozmente das feridas de que, por culpa própria, se
cobriram, atravessando os espinheiros. Curar-se-ão, no entanto, e isso lhes
constituirá uma lição da qual tirarão proveito na floresta seguinte, donde
sairão menos machucados. O abismo simboliza os males que eles experimentam e,
dizendo que de mil apenas um o transpõe, aquele homem teve razão, porquanto
enorme é o número dos imprudentes; errou, porém, quando disse que aquele que
ali cair não mais sairá. Para chegar a mim, o que tombou encontra sempre uma saída.
Vai, meu filho, vai mostrar essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai
amparar os feridos que se arrastam pela estrada e mostrar o caminho aos que se
embrenharam pelas florestas.
A
estrada é a imagem da vida espiritual da alma e em cujo percurso esta é mais ou
menos feliz. As florestas são as existências corpóreas, em que ela trabalha
pelo seu adiantamento, ao mesmo tempo que na obra geral. O caminheiro que chega
ao fim e que volta para ajudar os que vêm atrasados figura os anjos guardiães,
os missionários de Deus, que se sentem venturosos em vê-lo, como também no
desdobrarem suas atividades para fazer o bem e obedecer ao supremo Senhor.
AS CINCO ALTERNATIVAS
DA HUMANIDADE
Bem
poucos homens vivem despreocupados do dia seguinte. Ora, se cada um se inquieta
pelo que virá após o dia que está transcorrendo, com mais forte razão é natural
se preocupe com o que haverá depois do grande dia da vida, pois já não se trata
de alguns instantes, mas da eternidade. Viveremos ou não viveremos, findo esse
grande dia? Não há meio-termo; é uma questão de vida e de morte; é a suprema
alternativa!...
Se
interrogarmos o sentimento íntimo da quase universalidade dos homens, todos
responderão: “Viveremos.” Essa esperança constitui uma consolação. Entretanto,
uma pequena minoria se esforça, sobretudo de algum tempo para cá, por lhes
provar que não viverão. Fez prosélitos essa escola, força é confessá-lo, e
principalmente entre os que, temendo a responsabilidade do futuro, acham mais
cômodo gozar sem constrangimento do presente, sem se perturbarem com a
perspectiva das consequências. Essa, porém, é a opinião de uma pequena minoria.
Se
havemos de viver, como viveremos? Em que condições viremos a encontrar-nos?
Aqui, os sistemas variam, de acordo com as ideias religiosas e filosóficas.
Podem, no entanto, reduzir-se a cinco todas as capitais alternativas, que
passamos a sumariar, a fim de que se torne mais fácil a comparação e cada um
possa escolher a que lhe pareça mais racional e melhor corresponda às suas
aspirações pessoais e às exigências da sociedade. As cinco alternativas são as
que resultam das doutrinas do materialismo, do panteísmo, do deísmo, do
dogmatismo e do Espiritismo.
I – Doutrina
materialista
A
inteligência do homem é uma propriedade da matéria; nasce e morre com o
organismo. O homem nada é antes, nem depois da vida corporal.
Consequências.
Sendo o homem apenas matéria, os gozos materiais são as únicas coisas reais e
desejáveis; as afeições morais carecem de futuro; os laços morais, a morte os
quebra sem remissão e para as misérias da vida não há compensação; o suicídio
vem a ser o fim racional e lógico da existência, quando não se pode esperar
atenuação para os sofrimentos; inútil qualquer constrangimento para vencer os
maus pendores; viver cada um para si o melhor possível, enquanto aqui estiver;
estupidez vexar-se e sacrificar o repouso, o bem-estar por causa de outros, isto
é, por causa de seres que a seu turno serão aniquilados e que ninguém tornará a
ver; deveres sociais sem fundamento, o bem e o mal meras convenções; por freio
social unicamente a força material da lei civil.
Nota
– Não será talvez inútil lembrar aqui, aos nossos leitores, algumas passagens do
artigo O materialismo e o Direito que publicamos na Revista de agosto de 1868.
Exibindo-se
como não o tinha feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo
regulador dos destinos morais da Humanidade, o materialismo teve por efeito
apavorar as massas pelas consequências inevitáveis de suas doutrinas para a
ordem social. Por isto mesmo provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma
enérgica reação, que deve provar-lhe que está longe de ter simpatias tão gerais
quanto supõe, e que se ilude singularmente se espera um dia impor suas leis ao
mundo.
Seguramente
as crenças espiritualistas dos tempos passados são insuficientes para este
século; elas não estão no nível intelectual da nossa geração; sobre muitos
pontos estão em contradição com os dados positivos da Ciência; deixam no
espírito um vazio incompatível com a necessidade do positivo que domina na
sociedade moderna; além disso, cometem o erro imenso de se imporem pela fé cega
e de proscreverem o livre-exame. Daí, sem a menor dúvida, o desenvolvimento da
incredulidade no maior número; é muito evidente que se os homens não fossem alimentados,
desde a infância, senão por ideias susceptíveis de serem confirmadas mais tarde
pela razão, não haveria incrédulos. Quantas pessoas, reconduzidas à crença pelo
Espiritismo, nos disseram: “Se sempre nos tivessem apresentado Deus, a alma e a
vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!”
Pelo
fato de um princípio receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que se deva rejeitá-lo?
Isto acontece com coisas espirituais, como com a legislação de todas as instituições
sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbir. Mas em vez
de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o materialismo
preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia mais cômodo
àqueles a quem importuna a ideia de Deus e do futuro. Que pensariam de um
médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante substancial
para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente nada?
O
que é de admirar é encontrar na maioria dos materialistas da escola moderna esse
espírito de intolerância levado aos últimos limites, logo eles que reivindicam sem
cessar o direito de liberdade de consciência. [...]
Há,
neste momento, da parte de certo partido, uma oposição furibunda contra as
ideias espiritualistas em geral, nas quais o Espiritismo se acha naturalmente
englobado. O que ele busca não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus matéria,
menos constrangedor, porque não tem que lhe dar contas. Ninguém contesta a esse
partido o direito de ter sua opinião, de discutir as opiniões contrárias, mas o
que não se lhe poderia conceder é a pretensão, no mínimo singular, para homens que
se apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à
sua maneira e de discutir as doutrinas que não partilham. Intolerância por
intolerância, uma não vale mais que a outra.
II – Doutrina
panteísta
O
princípio inteligente, ou alma, independente da matéria, é extraído, ao nascer,
do todo universal; individualiza-se em cada ser durante a vida e volta, por
efeito da morte, à massa comum, como as gotas de chuva ao oceano.
Consequências.
Sem individualidade e sem consciência de si mesmo, o ser é como se não
existisse. As consequências morais desta doutrina são exatamente as mesmas que
as da doutrina materialista.
Nota
– Certo número de panteístas admitem que a alma, tirada, ao nascer, do todo
universal, conserva a sua individualidade por tempo indefinido e somente volta
à massa depois de haver chegado aos últimos degraus da perfeição. As consequências
desta variedade de crença são absolutamente as mesmas que as da doutrina
panteísta propriamente dita, pois de todo inútil é que alguém se dê ao trabalho
de adquirir alguns conhecimentos, cuja consciência terá de perder, pelo aniquilar-se
após um tempo relativamente curto. Se a alma, em geral, se nega a admitir
semelhante concepção, quão mais penosamente não haveria ela de sentir-se chocada,
ponderando que o instante em que alcançasse o conhecimento e a perfeição
supremos seria o em que se veria condenada a perder o fruto de todos os seus labores,
perdendo a sua individualidade.
III – Doutrina deísta
O
deísmo compreende duas categorias bem distintas de crentes: os deístas
independentes e os deístas providencialistas.
Os
primeiros creem em Deus; admitem todos os seus atributos como criador. Deus,
dizem eles, estabeleceu as leis gerais que regem o Universo, mas, uma vez
estabelecidas, essas leis funcionam por si sós e aquele que as promulgou de
mais nada se ocupa. As criaturas fazem o que querem ou o que podem, sem que Ele
se inquiete. Não há providência; não se ocupando Deus conosco, nada temos que
lhe agradecer, nem que lhe pedir.
Os
que negam qualquer intervenção providencial na vida do homem são como crianças
que se julgam muito ajuizadas para se libertarem da tutela, dos conselhos e da
proteção de seus pais, ou que pensam não deverem estes ocupar-se mais com eles,
desde que os puseram no mundo.
Sob
o pretexto de glorificarem a Deus, demasiado grande, dizem, para se abaixar até
as suas criaturas, fazem dele um grande egoísta e o rebaixam até o nível dos
animais que abandonam suas crias à natureza.
Essa
crença é resultado do orgulho; é sempre a ideia de que estamos submetidos a um
poder superior que fere o amor-próprio e do qual procuram eximir-se. Enquanto
uns negam absolutamente esse poder, outros consentem em reconhecer-lhe a
existência, embora condenando-a à nulidade.
Há
uma diferença essencial entre o deísta independente, do qual acabamos de falar,
e o deísta providencialista. Este último, com efeito, crê não só na existência
e no poder criador de Deus, na origem das coisas, como também crê na sua
intervenção incessante na Criação e a Ele ora, mas não admite o culto exterior
e o dogmatismo atual.
IV – Doutrina
dogmática
A
alma, independente da matéria, é criada por ocasião do nascimento do ser;
sobrevive e conserva a individualidade após a morte; desde esse momento, tem
irrevogavelmente determinada a sua sorte; nulos lhe são quaisquer progressos
ulteriores; ela será, pois, por toda a eternidade, intelectual e moralmente, o
que era durante a vida. Sendo os maus condenados a castigos perpétuos e
irremissíveis no inferno, completamente inútil lhes resulta todo
arrependimento; parece assim que Deus se nega a conceder-lhes a possibilidade
de repararem o mal que fizeram. Os bons são recompensados com a visão de Deus e
a contemplação perene no Céu. Os casos que possam merecer o Céu ou o inferno,
por toda a eternidade, são deixados à decisão e ao juízo de homens falíveis,
aos quais é dada a faculdade de absolver ou condenar.
Nota
– Se a esta proposição final objetassem que Deus julga em última instância, poder-se-ia
perguntar que valor tem a decisão proferida pelos homens, uma vez que ela pode
ser infirmada.
Separação
definitiva e absoluta dos condenados e dos eleitos. Inutilidade dos socorros
morais e das consolações para os condenados. Criação de anjos ou almas
privilegiadas, isentas de todo trabalho para chegarem à perfeição etc. etc.
Consequências.
Esta doutrina deixa sem solução os graves problemas seguintes:
1o )
Donde vêm as disposições inatas, intelectuais e morais, que fazem com que os
homens nasçam bons ou maus, inteligentes ou idiotas?
2o )
Qual a sorte das crianças que morrem em tenra idade? Por que vão elas para uma
vida bem-aventurada, sem o trabalho a que os outros ficam sujeitos durante
longos anos? Por que são recompensadas sem terem podido fazer o bem, ou são
privadas de uma felicidade perfeita, sem terem feito o mal?
3o )
Qual a sorte dos cretinos e dos idiotas que não têm consciência de seus atos?
4o )
Onde a justiça das misérias e das enfermidades de nascença, uma vez que não
resultam de nenhum ato da vida presente?
5o )
Qual a sorte dos selvagens e de todos os que forçosamente morrem no estado de
inferioridade moral em que foram colocados pela natureza mesma, se não lhes é
dado progredirem ulteriormente?
6o )
Por que cria Deus umas almas mais favorecias do que outras?
7o )
Por que chama Ele a si prematuramente os que teriam podido melhorar-se, se
vivessem mais tempo, visto que não lhes é permitido progredirem depois da
morte?
8o )
Por que criou Deus anjos em estado de perfeição sem trabalho, ao passo que
outras criaturas são submetidas às mais rudes provações em que têm maiores
probabilidades de sucumbir, do que de sair vitoriosas etc. etc.?
V – Doutrina Espírita
O
princípio inteligente independe da matéria. A alma individual preexiste e
sobrevive ao corpo. O ponto de partida ou de origem é o mesmo para todas as
almas, sem exceção; todas são criadas simples e ignorantes e sujeitas a
progresso indefinido. Nada de criaturas privilegiadas e mais favorecidas do que
outras. Os anjos são seres que chegaram à perfeição, depois de haverem passado,
como todas as outras criaturas, por todos os graus da inferioridade. As almas
ou Espíritos progridem mais ou menos rapidamente, mediante o uso do
livre-arbítrio, pelo trabalho e pela boa vontade. A vida espiritual é a vida
normal; a vida corpórea é uma fase temporária da vida do Espírito, que durante
ela se reveste de um envoltório material, de que se despe por ocasião da morte.
O
Espírito progride no estado corporal e no estado espiritual. O estado corpóreo
é necessário ao Espírito, até que haja galgado certo grau de perfeição. Ele aí
se desenvolve pelo trabalho a que é submetido pelas suas próprias necessidades
e adquire conhecimentos práticos especiais. Sendo insuficiente uma só
existência corporal para que adquira todas as perfeições, retoma um corpo
tantas vezes quantas lhe forem necessárias e de cada vez encarna com o
progresso que haja realizado em suas existências precedentes e na vida
espiritual. Quando, num mundo, alcança tudo o que aí pode obter, deixa-o para
ir a outros mundos, intelectual e moralmente mais adiantados, cada vez menos
materiais, e assim por diante, até a perfeição de que é suscetível a criatura.
O
estado ditoso ou inditoso dos Espíritos é inerente ao adiantamento moral deles;
a punição que sofrem é consequência do seu endurecimento no mal, de sorte que,
com o perseverarem no mal, eles se punem a si mesmos, mas a porta do
arrependimento nunca se lhes fecha e eles podem, desde que o queiram, volver ao
caminho do bem e efetuar, com o tempo, todos os progressos.
As
crianças que morrem em tenra idade podem ser Espíritos mais ou menos
adiantados, porquanto já tiveram outras existências em que ou praticaram o bem
ou cometeram ações más. A morte não os livra das provas que hajam de sofrer e,
em tempo oportuno, eles voltam a uma nova existência na Terra, ou em mundos
superiores, conforme o grau de elevação que tenham atingido.
A
alma dos cretinos e dos idiotas é da mesma natureza que a de qualquer outro
encarnado; possuem, muitas vezes, grande inteligência; sofrem pela deficiência
dos meios de que dispõem para entrar em relação com os seus companheiros de
existência, como os mudos sofrem por não poderem falar. É que abusaram da
inteligência em existências pretéritas e aceitaram voluntariamente a situação
de impotência para usar dela, a fim de expiarem o mal que praticaram etc. etc.
A MORTE ESPIRITUAL
A
questão da morte espiritual é um dos novos princípios que assinalam os
progressos da ciência espírita. A maneira por que foi apresentada em certa
teoria pessoal determinou, no primeiro momento, a sua rejeição, porque parecia
implicar o aniquilamento, em dado tempo, do eu individual e assimilar as
transformações da alma às da matéria, cujos elementos se desagregam para formar
novos corpos. Os seres ditosos e aperfeiçoados seriam, na realidade, novos
seres, o que é inadmissível. A equidade das penas e dos gozos futuros só se
evidencia com a perpetuidade dos seres ascendendo a escala do progresso e
depurando-se pelo trabalho e pelos esforços da vontade própria.
Tais
as consequências que se podiam tirar, a priori, daquela teoria. Entretanto,
devemos convir em que ela não foi apresentada com a empáfia de um orgulhoso que
pretendesse impor o seu sistema. Disse modestamente o autor que apenas desejava
lançar uma ideia no terreno da discussão, dado que dessa ideia poderia surgir
uma verdade nova. Ao parecer dos nossos eminentes guias espirituais, ele teria
pecado menos quanto ao fundo do que quanto à forma, que se prestou a uma falsa interpretação.
Isso nos determina a estudar seriamente a questão. É o que tentaremos fazer,
baseando-nos na observação dos fatos que ressaltam da situação do Espírito, em
duas épocas, para ele, capitais: a da sua descida à vida corpórea e a do seu
regresso à vida espiritual.
Por
ocasião da morte corpórea, o Espírito entra em perturbação e perde a
consciência de si mesmo, de sorte que jamais testemunha o último suspiro do seu
corpo. Pouco a pouco a perturbação se dissipa e o Espírito se recobra, como um
homem que desperta de profundo sono. Sua primeira sensação é a de estar livre
do fardo carnal; segue-se o espanto, ao reparar no novo meio em que se
encontra. Acha-se na situação de um a quem se cloroformiza para uma amputação e
que, ainda adormecido, é levado para outro lugar. Ao acordar, ele se sente
livre do membro que o fazia sofrer; muitas vezes, procura-o, surpreendido de
não mais o possuir. Do mesmo modo, o Espírito, no primeiro momento, procura o
corpo que tinha; descobre-o a seu lado; reconhece que é o seu e espanta-se de
estar dele separado e só gradativamente se apercebe da sua nova situação.
Nesse
fenômeno, apenas se operou uma mudança de situação material. Quanto ao moral, o
Espírito é exatamente o que era algumas horas antes; por nenhuma modificação
sensível passou; suas faculdades, suas ideias, seus gostos, seus pendores, seu
caráter são os mesmos e as transformações que possa experimentar só
gradativamente se operarão, pela influência do que o cerca. Em resumo,
unicamente para o corpo houve morte; para o Espírito, apenas sono houve.
Na
reencarnação, as coisas se passam de outra maneira.
No
momento da concepção do corpo que se lhe destina, o Espírito é apanhado por uma
corrente fluídica que, semelhante a uma rede, o toma e aproxima da sua nova
morada. Desde então, ele pertence ao corpo, como este lhe pertencerá até que
morra. Todavia, a união completa, o apossamento real somente se verifica por
ocasião do nascimento.
Desde
o instante da concepção, a perturbação ganha o Espírito; suas ideias se tornam
confusas; suas faculdades se somem; a perturbação cresce à medida que os liames
se apertam; torna-se completo nas últimas fases da gestação, de sorte que o
Espírito não aprecia o ato de nascimento do seu corpo, como não aprecia o da
morte deste; nenhuma consciência tem, nem de um, nem de outro.
Desde
que a criança respira, a perturbação começa a dissipar-se, as ideias voltam
pouco a pouco, mas em condições diversas das verificadas quando da morte do
corpo.
No
ato da reencarnação, as faculdades do Espírito não ficam apenas entorpecidas
por uma espécie de sono momentâneo, conforme se dá quando do regresso à vida
espiritual; todas, sem exceção, passam ao estado de latência. A vida corpórea
tem por fim desenvolvê-las mediante o exercício, mas nem todas se podem
desenvolver simultaneamente, porque o exercício de uma poderia prejudicar o de
outra, ao passo que, por meio do desenvolvimento sucessivo, umas se firmam nas
outras. Convém, pois, que algumas fiquem em repouso, enquanto outras aumentam.
Esta a razão por que, na sua nova existência, pode o Espírito apresentar-se sob
aspecto muito diferente, sobretudo se pouco adiantado for, do que tinha na
existência precedente.
Num,
a faculdade musical, por exemplo, será mais ativa; ele conceberá, perceberá e,
portanto, fará tudo o que for necessário ao desenvolvimento dessa faculdade;
noutra existência, tocará a vez à pintura, às ciências exatas, à poesia etc.
Enquanto estas novas faculdades se exercitarem, a da música estará latente, mas
conservando o progresso que realizou. Resulta daí que quem foi artista numa
existência, poderá ser um sábio, um homem de estado, ou um estrategista noutra,
sendo nulo do ponto de vista artístico e reciprocamente.
O
estado latente das faculdades na reencarnação explica o esquecimento das
existências precedentes, enquanto, por ocasião da morte, achando-se as
faculdades em estado de sono pouco durável, a lembrança da vida que acaba de
transcorrer é completa, ao despertar o Espírito na vida espiritual.
As
faculdades que se manifestam estão naturalmente em relação com a posição que o
Espírito tem de ocupar no mundo e com as provas que haja escolhido. Entretanto,
acontece muitas vezes que os preconceitos sociais o desloquem, o que faz que
certas pessoas estejam intelectual e moralmente acima ou abaixo da posição que
ocupam. Esse deslocamento, pelos entraves que acarreta, faz parte das provas;
cessará com o progresso. Numa ordem social avançada, tudo se regula de acordo
com a lógica das Leis Naturais e aquele que apenas tiver aptidão para fabricar
sapatos não será, por direito de nascimento, chamado a governar os povos.
Voltemos
à criança. Até nascer, todas as faculdades se lhe encontram em estado latente,
nenhuma consciência de si mesmo tem o Espírito. As que devam desenvolver-se não
desabrocham de súbito no ato de nascer; o desenvolvimento delas acompanha o dos
órgãos que terão de servir para as suas manifestações; por meio da atividade
íntima em que se põem, elas impulsionam o desenvolvimento dos órgãos que lhes
correspondem, do mesmo modo que o broto, ao nascer, força a casca da árvore.
Daí resulta que, na primeira infância, o Espírito não goza em plenitude de
nenhuma de suas faculdades, não só como encarnado, mas também como Espírito livre.
Ele é verdadeiramente infantil, como o corpo a que se acha ligado, sem,
contudo, estar neste comprimido penosamente. A não ser assim, Deus houvera feito
da encarnação um suplício para todos os Espíritos, bons ou maus. O mesmo,
porém, não acontece com o idiota ou o cretino. Nestes, não se tendo os órgãos
desenvolvido paralelamente às faculdades, o Espírito acaba por achar-se na
posição de um homem preso por laços que lhe tiram a liberdade dos movimentos.
Tal a razão por que se pode evocar o Espírito de um idiota e obter respostas
sensatas, ao passo que o de uma criança de muito pouca idade, ou que ainda não
veio à luz, é incapaz de responder.
Todas
as faculdades, todas as aptidões se encontram em gérmen no Espírito, desde a
sua criação, mas em estado rudimentar, como todos os órgãos no primeiro filete
do feto informe, como todas as partes da árvore na semente. O selvagem que mais
tarde se tornará homem civilizado possui, pois, em si os germens que, um dia,
farão dele um sábio, um grande artista, ou um grande filósofo.
À
medida que esses germens chegam à maturidade, a Providência lhes dá, para a
vida terrestre, um corpo apropriado às suas novas aptidões. É assim que o
cérebro de um europeu é organizado de modo mais completo, provido de maior
número de teclas, do que o do selvagem. Para a vida espiritual, dá-lhes um
corpo fluídico, ou perispírito, mais sutil e impressionável por novas
sensações. À proporção que o Espírito se engrandece, a Natureza o provê dos
instrumentos que lhe são necessários.
No
sentido de desorganização, de desagregação das partes, de dispersão dos
elementos, não há morte, senão para o invólucro material e o invólucro
fluídico, mas, quanto à alma, ou Espírito, esse não pode morrer para progredir;
de outro modo, ele perderia a sua individualidade, o que equivaleria ao nada.
No sentido de transformação, regeneração, pode dizer-se que o Espírito morre a
cada encarnação, para ressuscitar com atributos novos, sem deixar de ser o eu
que era. Tal, por exemplo, um camponês que enriquece e se torna importante
senhor. Trocou a choupana por um palácio, as roupas modestas por vestuários de
brocado. Todos os seus hábitos mudaram, seus gostos, sua linguagem, até o seu
caráter. Numa palavra, o camponês morreu, enterrou as vestes de grosseiro
estofo, para renascer homem de sociedade, sendo sempre, no entanto, o mesmo
indivíduo, porém transformado.
Cada
existência corpórea é, pois, para o Espírito, um meio de progredir mais ou
menos sensivelmente. De volta ao mundo dos Espíritos, leva para lá novas
ideias; um horizonte moral mais dilatado; percepções mais agudas, mais
delicadas. Vê e compreende o que antes não via, nem compreendia; sua visão que,
a princípio, não ia além da última existência que tivera, passa a abranger
sucessivamente as suas existências pretéritas, como o homem que sobe uma
montanha e para quem o nevoeiro se vai dissipando, abrange com o olhar um
horizonte cada vez mais vasto. A cada novo estágio na erraticidade, novas
maravilhas do Mundo Invisível se desdobram diante do seu olhar, porque, em cada
um desses estágios, um véu se rasga. Ao mesmo tempo, seu envoltório fluídico se
depura; torna-se mais leve, mais brilhante e mais tarde resplandecerá. É quase
um novo Espírito; é o camponês desbastado e transformado. Morreu o Espírito
velho, mas o eu é sempre o mesmo.
É
assim, cremos, que convém se entenda a morte espiritual.
A VIDA FUTURA
A
vida futura já deixou de ser um problema. É um fato apurado pela razão e pela
demonstração para a quase totalidade dos homens, porquanto os que a negam
formam ínfima minoria, sem embargo do ruído que tentam fazer. Não é, pois, a
sua realidade o que nos propomos demonstrar aqui. Fora repetir-nos, sem
acrescentarmos coisa alguma à convicção geral. Admitido que está o princípio,
como primícias, o a que nos propomos é examinar-lhe a influência sobre a ordem
social e a moralização, segundo a maneira por que é encarada.
As
consequências do princípio contrário, isto é, do nadismo, já são por demais
conhecidas e bastante compreendidas, para que se torne necessário desenvolvê-las
de novo. Apenas diremos que, se estivesse demonstrada a inexistência da vida
futura, nenhum outro fim teria a vida presente, senão o da manutenção de um
corpo que, amanhã, dentro de uma hora, poderá deixar de existir, ficando tudo,
nesse caso, inteiramente acabado. A consequência lógica de semelhante condição
para a Humanidade seria concentrarem-se todos os pensamentos na incrementação
dos gozos materiais, sem atenção aos prejuízos de outrem. Por que, então,
haveria alguém de suportar privações, de impor-se sacrifícios? Por que haveria
de constranger-se para se melhorar, para se corrigir de defeitos? Seria também
a absoluta inutilidade do remorso, do arrependimento, uma vez que nada se
deveria esperar. Seria, afinal, a consagração do egoísmo e da máxima: O mundo
pertence aos mais fortes e aos mais espertos. Sem a vida futura, a moral não
passa de mero constrangimento, de um código convencional, arbitrariamente
imposto; nenhuma raiz teria ela no coração. Uma sociedade fundada em tal crença
só teria por elo, a prender- -lhe os membros, a força e bem depressa cairia em
dissolução.
Não
se objete que, entre os negadores da vida futura, há pessoas honestas, incapazes
de cientemente causar dano a quem quer que seja e suscetíveis dos maiores
devotamentos. Digamos, antes de tudo, que, entre muitos incrédulos, a negação
do porvir é mais fanfarronada, jactância, orgulho de passarem por Espíritos
fortes do que resultado de uma convicção absoluta. No foro íntimo de suas
consciências, há uma dúvida a importuná-los, pelo que procuram eles
atordoar-se. Não é, porém, sem dissimulação que pronunciam o terrível nada, que
os priva do fruto de todos os trabalhos da inteligência e despedaça para sempre
as mais caras afeições. Muitos dos que mais forte deblateram são os primeiros a
tremer ante a ideia do desconhecido; por isso mesmo, quando se lhes aproxima o momento
fatal de entrarem nesse desconhecido, bem poucos são os que adormecem no
derradeiro sono, na firme persuasão de que não despertarão algures, visto que a
Natureza jamais abdica dos seus direitos.
Afirmamos,
pois, que, na maioria dos incrédulos, a incredulidade é muito relativa, isto é,
que, não lhes estando satisfeita a razão, nem com os dogmas, nem com as crenças
religiosas, e nada tendo encontrado, em parte alguma, com que enchessem o vazio
que se lhes fizera no íntimo, eles concluíram que nada há e edificaram sistemas
com que justificassem a negação. Não são, conseguintemente, incrédulos, senão
por falta de coisa melhor. Os absolutamente incrédulos são raríssimos, se é que
existem.
Uma
latente e inconsciente intuição do futuro é, portanto, capaz de deter grande
número deles no declive do mal e uma imensidade de atos se poderiam citar,
mesmo da parte dos mais endurecidos, testificantes da existência desse
sentimento secreto que os domina, a seu mau grado.
Cumpre
também dizer que, seja qual for o grau da incredulidade, o respeito humano é o
que torna reservadas as pessoas de certa condição social. A posição que ocupam
os obriga a uma linha de proceder muito discreta; temem acima de tudo a
desconsideração e o desdém que, fazendo-os perder, por decaírem da categoria em
que se encontram, as atenções do mundo, os privariam dos gozos de que
desfrutam; se carecem de um fundo de virtudes, pelo menos têm destas o verniz.
Mas aos que nenhuma razão se apresenta para se preocuparem com a opinião dos
outros, aos que zombam do “que dirão”, e não há contestar que esses formam a
maioria, que freio se pode impor ao transbordamento das paixões brutais e dos
apetites grosseiros? Em que base assentar a teoria do bem e do mal, a
necessidade de eles reformarem seus maus pendores, o dever de respeitarem o que
pertence aos outros, quando eles próprios nada possuem? Qual pode ser o estímulo
à honradez, para criaturas a quem se haja persuadido que não passam de simples
animais? A lei, respondem, aí está para contê-los, mas a lei não é um código de
moral que toque o coração; é uma força cuja ação eles suportam e que iludem, se
o podem. Se lhe caem sob o guante, isso é por eles tido como resultado de má
sorte ou de inabilidade, a que tratam de remediar na primeira ocasião.
Os
que pretendem que os incrédulos têm mais mérito em fazer o bem, por não esperarem
nenhuma recompensa numa vida futura, em que não creem, se valem de um sofisma
igualmente mal fundado. Também os crentes dizem que é pouco meritório o bem
praticado com vistas em vantagens que possam colher. Vão mesmo mais longe,
porquanto se acham persuadidos de que o mérito pode ser completamente anulado,
tal o móvel que determine a ação. A perspectiva da vida futura não exclui o
desinteresse nas boas obras, porque a ventura que elas proporcionam está, antes
de tudo, subordinada ao grau de adiantamento moral do indivíduo. Ora, os orgulhosos
e os ambiciosos se contam entre os menos aquinhoados. Mas os incrédulos que
praticam o bem são tão desinteressados como o pretendem? Será que, nada
esperando do outro mundo também deste nada esperam? O amor-próprio não tem no
caso a sua parte? Serão eles insensíveis aos aplausos dos homens? Se tal
acontecesse, estariam num grau de perfeição rara e não cremos haja muitos que a
tanto sejam induzidos unicamente pelo culto da matéria.
Objeção
mais séria é esta: Se a crença na vida futura é um elemento moralizador, como é
que aqueles a quem se prega isso desde que vêm ao mundo são igualmente tão
maus?
Primeiramente,
quem nos diz que sem isso não seriam piores? Não há duvidar, desde que se
considerem os resultados inevitáveis da popularização do niilismo. Não se
comprova, ao contrário, observando-se as diferentes graduações da Humanidade,
desde a selvajaria até a civilização, que o progresso intelectual e moral vai à
frente, produzindo o abrandamento dos costumes e uma concepção mais racional da
vida futura? Essa concepção, no entanto, por muito imperfeita, ainda não pode
exercer a influência que necessariamente terá, à medida que for mais bem
compreendida e que se adquiram noções mais exatas sobre o futuro que nos está
reservado.
Por
muito sólida que seja a crença na imortalidade, o homem não se preocupa com a
sua alma, senão de um ponto de vista místico. A vida futura, definida com
extrema falta de clareza, só muito vagamente o impressiona; não passa de um
objetivo que se perde muito ao longe, e não um meio, porque a sorte lhe está
irrevogavelmente assinada e em parte alguma lha apresentam como progressiva,
donde se conclui que aquilo que formos, ao sair daqui, sê-lo-emos por toda a
eternidade. Aliás, o quadro que traçam da vida futura, as condições
determinantes da felicidade ou da desventura que lá se experimentam, longe
estão, sobretudo num século de exame, como o nosso, de satisfazer completamente
à razão. Acresce que ela não se prende muito diretamente à vida terrestre,
nenhuma solidariedade havendo entre as duas, mas, antes, um abismo, de maneira
que aquele que se preocupa principalmente com uma das duas quase sempre perde a
outra de vista. Sob o império da fé cega, essa crença abstrata bastara às
inspirações dos homens que, então, se deixavam conduzir. Hoje, porém, sob o
reinado do livre-exame, eles querem conduzir-se por si mesmos, ver com seus
próprios olhos e compreender. Aquelas vagas noções da vida futura já não estão à
altura das novas ideias e já não correspondem às necessidades que o progresso
criou. Com o desenvolvimento das ideias, tudo tem que progredir em torno do
homem, porque tudo se liga, tudo é solidário em a Natureza: ciências, crenças,
cultos, legislações, meios de ação. O movimento para a frente é irresistível,
porque é lei da existência dos seres. O que quer que fique para trás, abaixo do
nível social, é posto de lado, como vestuário que se tornou imprestável e,
finalmente, arrastado pela onda que se avoluma.
O
mesmo acontece com as ideias pueris sobre a vida futura, com que os nossos pais
se contentavam; persistir hoje em impô-las seria propagar a incredulidade. Para
que a opinião geral a aceite e para que ela exerça sua ação moralizadora, a
vida futura tem que ser apresentada sob o aspecto de coisa positiva, de certo
modo tangível e capaz de suportar qualquer exame, satisfazendo à razão, sem
nada deixar na sombra. No momento em que a precariedade das noções sobre o
porvir abria a porta à dúvida e à incredulidade, novos meios de investigação
foram conferidos ao homem, para penetrar esse mistério e fazer-lhe compreender
a vida futura na sua realidade, em seu positivismo, nas suas relações íntimas
com a vida corpórea.
Por
que, em geral, se cuida tão pouco da vida futura? Trata-se, no entanto, de uma
atualidade, pois que todos os dias milhares de homens partem para esse destino
desconhecido. Tendo cada um de nós de partir por sua vez e podendo a hora da
partida soar de um momento para outro, parece natural que todos se preocupem
com o que sucederá. Por que não se dá isso? Precisamente porque é desconhecido
o destino e porque, até o presente, ninguém tinha meio de conhecê-lo. A
Ciência, inexorável, o desalojou dos lugares onde o tinham limitado. Está ele
perto? Está longe? Acha-se perdido no infinito? As filosofias de antanho nada
respondem, porque nada sabem a respeito. Diz-se então: “Será o que for”.
Indiferença.
Ensinam-nos
que seremos felizes ou infelizes, conforme houvermos vivido bem ou mal. Mas
isso é tão vago! Em que consistem essa felicidade e essa infelicidade? O quadro
que de uma e outra nos traçam tão em desacordo está com a ideia que fazemos da
Justiça de Deus, tão cheio de contradições, de inconsequências, de
impossibilidades radicais, que involuntariamente a dúvida se apresenta, senão a
incredulidade absoluta. Ademais, pondera-se que os que se enganaram com relação
aos lugares indicados para moradas futuras também podem ter sido induzidos em
erro, quanto às condições que estatuem para a felicidade e para o sofrimento. Aliás,
como seremos nesse outro mundo? Seremos seres concretos ou abstratos? Teremos
uma forma ou uma aparência? Se nada de material tivermos, como poderemos
experimentar sofrimentos materiais? Se os ditosos nada tiverem que fazer, a
ociosidade perpétua, em vez de uma recompensa, será um suplício, a menos que se
admita o Nirvana do budismo, que não é mais desejável do que aquela ociosidade.
O
homem não se preocupará com a vida futura, senão quando vir nela um fim claro e
positivamente definido, uma situação lógica, em correspondência com todas as
suas aspirações, que resolva todas as dificuldades do presente e em que não se
lhe depare coisa alguma que a razão não possa admitir. Se ele se preocupa com o
dia seguinte, é porque a vida do dia seguinte se liga intimamente à vida do dia
anterior; uma e outra são solidárias; ele sabe que do que fizer hoje depende a
sua posição amanhã e que do que fizer amanhã dependerá a sua posição no dia
imediato e assim por diante.
Tal
tem de ser para ele a vida futura, quando esta não mais se achar perdida nas
nebulosidades da abstração e for uma atualidade palpável, complemento
necessário da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são
fases da vida corporal. Quando vir o presente reagir sobre o futuro, pela força
das coisas, e, sobretudo, quando compreender a reação do futuro sobre o
presente; quando, em suma, verificar que o passado, o presente e o futuro se
encadeiam por inflexível necessidade, como o ontem, o hoje e o amanhã na vida
atual, oh! então suas ideias mudarão completamente, porque ele verá na vida
futura não só um fim, como também um meio; não um efeito distante, mas atual.
Então, igualmente, essa crença exercerá sem dúvida, e por uma consequência toda
natural, ação preponderante sobre o estado social e sobre a moralização da Humanidade.
Tal
o ponto de vista donde o Espiritismo nos faz considerar a vida futura.
QUESTÕES E PROBLEMAS
As expiações
coletivas
Questão
– O Espiritismo explica perfeitamente a causa dos sofrimentos individuais, como
consequências imediatas das faltas cometidas na existência precedente, ou como
expiação do passado, mas, uma vez que cada um só é responsável pelas suas
próprias faltas, não se explicam satisfatoriamente as desgraças coletivas que
atingem as aglomerações de indivíduos, às vezes, uma família inteira, toda uma
cidade, toda uma nação, toda uma raça, e que se abatem tanto sobre os bons,
como sobre os maus, assim sobre os inocentes, como sobre os culpados.
Resposta
– Todas as leis que regem o Universo, sejam físicas ou morais, materiais ou
intelectuais, foram descobertas, estudadas, compreendidas, partindo-se do
estudo da individualidade e do da família para o de todo o conjunto,
generalizando-as gradualmente e comprovando-se-lhes a universalidade dos
resultados.
Outro
tanto se verifica hoje com relação às leis que o estudo do Espiritismo dá a
conhecer. Podem aplicar-se, sem medo de errar, as leis que regem o indivíduo à
família, à nação, às raças, ao conjunto dos habitantes dos mundos, os quais
formam individualidades coletivas. Há as faltas do indivíduo, as da família, as
da nação; e cada uma, qualquer que seja o seu caráter, se expia em virtude da
mesma lei. O algoz expia, relativamente à sua vítima, quer indo a encontrar-se
em sua presença no espaço, quer vivendo em contato com ela numa ou em muitas existências
sucessivas, até a reparação do mal praticado. O mesmo sucede quando se trata de
crimes cometidos solidariamente por certo número de pessoas. As expiações
também são solidárias, o que não suprime a expiação simultânea das faltas
individuais.
Três
caracteres há em todo homem: o do indivíduo, do ser em si mesmo; o de membro da
família e, finalmente, o de cidadão. Sob cada uma dessas três faces pode ele
ser criminoso e virtuoso, isto é, pode ser virtuoso como pai de família, ao
mesmo tempo que criminoso como cidadão e reciprocamente. Daí as situações
especiais que para si cria nas suas sucessivas existências.
Salvo
alguma exceção, pode-se admitir como regra geral que todos aqueles que numa
existência vêm a estar reunidos por uma tarefa comum já viveram juntos para
trabalhar com o mesmo objetivo e ainda reunidos se acharão no futuro, até que
hajam atingido a meta, isto é, expiado o passado, ou desempenhado a missão que
aceitaram.
Graças
ao Espiritismo, compreendeis agora a justiça das provações que não decorrem dos
atos da vida presente, porque reconheceis que elas são o resgate das dívidas do
passado. Por que não haveria de ser assim com relação às provas coletivas?
Dizeis que os infortúnios de ordem geral alcançam assim o inocente como o
culpado, mas não sabeis que o inocente de hoje pode ser o culpado de ontem?
Quer ele seja atingido individualmente, quer coletivamente, é que o mereceu.
Depois, como já o dissemos, há as faltas do indivíduo e as do cidadão; a
expiação de umas não isenta da expiação das outras, pois que toda dívida tem
que ser paga até a última moeda. As virtudes da vida privada diferem das da
vida pública. Um, que é excelente cidadão, pode ser péssimo pai de família;
outro, que é bom pai de família, probo e honesto em seus negócios, pode ser mau
cidadão, ter soprado o fogo da discórdia, oprimido o fraco, manchado as mãos em
crimes de lesa-sociedade. Essas faltas coletivas é que são expiadas
coletivamente pelos indivíduos que para elas concorreram, os quais se encontram
de novo reunidos, para sofrerem juntos a pena de talião, ou para terem ensejo
de reparar o mal que praticaram, demonstrando devotamento à causa pública,
socorrendo e assistindo aqueles a quem outrora maltrataram. Assim, o que é
incompreensível, inconciliável com a Justiça de Deus, se torna claro e lógico
mediante o conhecimento dessa lei.
A
solidariedade, portanto, que é o verdadeiro laço social, não o é apenas para o
presente; estende-se ao passado e ao futuro, pois que as mesmas individualidades
se reuniram, reúnem e reunirão, para subir juntas a escala do progresso,
auxiliando-se mutuamente. Eis aí o que o Espiritismo faz compreensível, por
meio da equitativa Lei da Reencarnação e da continuidade das relações entre os
mesmos seres. Clélia Duplantier
Nota
– Conquanto se subordine aos conhecidos princípios de responsabilidade pelo
passado e da continuidade das relações entre os Espíritos, esta comunicação
encerra uma ideia de certo modo nova e de grande importância. A distinção que
estabelece entre a responsabilidade decorrente das faltas individuais ou coletivas,
das da vida privada e da vida pública, explica certos fatos ainda mal conhecidos
e mostra de maneira mais precisa a solidariedade existente entre os seres e
entre as gerações.
Assim,
muitas vezes um indivíduo renasce na mesma família, ou, pelo menos, os membros
de uma família renascem juntos para constituir uma família nova noutra posição
social, a fim de apertarem os laços de afeição entre si, ou reparar agravos
recíprocos. Por considerações de ordem mais geral, a criatura renasce no mesmo
meio, na mesma nação, na mesma raça, quer por simpatia, quer para continuar,
com os elementos já elaborados, estudos começados, para se aperfeiçoar,
prosseguir trabalhos encetados e que a brevidade da vida não lhe permitiu
acabar. A reencarnação no mesmo meio é a causa determinante do caráter
distintivo dos povos e das raças. Embora melhorando-se, os indivíduos conservam
o matiz primário, até que o progresso os haja completamente transformado.
Os
franceses de hoje são, pois, os do século passado, os da Idade Média, os dos tempos
druídicos; são os exatores e as vítimas do feudalismo; os que submeteram outros
povos e os que trabalharam pela emancipação deles, que se encontram na França
transformada, onde uns expiam, na humilhação, o seu orgulho de raça e onde
outros gozam o fruto de seus labores. Quando se consideram todos os crimes
desses tempos em que a vida dos homens e a honra das famílias em nenhuma conta
eram tidas, em que o fanatismo acendia fogueiras em honra da divindade; quando se
pensa em todos os abusos de poder, em todas as injustiças que se cometiam com
desprezo dos mais sagrados direitos, quem pode estar certo de não haver
participado mais ou menos de tudo isso e admirar-se de assistir a grandes e terríveis
expiações coletivas?
Mas
dessas convulsões sociais uma melhora sempre resulta; os Espíritos se
esclarecem pela experiência; o infortúnio é o estimulante que os impele a
procurar um remédio para o mal; na erraticidade, refletem, tomam novas
resoluções e, quando voltam, fazem coisa melhor. É assim que, de geração em
geração, o progresso se efetua.
Não
se pode duvidar de que haja famílias, cidades, nações, raças culpadas, porque, dominadas
por instintos de orgulho, de egoísmo, de ambição, de cupidez, enveredam por mau
caminho e fazem coletivamente o que um indivíduo faz insuladamente. Uma família
se enriquece à custa de outra; um povo subjuga outro povo, levando-lhe a
desolação e a ruína; uma raça se esforça por aniquilar outra raça. Essa a razão
por que há famílias, povos e raças sobre os quais desce a pena de talião. “Quem
matou com a espada perecerá pela espada” são palavras do Cristo, palavras que
se podem traduzir assim: Aquele que fez correr sangue verá o seu também derramado;
aquele que levou o facho do incêndio ao que era de outrem, verá o incêndio
ateado no que lhe pertence; aquele que despojou será despojado; aquele que
escraviza e maltrata o fraco será a seu turno escravizado e maltratado, quer se
trate de um indivíduo, quer de uma nação, ou de uma raça, porque os membros de
uma individualidade coletiva são solidários assim no bem como no mal que em comum
praticaram.
Ao
passo que o Espiritismo dilata o campo da solidariedade, o materialismo o restringe
às mesquinhas proporções da efêmera existência do homem, fazendo da mesma
solidariedade um dever social sem raízes, sem outra sanção além da boa vontade
e do interesse pessoal do momento. É uma simples teoria, simples máxima
filosófica, cuja prática nada há que a imponha. Para o Espiritismo, a
solidariedade é um fato que assenta numa Lei Universal da Natureza, que liga
todos os seres do passado, do presente e do futuro e a cujas consequências
ninguém pode subtrair-se. É esta uma coisa que todo homem pode compreender, por
menos instruído que seja.
Quando
todos os homens compreenderem o Espiritismo, compreenderão também a verdadeira
solidariedade e, conseguintemente, a verdadeira fraternidade. Uma e outra então
deixarão de ser simples deveres circunstanciais, que cada um prega as mais das
vezes no seu próprio interesse, e não no de outrem. O reinado da solidariedade
e da fraternidade será forçosamente o da justiça para todos e o da justiça será
o da paz e da harmonia entre os indivíduos, as famílias, os povos e as raças.
Virá esse reinado? Duvidar do seu advento seria negar o progresso. Se
compararmos a sociedade atual, nas nações civilizadas, com o que era na Idade
Média, reconheceremos grande a diferença. Ora, se os homens avançaram até aqui,
por que haveriam de parar? Observando-se o percurso que eles hão feito apenas
de um século para cá, poder-se-á avaliar o que farão daqui a mais outro século.
As
convulsões sociais são revoltas dos Espíritos encarnados contra o mal que os acicata,
índice de suas aspirações a esse Reino de Justiça pelo qual anseiam, sem, todavia,
se aperceberem claramente do que querem e dos meios de consegui-lo. Por isso é
que se movimentam, agitam, tudo subvertem a torto e a direito, criam sistemas,
propõem remédios mais ou menos utópicos, cometem mesmo injustiças sem conta,
por espírito, ao que dizem, de justiça, esperando que desse movimento saia,
porventura, alguma coisa. Mais tarde, definirão melhor suas aspirações e o caminho
se lhes aclarará.
Quem
quer que desça ao âmago dos princípios do Espiritismo filosófico, que considere
os horizontes que ele desvenda, as ideias a que dá origem e os sentimentos que
desenvolve, não duvidará da parte preponderante que há de ter na regeneração,
pois que, precisamente e pela força das coisas, ele conduz ao objetivo a que a
Humanidade aspira: ao reino da justiça, pela extinção dos abusos que lhe hão
obstado ao progresso e pela moralização das massas. Se os que sonham com a
restauração do passado não entendessem assim, não se aferrariam tanto a esse sonho;
deixá-lo-iam morrer tranquilamente, como há sucedido a muitas utopias. Isto,
por si só, devera dar que pensar a certos zombadores, fazendo-os ponderar que
talvez haja aí alguma coisa mais séria do que imaginam. Mas há pessoas que de
tudo riem, que ririam mesmo de Deus, se o vissem na Terra. Também há os que têm
medo de que aos seus olhos se apresente a alma que se obstinam em negar.
Qualquer
que seja a influência que um dia o Espiritismo chegue a exercer sobre as
sociedades, não se suponha que ele venha a substituir uma aristocracia por outra,
nem a impor leis; primeiramente, porque, proclamando o direito absoluto à
liberdade de consciência e do livre-exame em matéria de fé, quer, como crença, ser
livremente aceito, por convicção, e não por meio de constrangimento. Pela sua natureza,
não pode, nem deve exercer nenhuma pressão. Proscrevendo a fé cega, quer ser
compreendido. Para ele, absolutamente não há mistérios, mas uma fé racional,
que se baseia em fatos e que deseja a luz. Não repudia nenhuma descoberta da
Ciência, dado que a Ciência é a coletânea das Leis da Natureza e que, sendo de Deus
essas leis, repudiar a Ciência fora repudiar a obra de Deus.
Em
segundo lugar, estando a ação do Espiritismo no seu poder moralizador, não pode
ele assumir nenhuma forma autocrática, porque então faria o que condena. Sua
influência será preponderante, pelas modificações que trará às ideias, às
opiniões, aos caracteres, aos costumes dos homens e às relações sociais. E
maior será essa influência, pela circunstância de não ser imposta. Forte como
filosofia, o Espiritismo só teria que perder, neste século de raciocínio, se se
transformasse em poder temporal. Não será ele, portanto, que fará as instituições
do mundo regenerado; os homens é que as farão, sob o império das ideias de
justiça, de caridade, de fraternidade e de solidariedade, mais bem compreendidas,
graças ao Espiritismo.
Essencialmente
positivo em suas crenças, ele repele todo misticismo, desde que não se estenda
esta denominação, como o fazem os que em nada creem, à crença em Deus, na alma
e na vida futura. Induz, é certo, os homens a se ocuparem seriamente com a vida
espiritual, mas porque essa é a vida normal, sendo nela que se têm de cumprir
os nossos destinos, pois que a vida terrestre é transitória, passageira. Pelas
provas que apresenta da realidade da vida espiritual, ensina aos homens a não
atribuírem mais que relativa importância às coisas deste mundo, dando-lhes
assim força e coragem para suportar com paciência as vicissitudes da vida
terrena. Ensina-lhes que, morrendo, não deixam para sempre este mundo; que
podem a ele voltar, a fim de aperfeiçoarem sua educação intelectual e moral, a
menos que já estejam bastante adiantados para merecerem passar a um mundo
melhor; que os trabalhos e progressos que realizem, ou para cuja realização contribuam,
lhes aproveitarão, concorrendo para que melhorada se lhes torne a posição
futura. Mostra-lhes dessa forma que é de todo o interesse deles não o desprezarem.
Se lhes repugna voltar aqui, uma vez que possuem o livre-arbítrio, deles
depende o fazerem o que é necessário a se tornarem habitantes de outros orbes,
mas que não se iludam sobre as condições que devem preencher para merecerem uma
mudança de residência! Não será por meio de algumas fórmulas, expressas em
palavras ou atos, que o conseguirão, sim por efeito de uma reforma séria e radical
de suas imperfeições, modificando-se, despojando-se das paixões más, adquirindo
dia a dia novas qualidades, ensinando a todos, pelo exemplo, a linha de
proceder que levará solidariamente todos os homens à ventura, pela fraternidade,
pela tolerância, pelo amor.
A
Humanidade se compõe de personalidades, que constituem as existências
individuais, e das gerações, que constituem as existências coletivas. Umas e
outras avançam na senda do progresso, por variadas fases de provações que,
portanto, são individuais para as pessoas e coletivas para as gerações. Do
mesmo modo que, para o encarnado, cada existência é um passo à frente, cada
geração marca um grau de progresso para o conjunto. É irresistível esse
progresso do conjunto e arrasta as massas, ao mesmo tempo que modifica e
transforma em instrumento de regeneração os erros e prejuízos de um passado que
tem de desaparecer. Ora, como as gerações se compõem dos indivíduos que já
viveram nas gerações precedentes, segue-se que o progresso delas é a resultante
do progresso dos indivíduos.
Mas
quem demonstrará, poderão dizer, a existência de solidariedade entre a geração
atual e as que a precederam, ou entre ela e as que lhe sucederão? Como se poderia
provar que eu já vivi na Idade Média, por exemplo, e que voltarei a tomar parte
nos acontecimentos que se produzirão na sucessão dos tempos?
Nas
obras fundamentais da Doutrina e na Revista, o princípio da pluralidade das existências
já foi exaustivamente demonstrado, para que ainda nos detivéssemos aqui a
demonstrá-lo. Nos fatos da vida cotidiana fervilham provas e uma demonstração
quase matemática. Limitamo-nos, pois, a concitar os pensadores a que atentem
nas provas morais que decorrem do raciocínio e da indução.
Será,
porventura, necessário vejamos uma coisa, para que nela acreditemos? Observando
efeitos, não se pode adquirir a certeza material da causa?
Afora
a da experiência, a única senda legítima que se abre para essa investigação
consiste em remontar do efeito à causa. A justiça nos oferece notabilíssimo exemplo
desse princípio, quando empreende descobrir os indícios dos meios que serviram
à perpetração de um crime, as intenções que se agregam à culpabilidade do
malfeitor. Este não foi apanhado em flagrante e, contudo, é condenado por esses
indícios.
A
Ciência, que pretende caminhar tão só pela via da experiência, afirma todos os dias
princípios que mais não são do que induções das causas por meio unicamente da
observação dos efeitos.
Em
Geologia, determina-se a idade das montanhas. Porventura assistiram os geólogos
ao surto delas? Viram formar-se as camadas de sedimento que lhes determinam a
idade? Os conhecimentos astronômicos, físicos e químicos permitem se avaliem o
peso dos planetas, suas densidades, seus volumes, a velocidade que os anima, a
natureza dos elementos que os compõem; entretanto, os sábios não fizeram
experiências diretas e é à analogia e à indução que devemos tão belas e
preciosas descobertas.
Os
homens de antanho, baseados nos testemunhos de seus sentidos, afirmavam ser o
Sol que gira em torno da Terra. No entanto, esse testemunho os enganava e prevaleceu
o raciocínio.
O
mesmo se dará com os princípios que o Espiritismo sustenta, desde que se disponham
a estudá-los, sem prevenções, e, então, a Humanidade entrará, real e rapidamente,
numa era de progresso e de regeneração, porque, já não se sentindo isolados
entre dois abismos, o desconhecido do passado e a incerteza do porvir, os indivíduos
trabalharão com energia por aperfeiçoar e multiplicar os elementos da felicidade
que tem de ser obra deles, porque reconhecerão que não é devida ao acaso a
posição que ocupam no mundo e que eles próprios gozarão, no futuro e em melhores
condições, do fruto de seus labores e de suas vigílias. É que o Espiritismo lhes
ensinará que, se as faltas coletivamente cometidas são expiadas solidariamente,
os progressos realizados em comum são igualmente solidários, princípio em virtude
do qual desaparecerão as dissensões de raças, de famílias e de indivíduos e a
Humanidade, livre das faixas da infância, avançará célere e virilmente, para a conquista
de seus verdadeiros destinos.
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