PEQUENA CONFERÊNCIA
ESPÍRITA
PRIMEIRO DIÁLOGO – O
CRÍTICO
Visitante
— Confesso-vos, caro senhor, que a minha razão recusa admitir a realidade dos
fenômenos estranhos atribuídos aos Espíritos, persuadido que estou de estes não
terem senão uma existência imaginária. Entretanto, eu me curvaria diante da
evidência, se disso tivesse provas incontestáveis; por isso desejo merecer-vos
a permissão de assistir somente a uma ou duas experiências, para não ser
indiscreto, a fim de convencer-me, caso seja possível.
Allan
Kardec — Desde que a vossa razão repele o que nós consideramos irrecusável, vós
a credes superior às de todos quantos não compartilham de vossas opiniões. Longe
de mim o pensamento de duvidar do vosso talento e a pretensão de supor minha
inteligência superior à vossa; admiti, pois, que eu esteja iludido, é a vossa
razão quem vo-lo diz: e não falemos mais nisso.
V. —
Entretanto, se conseguísseis convencer-me, conhecido que sou como antagonista
das vossas ideias, isto seria um milagre eminentemente favorável à causa que
defendeis.
A.
K. — Lamento-o, caro senhor, porém não tenho o dom de fazer milagres. Julgais
que uma ou duas sessões bastariam para adquirirdes convicção? Seria, realmente,
um verdadeiro prodígio; eu precisei mais de um ano de trabalho para ficar
convencido; o que prova que não cheguei a esse estado inconsideradamente. Além
disso, não realizo sessões públicas e parece-me que vos enganastes sobre o fim
das nossas reuniões, visto não fazermos experiências com o fito de satisfazer à
curiosidade de ninguém.
V. —
Não procurais, pois, fazer prosélitos?
A. K. — Para que buscarmos fazer-vos prosélito, quando não o quereis ser? Não pretendo forçar convicção alguma. Quando encontro pessoas que sinceramente desejam instruir-se e dão-me a honra de pedir-me esclarecimentos, folgo e cumpro um dever respondendo-lhes nos limites dos meus conhecimentos; quanto aos antagonistas, porém, que, como vós, têm convicções arraigadas, não tento um passo para delas arredá-los, atento a que é grande o número dos que se mostram bem-dispostos, para que possamos perder o nosso tempo com aqueles que o não estão. Estou certo de que, diante dos fatos, a convicção há de vir, mais tarde ou mais cedo, e que os incrédulos hão de ser arrastados pela torrente; por ora, alguns partidários, de mais ou de menos, nada alteram na pesagem; pelo que nunca me vereis incomodado para atrair, às nossas ideias, aqueles que, como vós, sabem as razões que têm para fugir delas.
V. —
Há mais interesse em convencer-me do que o supondes. Permitis que me explique
com franqueza e prometeis-me não ver ofensa alguma nas minhas palavras? São as
minhas ideias sobre a coisa em si, e não sobre a pessoa a quem me dirijo; posso
respeitar a pessoa, sem participar de suas opiniões.
A.
K. — O Espiritismo me tem ensinado a desprezar essas mesquinhas
suscetibilidades do amor-próprio, e a me não ofender com palavras. Se as vossas
expressões saírem dos limites da urbanidade e das conveniências, apenas
concluirei que sois um homem mal-educado, mas não irei além. Quanto a mim,
antes quero que os outros fiquem com os defeitos, do que compartilhar deles. Vedes,
só por isso, que o Espiritismo já serve para alguma coisa.
Já
vos disse, senhor, não tenho a pretensão de vos fazer adotar a minha opinião;
respeito a vossa, se é sincera, como desejo que respeiteis a minha. Acreditando
ser o Espiritismo um sonho sem sentido, dissestes, sem dúvida, vindo a minha
casa: Vou ver um louco. Confessai-o francamente, pois com isso não me
escandalizarei. Todos os espíritas são loucos, é coisa sabida. Pois bem! se
julgais assim, eu tenho escrúpulo de transmitir-vos a minha enfermidade mental;
e causa-me espanto ver-vos, com tal pensamento, buscar uma convicção que vos
vai colocar no número dos loucos. Se já estais persuadido de que não
conseguiremos convencer-vos, o passo que destes é inútil, visto que só terá por
fim a curiosidade. Abreviemos, pois, por favor, porque me falta tempo para
perder em conversações sem objeto.
V. —
O homem pode enganar-se, deixar-se iludir, sem que, por isso, seja louco.
A.
K. — Dizei logo: acreditais, como muitos, que isto é moda que durará certo
tempo, mas deveis convir que um passatempo que, em alguns anos, tem conquistado
milhões de partidários, em todos os países, que conta entre seus adeptos sábios
de toda ordem, que se propaga de preferência nas classes mais esclarecidas, é
mania singular, que merece examinada.
V. —
Tenho minhas ideias a respeito, é certo, porém elas não se acham tão
absolutamente firmadas, que não consinta em sacrificá-las à evidência. Disse-vos
que teríeis certo interesse em me convencer. Confesso-vos que tenciono publicar
um livro em que me proponho demonstrar ex professo14 a minha opinião sobre o
que considero um erro; e como esse livro deve produzir efeito, dando um golpe
no Espiritismo, eu deixaria de publicá-lo, caso ficasse convencido da realidade
da vossa Doutrina.
A.
K. — Eu sentiria que ficásseis privado do que vos pode proporcionar um livro
que deve produzir tanto efeito; além disso, não tenho interesse algum em
impedir a sua publicação: ao contrário, desejo-lhe grande circulação, porque
assim ele nos servirá de prospecto e anúncio. A nossa atenção é sempre chamada
sobre aquilo que vemos atacado; há muita gente que quer ver os prós e os
contras, e a crítica faz aparecer a verdade, mesmo aos olhos daqueles que não a
procuravam aí; é assim que muitas vezes, sem querer, se faz reclamo do que se
quer combater.
14
N.E.: Com verdadeiro conhecimento de causa; magistralmente.
A
questão dos Espíritos é, por outro lado, tão palpitante de interesse, choca a
tal ponto a curiosidade, que basta assinalá-la à atenção, para que nasça o
desejo de aprofundá-la.15
V. —
Então, no vosso entender, a crítica para nada serve, a opinião pública nada
vale?
A.
K. — Não considero a crítica como expressão da opinião pública, mas como juízo
individual, que bem pode enganar-se. Lede a história e vereis quantos trabalhos
importantes foram, ao aparecer, criticados, sem que isso os excluísse do número
das grandes obras; quando, porém, uma coisa é má, não há elogio que a torne
boa. Se o Espiritismo é uma falsidade, ele cairá por si mesmo; se, porém, é uma
verdade, não há diatribe que possa fazer dele uma mentira. Ao nosso modo de
ver, vosso livro não será mais que uma apreciação pessoal; a verdadeira opinião
pública decidirá da justeza dos vossos conceitos. Procurarão examinar. Se mais
tarde reconhecerem que vos enganastes, vosso livro se tornará ridículo, como os
que, não há muito, foram publicados contra as teorias da circulação do sangue,
da vacina etc.
Esquecia-me,
porém, que íeis tratar a questão ex professo, o que equivale a dizer que a
estudastes sob todas as suas faces; que vistes tudo o que se pode ver, lestes
tudo o que sobre a matéria se tem escrito, analisastes e comparastes as diversas
opiniões; que vos achastes nas melhores condições de observação pessoal; que
durante anos lhe consagrastes vigílias; em suma: que nada desprezastes para
chegar à verdade. Devo crer que tal se deu, se sois um homem sério, porque
somente aquele que fez tudo isso pode dizer que fala com conhecimento de causa.
Que
juízo formaríeis de um homem que, sem conhecimento de literatura, sem ter
estudado a pintura, se erigisse em censor de uma obra literária ou de um
quadro? É de lógica elementar que o crítico conheça, não superficialmente, mas,
a fundo, aquilo de que fala, sem o quê, sua opinião não tem valor. Para
combater um cálculo é necessário opor-se-lhe outro cálculo, o que exige saber
calcular. O crítico não se deve limitar a dizer que tal coisa é boa ou má; é
preciso que justifique a opinião por uma demonstração clara e
15
Nota de Allan Kardec: Desde esta entrevista, escrita em 1859, a experiência
veio demonstrar o pleno acerto desta proposição.
categórica,
baseada sobre os princípios da arte ou ciência a que pertence o objeto da
crítica. Como poderá fazê-lo, quando não conhecer esses princípios? Não tendo
ideia da mecânica, podereis apreciar as qualidades, ou os defeitos de
determinada máquina? Não. Pois bem: o vosso juízo acerca do Espiritismo, que
aliás não conheceis, não pode ter mais valor que o que, nas condições acima, emitísseis
sobre a aludida máquina. A cada passo sereis apanhado em flagrante delito de
ignorância, porque aqueles que têm estudado a matéria verão logo que a
desconheceis; donde concluirão que não sois um homem sério ou que agis de
má-fé; expondo-vos, portanto, a receber, quer num, quer noutro caso, desmentido
pouco lisonjeiro ao vosso amor-próprio.
V. —
É precisamente para evitar esse perigo que vim pedir-vos permissão para
assistir a algumas experiências.
A.
K. — E julgais que isto vos baste para poder, ex professo, falar de Espiritismo?
Como podereis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando
não estudastes os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado,
satisfatório ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a
fundo a metalurgia? Permiti-me dizer-vos, senhor, que vosso projeto é
absolutamente a mesma coisa que, não tendo estudado a Matemática, nem a
Astronomia, vos apresentásseis a um dos membros do Observatório, dizendo-lhe: “Senhor,
quero escrever um livro sobre Astronomia e provar que o vosso sistema é falso,
mas como desconheço os menores rudimentos dessa ciência, deixai que, por uma ou
duas vezes, me sirva de vossa luneta; o que será suficiente para ficar sabendo
tanto quanto vós.”
É
somente por extensão que a palavra criticar se tornou sinônima de censurar; em
sua acepção própria e segundo a etimologia, ela significa julgar, apreciar. A
crítica pode, pois, ser aprobativa ou desaprobativa. Fazer a crítica de um
livro não é necessariamente condená-lo; quem empreende essa tarefa, deve
fazê-lo sem ideias preconcebidas; porém, se antes de abrir o livro, já o
condena em pensamento, o exame não pode ser imparcial.
Tal
o caso da maioria dos que têm falado contra o Espiritismo. Apenas sobre o nome
formaram uma opinião, fazendo qual juiz que proferisse uma sentença, sem antes
examinar as peças do processo. A consequência foi que seu julgamento feriu em
falso, e que, em vez de persuadir, ocasionaram riso. A maior parte dos que
seriamente têm estudado a questão, mudou de ideia, e mais de um adversário se
tem tornado adepto do Espiritismo, quando reconhece que o seu objetivo é muito
diverso daquele que supunha.
V. —
Falais do exame dos livros em geral; acreditais que seja materialmente possível
a um jornalista ler e estudar todos os que lhe passam pelas mãos, sobretudo
quando se ocupam com teorias novas, que lhe seria preciso aprofundar e
verificar? Seria o mesmo que exigir de um impressor que ele lesse todas as obras
saídas de sua prensa.
A.
K. — A tão judicioso raciocínio não tenho outra resposta a dar senão que,
quando nos falta o tempo para fazer conscienciosamente uma coisa, é melhor não
fazê-la; é preferível produzir um só trabalho bom a fazer dez maus.
V. —
Não acrediteis que minha opinião se tenha formado levianamente. Vi mesas
girarem e produzirem sons como de pancadas; vi pessoas escreverem o que,
segundo diziam, lhes ditavam os Espíritos; estou, porém, convencido de que
nisso há charlatanismo.
A.
K. — Quanto vos cobraram para mostrar-vos essas coisas?
V. —
Nada, por certo.
A.
K. — Ora, aí tendes charlatães de uma espécie singular, que vão reabilitar o
nome da sua classe. Até o presente não se tinha ainda visto charlatães
desinteressados. Suponhamos que um gaiato de mau gosto tenha querido uma vez divertir-se
assim; será crível que as outras pessoas presentes pactuassem com ele? Ademais,
com que fim se fariam elas cúmplices de uma mistificação? Direis que com o fim
de recrear a sociedade... Concordo em que uma vez se prestassem a tal
brinquedo; porém, quando esse brinquedo dura meses e anos, julgo que o
mistificado é o próprio mistificador. Não é provável que, só pelo gosto de
fazer que creiam em uma coisa que ele sabe ser falsa, alguém vá passar horas
inteiras, imóvel, agarrado a uma mesa. O gosto não equivaleria à pena.
Antes
de julgar isso uma fraude, é preciso indagar que interesse havia em enganar;
ora, não deixareis de convir que há pessoas que se não coadunam com a mais leve
suspeita de embuste; pessoas cujo caráter já é uma garantia de probidade.
Coisa
muito diversa seria se se tratasse de uma especulação, porque a tentação do
ganho é má conselheira, mas admitindo mesmo que, neste último caso, ficasse bem
comprovado um manejo fraudulento, isso em nada ofenderia a realidade do
princípio, porque de tudo se pode abusar. Por vender-se vinho falsificado, não
se deve concluir que não existe vinho puro.
O
Espiritismo não é mais responsável pelos atos daqueles que abusam desse nome e
o exploram, do que o é a ciência médica pelos atos dos charlatães que impingem
suas drogas, ou a Religião pelos dos sacerdotes que iludem seu ministério.
Por
sua novidade e mesmo por sua natureza, o Espiritismo se presta a abusos; ele,
porém, fornece os meios para que os reconheçam, definindo claramente seu
verdadeiro caráter e afastando de si toda a solidariedade com aqueles que o
viriam a explorar ou desviar do seu fim exclusivamente moral, para
transformá-lo em meio de vida, em instrumento de adivinhação ou de
investigações fúteis. Desde que o Espiritismo mesmo traça os limites em que se
encerra, define o que pode ou não dizer ou fazer, o que está ou não em suas
atribuições, o que aceita e o que repudia, toda a falta recai sobre aqueles
que, não se dando ao trabalho de estudá-lo, o julgam pelas aparências e que, por
terem encontrado saltimbancos adornando-se sob o nome de espíritas, para chamar
concorrência, dizem com gravidade: eis o que é o Espiritismo. Sobre quem, em
definitivo, cairá o ridículo? Será sobre o saltimbanco que usa do seu ofício?
Será sobre o Espiritismo, cuja doutrina escrita desmente tais asserções? Ou,
antes, sobre os críticos que falam do que não sabem ou de, cientemente,
alterarem a verdade? Aqueles que atribuem ao Espiritismo o que é contrário à
sua mesma ciência, fazem-no por ignorância ou má intenção; no primeiro caso há leviandade,
no segundo, má-fé. E, neste último caso, eles se colocam na posição do
historiador que, no interesse de sustentar um partido ou uma opinião, alterasse
os fatos históricos. Quando usa desses meios, o partido fica desacreditado e
não consegue o seu fim.
Notai
bem, cavalheiro, que eu não pretendo que a crítica deve necessariamente aprovar
nossas ideias, mesmo depois de as haver estudado; não nos revoltamos de forma
alguma contra os que não pensam como nós. O que é evidente, para nós, pode não
ser para vós outros; cada qual julga as coisas debaixo de certo ponto de vista,
e do fato mais positivo nem todos tiram as mesmas consequências. Se um pintor,
por exemplo, pinta em seu quadro um cavalo branco, não faltará quem diga que
essa cor faz aí mau efeito, que a cor negra conviria mais, e nisto não se
comete erro; cometer-se-á, porém, se, vendo que o cavalo é branco, afirmar que
é negro; é o que faz a maioria dos nossos adversários.
Em
resumo, senhor, todos têm completa liberdade de aprovar ou censurar os
princípios do Espiritismo, de deduzir deles as consequências boas ou más que
lhes aprouver, porém a consciência impõe ao crítico a obrigação de não dizer o
contrário do que ele sabe que é; ora, para isso, a primeira condição é não
falar do que não conhece.
V. —
Voltemos, por favor, às mesas que se movem e falam; não será possível que elas
sejam preparadas com algum artifício?
A.
K. — É sempre a mesma questão de boa-fé, a que já respondi. Quando a fraude for
provada, eu vo-la reconhecerei; se descobrirdes fatos demonstrados de embuste,
charlatanismo, especulação ou abuso de confiança, fustigai-os e eu desde já vos
declaro que não irei defendê-los, porque o Espiritismo sério é o primeiro a
repudiá-los; e quem assinalar tais abusos o auxilia no trabalho de preveni-los
e lhe presta importante serviço. Porém, generalizar essas acusações, lançar
sobre elevado número de pessoas honradas a reprovação que só cabe a alguns
indivíduos isolados, é um abuso de outro gênero, porque é uma calúnia.
Admitindo,
como dissestes, que as mesas estivessem preparadas, era preciso que o mecanismo
empregado fosse bem engenhoso para fazê-las produzir movimentos e sons tão
variados. Ora, como não é ainda conhecido o nome do hábil artista que os
fabrica? Entretanto, ele deveria gozar de grande celebridade, visto que seus
aparelhos estão espalhados pelas cinco partes do mundo. Devemos também convir
que o seu processo é assaz delicado e sutil, para poder adaptar-se à primeira
mesa que se apresenta, sem deixar sinal algum exterior que o denuncie. Como é
que, desde Tertuliano, que já tratava das mesas giratórias e falantes, até o
presente ninguém conseguiu ver e descrever tal mecanismo?
V. —
Eis o que vos ilude. Um célebre cirurgião reconheceu que certas pessoas podem,
pela contração de um músculo da perna, produzir um ruído semelhante ao que
atribuís à mesa; donde concluiu que os médiuns se divertem à custa da
credulidade dos assistentes.
A.
K. — Se é um estalido do músculo, não é então a mesa que está preparada. Uma
vez que cada qual explica a seu modo essa pretendida fraude, fica reconhecido
que a verdadeira causa não é sabida.
Respeito
a ciência desse sábio cirurgião, e somente acho que se apresentam algumas
dificuldades na aplicação, às mesas falantes, da teoria indicada. A primeira é
que é singular que essa faculdade, até o presente excepcional e olhada como um
caso patológico, se tenha tornado comum; a segunda, que é preciso ter-se
robustíssima vontade de mistificar, para fazer estalar o músculo durante duas
ou três horas consecutivas, quando disso não resulte a quem assim procede senão
fadiga e dor; a terceira, que eu não compreendo bem como pode esse músculo
responder às portas e paredes em que as pancadas se fazem ouvir; a quarta,
finalmente, que é necessário dar-se a esse músculo estalador uma propriedade
bem maravilhosa, para que ele possa mover uma pesada mesa, levantá-la, abri-la,
fechá-la, conservá-la suspensa sem ponto de apoio, e, finalmente, fazê-la
despedaçar-se ao cair. Ninguém, por certo, desconfiava que esse músculo
possuísse tanta virtude (Ver Revista espírita, junho de 1859, O músculo
estalante.)
O
célebre cirurgião, de que falais, teria estudado o fenômeno da tiptologia sobre
os indivíduos que os produzem? Não; ele observou um efeito fisiológico anormal
em alguns indivíduos que nunca se ocuparam de mesas batedoras; e, notando certa
analogia entre esse efeito e o que essas mesas produzem, sem mais amplo exame
concluiu, com toda a autoridade de sua ciência, que todos os que concorrem,
para que as mesas falem, devem ter a propriedade de fazer estalar o músculo
curto-perônio, e não são mais que embusteiros, sejam eles príncipes ou
artífices, recebam ou não um pagamento. Estudou ele, ao menos, o fenômeno da
tiptologia em todas as suas fases? Verificou, por meio desse estalido muscular,
se podia produzir todos os efeitos tiptológicos? Não; porque, do contrário, ele
ficaria convencido da insuficiência do seu processo; apesar disso, julgou-se no
caso de proclamar a sua descoberta, em pleno Instituto. Não será esse juízo
assaz comprometedor para um sábio? Quem pensa hoje nessa opinião?
Confesso-vos
que, se me tivesse de sujeitar a uma operação cirúrgica, hesitaria muito em
confiar-me a esse médico, porque recearia que ele não julgasse o meu mal com
mais perspicácia. Já que esse juízo é uma das autoridades em que pareceis
querer apoiar-vos para esmagar o Espiritismo, fico completamente inteirado da força
dos outros argumentos que quereis validar, a menos que os não vades beber em
fontes mais autênticas.
V. —
Entretanto, bem vedes que já passou a moda das mesas girantes que durante certo
tempo fizeram furor; hoje já ninguém se ocupa com elas. Por que se dá isso,
quando é uma coisa séria?
A.
K. — Porque das mesas girantes saiu uma coisa ainda mais séria: uma ciência
completa, uma perfeita doutrina filosófica, do máximo interesse para os homens
que refletem. Quando estes nada mais tiveram a aprender no giro das mesas, não
mais com elas se ocuparam. Para as pessoas fúteis, que nada querem aprofundar,
esse fenômeno era um passatempo, um divertimento que abandonaram quando dele se
aborreceram; são pessoas com as quais a ciência não conta. O período de
curiosidade teve seu tempo; sucedeu-lhe o da observação. O Espiritismo entrou,
então, no domínio da gente séria, que não o toma como objeto de divertimento,
mas sim como meio de instruir-se. Porém, essas pessoas que o consideram como
coisa grave, não se prestam a qualquer experiência de curiosidade, e ainda
menos a satisfazer a daqueles que se apresentam com pensamentos hostis; como
não brincam, não se prestam a servir de brinquedo para os outros; eu pertenço a
esse número.
V. —
No entanto, somente a experiência pode convencer, mesmo aquele que, em começo,
seja movido pela curiosidade. Se só trabalhais na presença de pessoas
convictas, deixai que vos diga: ensinais a quem já sabe.
A.
K. — Uma coisa é estar convencido e outra estar disposto a convencer-se; é aos
desta última classe que me dirijo, e não aos que julgam humilhação vir escutar
o que eles chamam ilusões. Com estes eu não me ocupo, absolutamente. Quanto aos
que manifestam sincero desejo de esclarecer-se, o melhor modo que têm, para
prová-lo, é mostrar perseverança; são reconhecidos por outros sinais que não
apenas o desejo de ver uma ou duas experiências: esses querem trabalhar
seriamente.
A
convicção só se adquire com o tempo, por meio de uma série de observações
feitas com cuidado todo particular. Os fenômenos espíritas diferem
essencialmente dos das ciências exatas: não se produzem à vontade; é preciso
que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se
descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando
não se está familiarizado com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda
mais quando se vem com o espírito prevenido. As provas abundam para o
observador assíduo e refletido: uma palavra, um fato aparentemente
insignificante, é para ele um raio de luz, uma confirmação; ao passo que tais
fatos não têm sentido para quem os observa superficialmente ou por simples
curiosidade; eis por que não me presto a fazer experiências sem resultado
provável.
V. —
Enfim, tudo deve ter começo. O aprendiz, que nada sabe, que nada viu ainda, mas
que deseja esclarecer-se, como poderá fazê-lo, quando não lhe facultais os
meios para isso?
A.
K. — Eu faço grande distinção entre o incrédulo por ignorância e o incrédulo
por sistema; quando descubro alguém com disposições favoráveis, nada me custa
esclarecê-lo; há, porém, pessoas em quem a vontade de instruir-se não é senão
aparente; com estas perde-se o tempo; porque, se elas não encontram logo o que
parecem buscar, e que talvez as incomodasse, se aparecesse, o pouco que veem
não é suficiente para lhes destruir as prevenções; julgam mal os resultados
obtidos e os transformam em objeto de zombaria, pelo que não há utilidade em
lhos fornecer.
A
quem deseja instruir-se, direi: “Não se pode fazer um curso de Espiritismo
experimental como se faz um de Física ou de Química, atento que nunca se é
senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências
desses agentes fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões.
Aqueles que acidentalmente poderíeis ver, não apresentando nexo algum, nem
ligação necessária, seriam pouco inteligíveis para vós. “Instruí-vos
primeiramente pela teoria, lede e meditai as obras que tratam dessa ciência;
nelas aprendereis os princípios, encontrareis a descrição de todos os
fenômenos, compreendereis a possibilidade deles pela explicação que elas vos
darão, e, pela narrativa de grande número de fatos espontâneos de que pudestes
ser testemunha sem os compreender, mas que vos voltarão à memória, vós vos
fortificareis contra todas as dificuldades que possam surgir e formareis, desse
modo, uma primeira convicção moral. “Então, quando se vos apresentar a ocasião
de observar ou operar pessoalmente, compreendereis, qualquer que seja a ordem
em que os fatos se mostrem, porque nada vereis de estranho.”
Eis,
meu caro senhor, o que aconselho a todos que dizem querer instruir-se, e, pela
resposta que dão, é fácil conhecer se neles há alguma coisa mais que
curiosidade!
SEGUNDO DIÁLOGO – O
CÉTICO
V. —
Compreendo, cavalheiro, a utilidade do estudo preliminar de que acabais de
falar. Como predisposição pessoal, dir-vos-ei que não sou a favor nem contra o
Espiritismo, porém que esse assunto me excita o interesse no mais alto grau. Entre
as pessoas de meu conhecimento, há partidários e adversários dele; a seu
respeito tenho ouvido argumentos muito contraditórios, e propunha-me
submeter-vos algumas das objeções que foram feitas em minha presença e que me
parecem de certo valor, para mim ao menos, que vos confesso a minha ignorância
a respeito.
A.
K. — Terei grande satisfação, meu amigo, em responder às perguntas que me
quiserdes dirigir, sempre que forem feitas com sinceridade e sem pensamento
oculto; não tenho a pretensão, entretanto, de poder responder a todas.
O
Espiritismo é uma ciência que acaba de nascer e da qual resta ainda muito a
aprender; seria, pois, grande presunção de minha parte pretender levar de
vencida todas as dificuldades; não poderei dizer mais do que sei. O Espiritismo
prende-se a todos os ramos da Filosofia, da Metafísica, da Psicologia e da
Moral; é um campo imenso que não pode ser percorrido em algumas horas. Compreendeis
que me seria materialmente impossível repetir de viva voz e a cada pessoa, em
particular, tudo quanto tenho escrito sobre essa matéria, para uso geral. Em
prévia leitura cada qual encontrará, além disso, uma resposta à maior parte das
questões que lhe venham à mente; essa leitura tem a dupla vantagem de evitar
repetições inúteis e de provar um desejo sincero de instruir-se. Se, depois
dela, ainda existirem dúvidas ou pontos obscuros, o esclarecimento não
oferecerá mais dificuldade, porque já se possui um ponto de apoio e não se tem
necessidade de perder tempo em rever os princípios mais elementares da
Doutrina. Se o permitirdes, limitar-nos-emos, por ora, a algumas questões genéricas.
V. —
Seja; tende a bondade de chamar-me à ordem, sempre que eu dela me afaste.
Espiritismo e
espiritualismo
V. –
Pergunto-vos, em primeiro lugar, qual a necessidade da criação de novos termos:
espírita e espiritismo, para substituir: espiritualista e espiritualismo, que
são da língua vulgar e por todos compreendidos? Já ouvi alguém classificar tais
termos de barbarismos.
A.
K. — De há muito tem já a palavra espiritualista uma acepção bem determinada; é
a Academia que no-la dá: Espiritualista, aquele ou aquela pessoa cuja doutrina
é oposta ao materialismo. Todas as religiões são necessariamente fundadas sobre
o espiritualismo. Aquele que crê que em nós existe outra coisa, além da
matéria, é espiritualista, o que não implica a crença nos Espíritos e nas suas
manifestações. Como o podereis distinguir daquele que tem esta crença? Ver-vos-eis
obrigado a servir-vos de uma perífrase e dizer: É um espiritualista que crê ou
não crê nos Espíritos. Para as novas coisas são necessários termos novos,
quando se quer evitar equívocos. Se eu tivesse dado à minha Revista a
qualificação de espiritualista, não lhe teria especificado o objeto, porque,
sem desmentir-lhe o título, bem poderia nada dizer nela sobre os Espíritos, e
até combatê-los. Já há algum tempo, li num jornal, a propósito de uma obra
filosófica, um artigo em que se dizia tê-la o autor escrito do ponto de vista espiritualista;
ora, os partidários dos Espíritos ficariam singularmente desapontados se,
confiantes nessa indicação, acreditassem encontrar alguma concordância entre o
que ela ensina e as ideias por eles admitidas. Se adotei os termos espírita,
espiritismo, é porque eles exprimem, sem equívoco, as ideias relativas aos
Espíritos. Todo espírita é necessariamente espiritualista, mas nem todos os espiritualistas
são espíritas. Ainda que os Espíritos fossem uma quimera, havia utilidade em
adotar termos especiais para designar o que a eles se refere; porque as falsas ideias,
como as verdadeiras, devem ser expressas por termos próprios. Além disso, essas
palavras não são mais bárbaras que as outras que as ciências, as artes e a
indústria diariamente estão criando; com certeza, elas não o são mais do que
aquela que Gall imaginou para a sua nomenclatura das faculdades, como:
secretividade, amabilidade, combatividade, alimentividade, afecionividade etc. Há
pessoas que, por espírito de contradição, criticam tudo que não provém delas,
tomando ares de oposicionistas; aqueles que assim provocam tão pequeninas
chicanas, só revelam o acanhamento de suas ideias. Agarrar-se a tais bagatelas
é demonstrar falta de boas razões.
As
palavras espiritualismo e espiritualista são inglesas, e têm sido empregadas
nos Estados Unidos desde que começaram a surgir as manifestações dos Espíritos;
no começo e por algum tempo, também delas se serviram na França; logo, porém,
que apareceram os termos espírita, espiritismo, compreendeu-se a sua utilidade,
e foram imediatamente aceitos pelo público. Hoje, seu uso está tão generalizado
que os próprios adversários, aqueles que no princípio os classificavam de
barbarismos, não empregam outros. Os sermões e as pastorais que fulminam o
Espiritismo e os espíritas viriam produzir enorme confusão, se fossem dirigidos
ao espiritualismo e aos espiritualistas.
Bárbaros
ou não, esses termos estão hoje incluídos na língua usual e em todas as línguas
da Europa; são os únicos empregados em todas as publicações, favoráveis ou
contrárias, feitas em todos os países. Eles ocupam o vértice da coluna da
nomenclatura da nova ciência; para exprimir os fenômenos especiais dessa
ciência, tínhamos necessidade de termos especiais; o Espiritismo hoje possui a
sua nomenclatura, tal como a Química.16
As
palavras espiritualismo e espiritualista, aplicadas às manifestações dos
Espíritos, não são hoje mais empregadas senão pelos adeptos da escola americana.
16
Nota de Allan Kardec: Essas palavras já têm, aliás, direito de cidadania; estão
no suplemento do Pequeno dicionário dos dicionários franceses, extraído de
Napoléon Landais, obra cuja tiragem alcança 20 mil exemplares. Aí encontramos a
definição e a etimologia das palavras: erraticidade, medianímico, médium,
mediunidade, perispírito, pneumatografia, pneumatofonia, psicógrafo,
psicografia, psicofonia, reencarnação, sematologia, espírita, espiritismo,
espiritista, estereotita, tiptologia. Elas também se encontram na nova edição
do Dicionário universal, de Maurice Lachâtre, com todos os desenvolvimentos que
comportam.
Dissidências
V. —
Essa diversidade, na crença do que chamais uma ciência, é, parece-me, a sua
condenação. Se ela se baseasse em fatos positivos, não deveria ser a mesma na América
e na Europa?
A.
K. — A isso responderei, primeiramente, que tal divergência só existe na forma,
sem afetar o fundo; realmente, ela apenas se limita ao modo de encarar alguns
pontos da Doutrina, e não constitui um antagonismo radical nos princípios, como
afirmam os nossos adversários, sem ter estudado a questão.
Dizei-me,
porém, qual a ciência que, em seu começo, não deu nascimento a dissidências,
até que seus princípios ficassem claramente assentados? Não encontramos as
mesmas dissidências nas ciências melhormente constituídas? Estarão os sábios de
perfeito acordo sobre todos os pontos? Não tem cada qual seus sistemas
particulares? As sessões das Academias apresentam sempre o quadro de perfeito e
cordial entendimento? Em Medicina não há a Escola de Paris e a Escola de
Montpellier? Cada descoberta, em qualquer ciência, não tem produzido cismas entre
os que querem adiantar-se e os que desejam estacionar? Referindo-nos ao
Espiritismo, não será natural que, ao surgirem os primeiros fenômenos, quando
eram ignoradas as leis que os regem, cada pessoa tivesse um sistema e houvesse
encarado os fatos de um modo particular? Onde estão hoje esses sistemas
primitivos? Caíram todos ante uma observação mais completa.
Bastaram
apenas alguns anos para que ficasse estabelecida a unidade grandiosa que hoje
prevalece na Doutrina, e que prende a imensa maioria dos adeptos, com exceção
de algumas individualidades que, nesta como em todas as coisas, se apegam às
ideias primitivas e morrem com elas. Qual a ciência, qual a doutrina filosófica
ou religiosa que oferece um exemplo igual?
Apresentou
o Espiritismo a centésima parte das cisões que, durante tantos séculos,
dilaceraram a Igreja e que ainda hoje a dividem? É realmente curioso ver as
puerilidades a que recorrem os adversários do Espiritismo; não indicará isso
uma falta de argumentos sérios? Se eles os tivessem, não deixariam de fazê-los
valer. Qual o recurso de que lançam mão? Zombarias, negações, calúnias, porém,
nunca de um só argumento peremptório; e a prova de ainda lhe não terem achado
um ponto vulnerável, é que nada pôde deter-lhe a marcha ascendente e que,
apenas com dez anos de vida, ele já conta tal número de adeptos como ainda
nenhuma seita contou depois de um século de existência. É fato verificado e reconhecido
por seus próprios adversários. Para aniquilá-lo, não era bastante dizer: isto
não se dá, isto é um absurdo; seria necessário demonstrar categoricamente que
os fenômenos não se produzem, não podem produzir-se; e é o que ninguém ainda
fez.
Fenômenos espíritas
simulados
V. —
Não estará provado que, fora do Espiritismo, esses mesmos fenômenos podem
produzir-se? E disso não podemos concluir que eles não têm a origem que os
espíritas lhes atribuem?
A.
K. — Por ser uma coisa suscetível de imitação, segue-se que ela não exista? Que
direis da lógica daquele que pretendesse, por se fabricar com água de Seltz
vinho de champanhe, ser todo vinho desta espécie apenas água de Seltz? Isto é
privilégio de todas as coisas que apresentam a possibilidade de engendrar
falsificações. Acreditaram alguns prestidigitadores que o nome de espiritismo,
por causa da sua popularidade e das controvérsias de que era objeto, podia servir
a explorações, e para atrair a multidão simularam, mais ou menos grosseiramente,
alguns fenômenos de mediunidade, como já tinham simulado a clarividência
sonambúlica; e todos os gaiatos os aplaudiram, bradando: Eis aí o que é o
Espiritismo! Quando se mostrou em cena a engenhosa aparição dos espectros, não
se proclamou que naquilo recebia o Espiritismo um golpe mortal? Antes de
pronunciar tão positiva sentença, deve-se refletir que as asserções de um
escamoteador não são palavras de um evangelho, e certificar se há identidade
real entre a imitação e a coisa imitada. Ninguém compra um brilhante sem primeiro
estar convencido de não ser uma pedra-dágua. Um estudo, mesmo pouco acurado,
tê-los-ia certificado de serem completamente outras as condições em que se dão
os fenômenos espíritas; eles, além disso, ficariam sabendo que os espíritas não
se ocupam de fazer aparecer espectros nem de ler a buena-dicha.
Só a
malevolência e uma rematada má-fé puderam confundir o Espiritismo com a magia e
a feitiçaria, quando aquele repudia o fim, as práticas, as fórmulas e as
palavras místicas destas. Alguns chegaram mesmo a comparar as reuniões
espíritas às assembleias do sabbat, nas quais se espera o soar da meia-noite,
para que os fantasmas apareçam.
Um
espírita, meu amigo, assistia um dia a uma representação de Macbeth, ao lado de
um jornalista que ele não conhecia. Quando chegou a cena das feiticeiras, ele
ouviu o vizinho dizer: “— Belo! Vamos assistir a uma sessão espírita; é
justamente o que precisava para o meu próximo artigo; vou saber agora como as
coisas se passam. Se eu encontrasse por aqui algum desses loucos, perguntar-lhe-ia
se ele se reconhece no quadro que tem ante os olhos.” “— Eu sou um deles”,
disse-lhe o espírita, “e posso asseverar-vos que nada vejo que se lhe pareça;
tenho assistido a centenas de reuniões espíritas, e nelas nada encontrei que se
assemelha a isto. Se é aqui que vindes colher argumentos para o vosso artigo,
assevero-vos que ele não primará pela veracidade.”
Muitos
críticos não têm bases mais sólidas. Sobre quem cairá o ridículo, a não ser
sobre aqueles que caminham tão estonteadamente? Quanto ao Espiritismo, seu
crédito, longe de sofrer com tais ataques, tem crescido pelos reclamos que lhe
fazem, chamando para ele a atenção de muita gente que nem sequer pensava nele;
os reclamos provocaram o exame e contribuíram para lhe aumentar o número de adeptos;
porque se reconheceu, então, que, em vez de brincadeira, ele era coisa séria.
Impotência dos
detratores
V. —
Convenho que, entre os detratores do Espiritismo, há muita gente inconsciente,
como esses que acabais de citar, mas, ao lado deles, não se encontrarão também
homens de real valor, cujas opiniões têm certo peso?
A.
K. — Não o contesto. A isso respondo que o Espiritismo também conta em suas
fileiras muitos homens de não menos real valor; digo-vos, mais, que a imensa
maioria dos espíritas se compõe de homens inteligentes e de estudos; só a má-fé
pode dizer que seus adeptos são recrutados entre as mulheres simples e as
massas ignorantes.
Um
fato peremptório responde, além disso, a essa objeção; é que, apesar de todo o
saber, de todo o poder oficial, ninguém consegue deter o Espiritismo na sua
marcha; e, entretanto, não há um só dos seus contrários, seja ele o mais
obscuro folhetinista, que se não tenha lisonjeado com a ideia de dar-lhe um
golpe mortal; sem querê-lo, todos, sem exceção, concorreram para a sua
vulgarização. Uma ideia que resiste a tantos assaltos, que avança impávida
através da chuva de dardos que lhe atiram, não provará a sua força máscula e a segurança
das bases em que se firma? Não será esse fenômeno digno da atenção dos pensadores?
Também,
já hoje, muitos deles avançam que deve haver nisso alguma coisa de real, que
talvez seja um desses grandes movimentos irresistíveis que, de tempos a tempos,
abalam as sociedades para transformá-las. Isto se tem dado sempre com todas as
ideias novas, chamadas a revolucionar o mundo; forçosamente elas encontram
obstáculos, porque lutam contra os interesses, os prejuízos, os abusos que elas
vêm destruir; porém, como estão nos desígnios de Deus, para que se cumpra a lei
do progresso da humanidade, chegada a hora, nada as poderá deter; é a prova de
serem a expressão da verdade.
Essa
impotência dos adversários do Espiritismo prova primeiramente, como já disse,
que lhes faltam boas razões; pois que as que lhe opõem, não são convincentes;
ela dimana ainda de outra causa, que inutiliza todas as suas combinações.
Admiram-se de ver o desenvolvimento dessa Doutrina, apesar de tudo o que fazem
para contê-la, e não podem achar o motivo por não o buscarem onde ele realmente
está. Uns creem encontrá-lo no grande poder do diabo, que assim se apresenta
mais forte que eles, e, mesmo, mais forte que Deus; outros, no aumento da
alucinação humana. O erro de todos está em crerem que a fonte do Espiritismo é
uma só, e que se baseia na opinião de um só homem; daí a ideia de que poderão arruiná-lo,
refutando essa opinião; eles procuram na Terra uma coisa que só achariam no
Espaço; essa fonte do Espiritismo não se acha num ponto, mas em toda parte,
porque não há lugar em que os Espíritos se não possam manifestar, em todos os
países, nos palácios e nas choupanas. A verdadeira causa está, pois, na própria
natureza do Espiritismo cuja força não provém de uma só fonte, mas permite a
cada qual receber diretamente comunicações dos Espíritos e por elas
certificar-se da veracidade do fato. Como persuadir a milhões de indivíduos que
tudo isso não é mais que comédia, charlatanismo, escamoteação, prestidigitação,
quando, sem o concurso de estranhos, são eles próprios que obtêm tais
resultados? É possível fazê-los crer que eles se mistifiquem a si mesmos, que a
si mesmos procurem enganar fazendo o papel de charlatães e escamoteadores?
Essa
universalidade das manifestações dos Espíritos, que surgem em todos os pontos
do globo para desmentir os detratores e confirmar os princípios da Doutrina, é
uma força que não podem explicar aqueles que desconhecem o mundo invisível,
assim como os que desconhecem as leis dos fenômenos elétricos não compreendem a
rapidez com que se transmite um despacho telegráfico; é de encontro a essa
força que todas as negações se vêm quebrar, porque elas se equiparam às
asserções de quem pretendesse afirmar, aos que sentem a ação dos raios solares,
que o Sol não existe.
Fazendo
abstração das qualidades da Doutrina, que agrada muito mais que as que se lhe
opõem, vede nisso a causa dos insucessos dos que tentam deter-lhe a marcha;
para que triunfassem, era-lhes mister impedir que os Espíritos se
manifestassem. Eis o motivo por que os espíritas ligam tão pouca importância às
manobras dos seus adversários; eles têm por si a experiência e o peso dos fatos.
O maravilhoso e o
sobrenatural
V. —
O Espiritismo tende, evidentemente, a fazer reviver as crenças fundadas no
maravilhoso e no sobrenatural; ora, no século positivo em que vivemos, isto me
parece difícil, porque é exigir que se acredite nas superstições e nos erros
populares, já condenados pela razão.
A.
K. — Uma ideia só é supersticiosa quando falsa, mas cessa de o ser desde que
passe a ser uma verdade reconhecida. A questão está em saber se os Espíritos se
manifestam, ou não; ora, isso não pode ser tachado de superstição, antes de
ficar provado que não existem Espíritos. Direis: a minha razão não aceita essas
comunicações; porém, os que creem e que não são nenhuns mentecaptos invocam
também as suas razões e, além disso, os fatos; para que lado se deve pender? O
grande juiz, nesta questão, é o futuro — como tem sido em todas as questões
científicas e industriais classificadas como absurdas e impossíveis em sua
origem. Pretendeis julgar a priori segundo a vossa opinião; nós só o fazemos depois
de, por muito tempo, ter visto e observado. Acresce que o Espiritismo
esclarecido, como o é hoje, procura, ao contrário, destruir as ideias supersticiosas,
mostrando o que há de real ou de falso nas crenças populares, denunciando o que
nelas existe de absurdo, fruto da ignorância e dos preconceitos.
Vou
mais longe e digo que é precisamente o positivismo do nosso século que faz com
que adotemos o Espiritismo, e que este deve, em parte, àquele a rapidez da sua
propagação, antes que, como alguns pretendem, a uma recrudescência do amor ao
maravilhoso e ao sobrenatural.
O
sobrenatural desaparece à luz do facho da Ciência, da Filosofia e da Razão,
como os deuses do paganismo ante o brilho do Cristianismo. Sobrenatural é tudo
o que está fora das leis da natureza. O positivismo nada admite que escape à
ação dessas leis, mas, porventura, ele as conhece a todas? Em todos os tempos
foram reputados sobrenaturais os fenômenos, cuja causa não era conhecida; pois
bem: o Espiritismo vem revelar uma nova lei, segundo a qual a conversação com o
Espírito de um morto é um fato tão natural, como o que se dá por intermédio da
eletricidade, entre dois indivíduos separados por uma distância de 100 léguas;
o mesmo acontece com os outros fenômenos espíritas. O Espiritismo repudia, nos
limites do que lhe pertence, todo efeito maravilhoso, isto é, fora das leis da
natureza; ele não faz milagres nem prodígios, antes explica, em virtude de uma
dessas leis, certos efeitos, demonstrando, assim, a sua possibilidade. Ele amplia,
igualmente, o domínio da Ciência, e é nisto que ele próprio se torna uma
ciência; como, porém, a descoberta dessa nova lei traz consequências morais, o
código das consequências faz dele, ao mesmo tempo, uma doutrina filosófica.
Deste
último ponto de vista, ele corresponde às aspirações do homem, no que se refere
ao seu futuro; e como a sua teoria do futuro repousa sobre bases positivas e
racionais, ela agrada ao espírito positivo do nosso século. É o que
compreendereis, quando vos derdes ao trabalho de estudá-lo. (Ver O livro dos
médiuns, cap. II; Revista espírita, dezembro de 1861 e janeiro de 1862.)
Oposição da Ciência
V. —
Vós vos apoiais em fatos, dissestes, mas opõe-se-vos a opinião dos sábios que
os contestam, ou os explicam de modo diferente do vosso. Por que não fixaram
eles sua atenção sobre o fenômeno das mesas girantes? Se nisso tivessem notado
alguma coisa de sério, parece-me que não desprezariam fatos tão extraordinários
e nem os repeliriam com desdém; no entanto, são todos eles contra vós. Os
sábios não serão o farol das nações, e não têm o dever de esclarecê-las? A que
atribuís que tenham deixado de fazê-lo, quando se lhes apresentava tão bela
ocasião de revelar ao mundo a existência de uma nova força?
A.
K. — Traçastes o dever dos sábios de modo admirável; é pena, porém, que eles o
tenham esquecido em mais de uma circunstância. Antes, porém, de responder à
vossa judiciosa observação, cumpre- -me corrigir um grave erro que cometestes
dizendo que todos os sábios são contra nós. Como vos disse há pouco, é
precisamente na classe ilustrada que o Espiritismo faz maior número de
prosélitos, isto em todos os países; já ele conta entre seus adeptos grande
número de médicos de todas as nações, e ninguém nega que os médicos sejam
homens de ciência; os magistrados, os professores, os artistas, os homens de
letras, os oficiais, os altos funcionários, os grandes dignitários, os
eclesiásticos etc., que se agrupam ao redor da sua bandeira, não são pessoas em
quem se não deva reconhecer certa dose de ilustração. Admite-se erroneamente
que os sábios só se encontram na ciência oficial e nos corpos constituídos.
Pelo
fato de ainda não ter o Espiritismo adquirido direito de cidade na ciência
oficial, merecerá ser condenado? Se nunca a Ciência se houvesse enganado, sua
opinião nesse sentido teria grande peso na balança; infelizmente, a experiência
prova o contrário. Não repeliu ela como quimeras tantas descobertas que, mais
tarde, se tornaram título de glória para os seus autores? Não foi devido a um
parecer do nosso primeiro corpo sábio que a França se absteve da iniciativa do
vapor? Quando Fulton veio ao campo de Bolonha apresentar o seu plano a Napoleão
I, que confiou o exame imediato ao Instituto, não decidiu este que aquilo era
uma utopia, com o que se não devia ocupar? Devemos daí concluir que os membros
do Instituto são ignorantes e que sejam justificados os epítetos triviais que,
à força de mau gosto, certas pessoas se comprazem em prodigalizar-lhes? Certo
que não; não há pessoa sensata que não faça justiça ao seu saber eminente, sem,
contudo, deixar de reconhecer que eles não são infalíveis e, portanto, que as
suas sentenças não estão isentas de apelação, sobretudo no que se refere a
ideias novas.
V. —
Admito perfeitamente que eles não sejam infalíveis, mas não é menos verdade
que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa, e que se ela
estivesse do vosso lado, daria grande peso ao vosso sistema.
A.
K. — Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz naquilo que está fora da
sua competência. Se quiserdes edificar uma casa, confiareis esse trabalho a um
músico? Se estiverdes enfermo, far-vos-eis sangrar por um arquiteto? Quando
estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino? Finalmente,
quando se trata de uma questão de Teologia, alguém irá pedir a solução a um
químico ou a um astrônomo? Não; cada um tem a sua especialidade.
As
ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se pode, à
vontade, manipular; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças
materiais. Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que têm
independência, livre-arbítrio e não estão sujeitas aos nossos caprichos; por
isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e,
desde então, ficam fora dos domínios da ciência propriamente dita.
A
Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como experimenta uma
pilha voltaica; foi malsucedida como devia sê-lo, porque agiu visando uma
analogia que não existe; e depois, sem ir mais longe, concluiu pela negação,
juízo temerário que o tempo se encarregou de ir emendando diariamente, como já
tem emendado outros; e, àqueles que o preferiram restará a vergonha do erro de
se haverem levianamente pronunciado contra o poder infinito do Criador. As
corporações sábias não podem nem jamais poderão pronunciar-se nesta questão;
ela está tão fora dos limites do seu domínio como a de decretar se Deus existe
ou não; é, pois, um erro fazê-las juiz dela.
O
Espiritismo é uma questão de crença pessoal que não pode depender do voto de
uma assembleia, porque esse voto, embora lhe fosse favorável, não tem o poder
de forçar convicções. Quando a opinião pública se tiver formado a respeito, os
membros dessas corporações a aceitarão sob o poder dos fatos.
Deixai
passar esta geração, levando os prejuízos do seu obstinado amor-próprio, e
vereis que se há de dar com o Espiritismo o mesmo que se deu com tantas outras
verdades, tão combatidas e de que hoje seria ridículo duvidar. Hoje, chamam
loucos aos crentes; amanhã, será a vez dos que não crerem; foi o mesmo que se
deu com os que acreditavam no movimento de rotação da Terra. Nem todos os
sábios, porém, julgaram do mesmo modo; e notai que agora chamo sábios aos
homens de estudo e saber, tenham ou não tenham um título oficial. Muitos
fizeram o seguinte raciocínio:
“Não
há efeito sem causa, e os efeitos mais vulgares podem conduzir-nos à solução
dos mais difíceis problemas. “Se Newton não tivesse prestado atenção à queda de
uma maçã; se Galvani tivesse repelido sua serva e lhe chamasse visionária e
louca, quando esta lhe falou das rãs que dançavam no prato, talvez ainda
estivéssemos sem conhecer a admirável lei da gravitação universal e as fecundas
propriedades da pilha elétrica.
“O
fenômeno, burlescamente designado sob o nome de dança das mesas, não é mais
ridículo que a dança das rãs, e, talvez, encerre alguns desses segredos da
natureza, que, quando se tem a chave para explicá-los, revolucionam a humanidade.”
Eles
disseram ainda:
“Já
que tanta gente se ocupa com eles, e homens notáveis fizeram deles o objeto do
seu estudo, é preciso que alguma coisa de verdade se encontre em tais fenômenos;
uma ilusão, uma farsa, se o quiserem, não pode ter esse caráter de generalidade;
seria divertimento para certo círculo, para certa sociedade, mas não daria a volta
ao mundo. “Guardemo-nos, pois, de negar a possibilidade do que não
compreendemos, com receio de receber, mais cedo ou mais tarde, o desmentido que
desabonaria nossa perspicácia.”
V. —
Perfeitamente; eis aí um sábio raciocinando com sabedoria e prudência; e, sem
ser sábio, eu penso igualmente; notai, porém, que ele nada afirma, mas duvida;
ora, qual é a base em que se firma a crença na existência dos Espíritos e,
sobretudo, na sua comunicação conosco?
A.
K. — Essa crença apoia-se sobre o raciocínio e sobre os fatos. Eu próprio não a
adotei senão depois de meticuloso exame. Tendo adquirido, no estudo das
ciências exatas, o hábito das coisas positivas, sondei, perscrutei esta nova
ciência nos seus mais íntimos refolhos; busquei explicar-me tudo, porque não
costumo aceitar ideia alguma sem lhe conhecer o como e o porquê. Eis o
raciocínio que me fazia um sábio médico, outrora incrédulo e hoje fervoroso
adepto:
“Dizem
que seres invisíveis se comunicam; por que negá-lo? “Antes de inventar-se o
microscópio, suspeitava alguém que existissem esses milhares de animálculos que
causam tantos estragos à economia? “Onde a impossibilidade material de haver no
espaço seres que escapem aos nossos sentidos? “Teremos, acaso, a ridícula
pretensão de saber tudo, e de dizer que Deus nada mais nos pode revelar? “Se
esses seres invisíveis, que nos rodeiam, são inteligentes, por que não poderão
comunicar-se conosco? Se estão em relação com os homens, devem desempenhar um
papel no seu destino, nos acontecimentos da vida destes. Quem sabe se eles não
constituem uma das potências da natureza, uma dessas forças ocultas de que nem
suspeitávamos? “Que novo horizonte vai abrir-se ao pensamento! Que campo tão vasto
de observação! “A descoberta do mundo
dos invisíveis tem muito mais alcance que a dos infinitamente pequenos; ela é
mais que uma descoberta, é uma revolução nas ideias. “Quanta luz pode projetar
essa descoberta? Quantas coisas misteriosas explicadas? “Os crentes são
ridiculizados, mas que valor tem isso, quando o mesmo se tem dado a respeito de
todas as grandes descobertas? “Cristóvão Colombo não foi repelido,
sobrecarregado de desgostos, tratado como insensato? “São ideias tão
estranhas”, dizem, “que não se lhes deve dar crédito, mas a isso se pode
responder que data de meio século a possibilidade de, em alguns minutos,
estabelecer-se correspondência entre dois pontos opostos do nosso planeta; em
algumas horas, atravessar-se a França; com o vapor produzido por um pouco de
água fervente, um navio avançar contra o vento; e tirarmos da água os meios de
iluminar-nos e aquecer-nos. “Quem, há meio século, se tivesse proposto iluminar
toda a cidade de Paris em um instante e com um só reservatório de uma
substância invisível, apenas conseguiria fazer rir de si. “Será isso,
porventura, coisa mais prodigiosa que o espaço ser povoado pelos seres
pensantes que, depois de haverem vivido na Terra, nela deixaram seu invólucro
material? “Não se achará neste fato a explicação de tantas crenças que existem desde
os mais remotos tempos? “São coisas que bem merecem estudo aprofundado.”
Eis
as reflexões de um sábio, mas de um sábio sem pretensão; elas são igualmente
feitas por muitos outros homens esclarecidos; estes viram, não superficialmente
e de ânimo prevenido; estudaram seriamente, sem partido fixo, e tiveram a
modéstia de não dizer: não compreendemos, isto não pode ser a verdade. Sua
convicção formou-se pela observação e pelo raciocínio. Se essas ideias fossem
uma quimera, acreditais que todos esses homens sisudos as tivessem adotado?
Que, por tanto tempo, pudessem ser vítimas de uma ilusão?
Não
há, pois, impossibilidade material de existirem seres invisíveis para nós,
povoando o espaço, e esta só consideração devia bastar para exigir mais
circunspeção. Quem, há bem pouco, poderia pensar que uma só gota de água límpida
encerrasse milhares de seres, cuja pequenez extrema nos confunde a imaginação? Ora,
eu digo que há mais dificuldade em conceber a nossa razão seres de tal
tenuidade, providos de todos os nossos órgãos e funcionando como nós, do que
admitir aqueles a quem damos o nome de Espíritos.
V. —
Sem dúvida, mas por ser uma coisa possível, não devemos concluir que exista.
A.
K. — É exato, mas não podeis deixar de convir que, desde que uma coisa não é
impossível, já ela avançou, porque a razão não a repele. Resta, pois,
averiguá-la pela observação dos fatos. Ora, essa observação não é nova: tanto a
história sagrada quanto a profana provam a antiguidade e a universalidade dessa
crença, que se perpetuou através de todas as vicissitudes por que tem passado o
mundo, e se mostra, entre os mais selvagens povos, no estado de ideias inatas e
intuitivas, e tão gravadas no pensamento como a do Ente supremo e a da
existência futura. O Espiritismo, pois, não é uma criação moderna; tudo prova
que os antigos o conheciam tão bem, ou talvez melhor que nós; somente ele não era
ensinado, senão com precauções misteriosas que o tornavam inacessível ao vulgo,
abandonado de propósito no lamaçal da superstição.
Quanto
aos fatos, eles são de duas naturezas: uns espontâneos e outros provocados.
Entre os primeiros estão as visões e as aparições, tão frequentes; os ruídos,
barulhos e movimentações de objetos, sem causa material, e grande número de
efeitos insólitos que olhávamos como sobrenaturais e hoje nos parecem simples,
porque não admitimos o sobrenatural, visto como tudo se submete às leis
imutáveis da natureza. Os fatos provocados são os obtidos por intermédio de
médiuns.
Falsas explicações
dos fenômenos
Alucinação
– Fluido magnético – Reflexo do pensamento – Superexcitação cerebral – Estado
sonambúlico dos médiuns
V. —
É contra os fenômenos provocados que principalmente a crítica se levanta. Ponhamos
de lado toda suposição de charlatanismo, e admitamos a mais completa boa-fé;
não será possível que os médiuns sejam vítimas de uma alucinação?
A.
K. — Ignoro que já se tenha claramente explicado o mecanismo da alucinação. Da
forma como querem defini-la, ela não deixa de ser um efeito singularíssimo e
digno de estudo. É pena, porém, que aqueles que por meio dela pretendem dar conta
dos fenômenos espíritas, não possam antes apresentar a explicação deles. Há,
além disso, fatos que escapam a essa hipótese: quando a mesa ou outro objeto se
move, se ergue, ou bate; quando a dita mesa, à vontade, passeia por uma câmara,
sem que pessoa alguma lhe toque; quando ela se destaca do solo e se suspende no
espaço, sem ponto de apoio; enfim, quando, ao cair, se despedaça, tudo isso não
pode ser o efeito de uma alucinação. Suponho que o médium, por um produto da
sua imaginação, creia ver o que não existe. Será admissível que todos os
presentes sejam, ao mesmo tempo, vítimas da mesma vertigem? E quando o mesmo
fato se reproduz por toda parte, em todos os países? A ser assim, essa
alucinação seria prodígio maior que o próprio fato.
V. —
Admitindo a realidade do fenômeno das mesas que giram e falam, não será mais
racional atribuí-lo à ação de um fluido qualquer, do magnético, por exemplo?
A.
K. — Tal foi o primeiro pensamento que tive, como tantos outros. Se tudo se
limitasse a esses efeitos materiais, não há dúvida de que poderiam ser assim
explicados; porém, quando esses movimentos e golpes nos deram provas de
inteligência; quando se reconheceu que respondiam ao pensamento com inteira
liberdade, foi-se levado a tirar a seguinte conclusão: “Se todo efeito tem uma
causa, o efeito inteligente tem uma causa inteligente.” Poderão tais fenômenos
ser produzidos por um fluido, sem se admitir que esse fluido seja dotado de
inteligência? Quando vedes os aparelhos do telégrafo fazerem sinais
transmitindo o pensamento, bem compreendeis que esses aparelhos, de ferro ou de
madeira, não são inteligentes, mas que é uma inteligência quem os faz mover. Dá-se
o mesmo com as mesas a que nos referimos. Dão-se, ou não, efeitos inteligentes?
Esta a questão. Os que contestam, são pessoas que nada viram ainda e se
apressam a concluir, segundo suas ideias particulares e baseadas, quando muito,
em observação superficial.
V. —
Pode-se responder que, se há um efeito inteligente, este pode ser um reflexo da
inteligência, seja do médium, seja de quem interroga, ou mesmo dos assistentes;
porque, dizem, a resposta recebida estava sempre no pensamento de alguém.
A.
K. — É ainda um erro, filho da falta de observação. Se os que assim pensam se
tivessem dado ao trabalho de estudar o fenômeno em todas as suas fases, não
deixariam de reconhecer, a cada passo, a independência absoluta da inteligência
que se manifesta. Como conciliar essa tese com as respostas obtidas, tão fora
do alcance intelectual e da instrução do médium? Respostas que vão de encontro às
suas ideias, desejos e opiniões, ou que destroem completamente as previsões dos
assistentes? Quando os médiuns escrevem em uma língua que não conhecem, ou
escrevem na sua própria quando não sabem ler nem escrever? À primeira vista,
essa opinião nada tem de irracional, convenho, mas é desmentida por um conjunto
de fatos tão concludentes que, diante deles, é impossível duvidar. Além disso,
mesmo admitindo-se essa teoria, o fenômeno, longe de ser simplificado, seria
muito mais prodigioso. Pois quê! O pensamento poderá refletir-se sobre uma
superfície, como a luz, o som, o calórico?! Em verdade, havia nisto um motivo
para a Ciência exercer a sua sagacidade. E depois ainda o maravilhoso seria
maior, porque, achando-se presentes vinte pessoas, será o pensamento desta ou
daquela que é refletido, ou o desta ou daquela outra? Tal sistema é
insustentável.
É
realmente curioso ver-se os contraditores empenharem-se na busca de causas, cem
vezes mais extraordinárias e incompreensíveis do que aquelas que se propalamos.
V. —
Não será admissível, segundo querem alguns, que o médium se ache em estado de
crise e goze certa lucidez, que lhe dá a percepção sonambúlica — espécie de
dupla vista —, que aliás nos pode explicar a extensão momentânea de suas
faculdades intelectuais? Por que, dizem, as comunicações obtidas pelos médiuns
não vão além do alcance das que nos dão os sonâmbulos?
A.
K. — É ainda esse um desses sistemas que não resistem a um exame aprofundado. O
médium nem se acha em crise nem dorme, mas está perfeitamente acordado, agindo
e pensando como os outros, sem nada apresentar de extraordinário. Certos
efeitos particulares deram lugar a essa suposição; porém, quem se não limitar a
julgar as coisas, por uma só face, reconhecerá sem dificuldade que o médium é
dotado de uma faculdade particular, que não permite confundi-lo com o
sonâmbulo, sendo a independência do seu pensamento demonstrada por fatos da maior
evidência. Abstraindo das comunicações escritas, qual o sonâmbulo que fez
alguma vez sair um pensamento de um corpo inerte? Qual deles pôde produzir
aparições visíveis e, mesmo, tangíveis? Qual fez que um corpo pesado se
mantivesse suspenso no ar, sem ponto de apoio? Será por efeito sonambúlico que
certo médium desenhou, um dia, em minha casa e na presença de vinte
testemunhas, o retrato de uma jovem, morta havia dezoito meses e a quem ele não
conhecera, retrato reconhecido pelo próprio pai da jovem, presente então à
sessão? Será por efeito do mesmo gênero que uma mesa responde com precisão às
questões propostas, mesmo feitas mentalmente? Certamente, se admitirmos que o médium
se ache em estado magnético, parece-me difícil crer que a mesa seja sonâmbula.
Dizem,
ainda, que os médiuns só falam com clareza daquilo que é conhecido. Como
explicar o fato seguinte e cem outros da mesma espécie? — Um dos meus amigos,
muito bom médium escrevente, perguntou a um Espírito se uma pessoa que ele
tinha perdido de vista, havia quinze anos, era ainda deste mundo. “Sim, ainda
vive”, foi-lhe respondido; “mora em Paris, rua tal, número tanto”. Ele foi e
encontrou a pessoa no lugar indicado. Seria isso uma ilusão? Seu pensamento
poderia sugerir-lhe tal resposta, quando, por causa da idade da pessoa por quem
ele perguntava, havia toda a probabilidade de ela não existir mais? Se, em
certos casos, vemos respostas combinarem com o pensamento de quem pergunta,
será racional concluirmos que isso seja uma lei geral? Nisso, como em todas as
coisas, são sempre perigosos os juízos precipitados, porque eles podem ser
desmentidos pelos fatos que ainda se não observaram.
Não basta que os
incrédulos vejam para que se convençam
V. —
O que os incrédulos desejam ver, pedem e, na maioria das vezes, não se lhes
fornece, são os fatos positivos. Se todos testemunhassem esses fatos, a dúvida
não mais seria permitida. Como é que tanta gente, apesar de sua vontade, nada
tem conseguido ver? Apresentam-lhes como motivo, dizem eles, a sua falta de fé;
ao que respondem, e com razão: que não podem ter fé antecipada e que se lhes deve
dar os meios para poderem crer.
A.
K. — É simples a razão. Eles querem que os fatos obedeçam à sua ordem e a
Espíritos não se pode dar ordens; é preciso esperar pela boa vontade deles. Não
basta dizer: Mostrai-me tal fato e eu crerei; é necessário ter-se a vontade de
perseverar, deixar que os fatos se produzam espontaneamente, sem pretender
forçá-los ou dirigi-los; aquele que mais desejais será, talvez, precisamente o
que não obtereis; virão, porém, outros, e o que quereis se apresentará, quando
menos o esperardes. Aos olhos do observador atento e assíduo surgem eles
inumeráveis, corroborando-se uns aos outros, mas quem acreditar que basta tocar
a manivela, para fazer que a máquina ande, engana-se redondamente. Que faz o
naturalista quando quer estudar os hábitos de um animal? Mandá-lo-á fazer tal
ou qual coisa, para com vagar observá-lo à sua vontade? Não; porque bem sabe
que o animal não lhe obedecerá, mas espreita as manifestações espontâneas do
instinto do animal; espera-as e colhe-as na passagem. O simples bom senso
mostra que, com mais forte razão, deve proceder-se do mesmo modo com os
Espíritos, que são inteligências muito mais independentes que as dos animais.
É
erro crer que se exija fé antecipada de quem quer estudar; o que se exige é
boa-fé, aliás, coisa diversa; ora, há céticos que negam até a evidência e aos
quais os próprios prodígios não convenceriam. Quantos deles, depois de haverem
visto, não persistem ainda em explicar os fatos a seu modo, dizendo que o que
viram nada prova? Essas pessoas só servem para trazer perturbação ao seio das
reuniões, sem que elas mesmas lucrem coisa alguma; por isso, deixamo-las à
margem, por não querermos com elas perder nosso tempo. Muitos até ficariam
incomodados, se se vissem forçados a crer, por terem de ferir seu amor-próprio
com a confissão de se haverem enganado. Que se pode responder a quem não vê por
toda parte senão ilusão e charlatanismo? Nada; é melhor deixá-los tranquilos e
dizerem, tanto quanto quiserem, que nada viram, e, mesmo, que nada se pôde ou
se quis mostrar-lhes.
Ao
lado desses céticos endurecidos estão os que querem ver a seu modo, que, tendo
formado uma opinião, pretendem por ela explicar tudo; estes não compreendem que
os fenômenos se possam dar contrariamente ao seu desejo; não sabem ou não
querem colocar-se nas condições precisas para obtê-los. Quem de boa-fé deseja
observar, deve, não digo crer sob palavra, mas abandonar toda ideia
preconcebida e não querer comparar coisas incompatíveis; cumpre-lhe aguardar,
seguir, observar com paciência infatigável; esta condição é também favorável
aos que se tornam adeptos, pois que ela prova não haverem formado levianamente
a sua convicção. Disponde vós de tal paciência? Não, e direis: por falta de
tempo. Então não vos ocupeis, não faleis mais nisso, pois ninguém a tal vos
obriga.
Boa ou má vontade dos
Espíritos para convencer
V. —
Os Espíritos devem almejar fazer prosélitos; por que não se prestam,
melhormente, aos meios de convencer certas pessoas, cuja opinião teria grande
influência?
A.
K. — É por julgarem que, naquele momento, não devem fornecer provas às pessoas
a quem não ligam a importância que elas pretendem ter. É isso pouco lisonjeiro,
convenho, porém não temos o direito de impor-lhes a nossa opinião; os Espíritos
têm sua maneira de julgar as coisas, a qual nem sempre se coaduna com a nossa;
eles veem, pensam e agem segundo outros elementos; ao passo que a nossa vista é
circunscrita pela matéria, limitada pela estreiteza do círculo em que vivemos,
eles abrangem o conjunto; o tempo, que nos parece tão longo, é para eles um instante;
a distância, um simples passo; e certos pormenores, para nós de importância
extrema, são futilidades a seus olhos; em compensação, ligam às vezes
importância a coisas cujo verdadeiro alcance nos escapa. Para compreendê-los é
preciso nos elevarmos pelo pensamento acima do horizonte material e moral,
colocarmo-nos no seu ponto de vista, pois que não são eles que devem descer ao
nosso nível, mas subirmos nós até eles, é o que nos ensinam o estudo e a
observação.
Os
Espíritos gostam dos observadores assíduos e conscienciosos; para estes
multiplicam eles as fontes de luz; o que os afugenta não é a dúvida que nasce
da ignorância, é a fatuidade desses pretensos observadores que nada observam,
que desejam colocá-los no banco dos réus e fazê-los moverem-se como títeres; é
o sentimento de hostilidade e descrédito que exista em seus pensamentos, quando
o não traduzam por palavras. Por sua causa os Espíritos nada fazem, pouco se
importando com o que possam dizer ou pensar, porque o seu dia também chegará. Por
isso vos dizia eu que não é a fé antecipada o que pedimos, mas sim a boa-fé.
Origem das ideias
espíritas modernas
V. —
Uma coisa que eu desejava saber, meu amigo, é o ponto de partida das ideias
espíritas modernas; serão elas filhas de uma revelação espontânea dos
Espíritos, ou o resultado de uma crença prévia na existência deles? Compreendeis
a importância de minha pergunta; porque, neste último caso, é admissível que a
imaginação possa nisso ter desempenhado seu papel.
A.
K. — Como dissestes, essa questão tem importância, no ponto de vista em que vos
achais, ainda que seja difícil acreditar-se, supondo essas ideias nascidas de
uma crença antecipada, que a imaginação pudesse produzir todos os resultados
materiais observados. De fato, se o Espiritismo fosse fundado no pensamento
preconcebido da existência dos Espíritos, poder-se-ia, com alguma aparência de razão,
duvidar da sua veracidade; porque, se o princípio fosse uma quimera, as
consequências dele emanadas também o seriam, mas as coisas não se passaram
assim. Notai, em primeiro lugar, que essa marcha seria totalmente ilógica; os
Espíritos são a causa, e não o efeito; quando se vê um efeito, pode-se
procurar-lhe a causa, mas não é natural imaginar-se uma causa antes de lhe ter
visto os efeitos. Não era, pois, possível conceber o pensamento da existência
dos Espíritos, se efeitos não se tivessem mostrado, que achassem explicação
provável na existência de seres invisíveis. Pois bem! Não foi mesmo deste modo
que nasceu tal pensamento; isto é, não foi ele uma hipótese imaginada com o fim
de explicar certos fenômenos; a primeira suposição feita, foi a de uma causa
material.
Assim,
longe de que os Espíritos fossem uma ideia preconcebida, partiu-se, para chegar
a eles, do ponto de vista materialista. Não se podendo, porém, por este meio
explicar tudo, somente a observação conduziu à causa espiritual. Falo das
ideias espíritas modernas, pois sabemos que essa crença é tão velha quanto o
mundo. Eis a marcha das coisas: fenômenos espontâneos se produziram, tais como
ruídos estranhos, pancadas, movimentos de objetos etc., sem causa ostensiva
conhecida, realizando-se sob a influência de certas pessoas. Nada, até aí,
autorizava a buscar-se-lhes a causa fora da ação de um fluido magnético ou
outro qualquer, de propriedade ainda desconhecida. Não se tardou, porém, a
reconhecer nesses ruídos e movimentos um caráter intencional e inteligente, do
que se concluiu, como já o disse, que: Se todo efeito tem uma causa, todo
efeito inteligente tem uma causa inteligente. Esta inteligência não podia estar
no objeto, porque a matéria não é inteligente. Seria o reflexo da pessoa ou das
pessoas presentes? Assim se julgou no começo, como já igualmente vo-lo disse;
só a experiência podia pronunciar-se, e ela demonstrou por provas irrecusáveis,
em muitas circunstâncias, a completa independência da inteligência que se manifesta.
Ela não pertencia, pois, nem ao objeto nem à pessoa. Quem era então? Ela
própria respondeu, declarando pertencer aos seres incorpóreos chamados
Espíritos.
A
ideia dos Espíritos não preexistia, nem mesmo lhe foi consecutiva; em uma
palavra, não nasceu do cérebro de ninguém, mas nos foi dada pelos Espíritos
mesmos, e tudo o que soubemos depois, a seu respeito, foi- -nos por eles
ensinado.
Uma
vez revelada a existência dos Espíritos e estabelecidos os meios de nos
comunicarmos com eles, pôde-se entreter conversações seguidas e obter
informações sobre a natureza desses seres, condições de sua existência e seu
papel no mundo visível. Se assim pudéssemos interrogar os seres do mundo dos
infinitamente pequenos, quantas coisas curiosas não ficaríamos sabendo sobre
eles!
Suponhamos
que, antes da descoberta da América, um fio elétrico estivesse estabelecido
através do Atlântico, e que na sua extremidade europeia se houvessem produzido
alguns sinais inteligentes, e ter-se-ia logo concluído que na outra extremidade
se achavam seres inteligentes, que desejavam comunicar-se; teríamos interrogado
e eles teriam respondido. Ficaríamos assim com a certeza da sua existência, e
podia-se adquirir o conhecimento dos seus costumes, usos e modos de ser, apesar
de nunca os havermos visto. Foi o que se deu nas relações com o mundo
invisível: as manifestações materiais foram sinais e meios de aviso que nos
conduziram a comunicações mais regulares e mais seguidas. E — coisa notável — à
medida que meios de mais fácil comunicação se acham ao nosso dispor, os
Espíritos abandonam os primitivos, insuficientes e incômodos, qual o mudo que,
recuperando a palavra, renuncia à linguagem dos sinais.
Quem
eram os habitantes desse mundo? Eram seres à parte, estranhos à humanidade?
Eram bons ou maus? Foi ainda a experiência quem se encarregou da solução de
tais problemas, mas até que observações numerosas tivessem derramado luz sobre o
assunto, o campo das conjeturas e dos sistemas esteve aberto, e Deus sabe
quantos surgiram! Uns creram ser os Espíritos superiores em tudo, outros, neles
só viram demônios; era só por suas palavras e atos que podiam julgá-los. Suponhamos
que dentre os desconhecidos habitantes transatlânticos, de que acabamos de
falar, uns tenham dito muito boas coisas, ao passo que outros se faziam notar
pelo cinismo da linguagem; ter-se-ia logo concluído que entre eles havia bons e
maus. Foi o que aconteceu com os Espíritos; foi assim que se reconheceu entre eles
todos os graus de bondade e malvadez, de saber e ignorância. Uma vez bem
informados acerca dos defeitos e das boas qualidades que entre eles se
encontram, cabe à nossa prudência distinguir o que é bom do que é mau, o
verdadeiro do falso em suas relações conosco, absolutamente como procedemos a
respeito dos homens.
A
observação não nos esclareceu somente sobre as qualidades morais dos Espíritos,
mas também sobre a sua natureza e sobre o que podemos chamar estado
fisiológico. Ficou-se sabendo, por eles mesmos, que uns são muito felizes e
outros muito desgraçados; que não são seres à parte, de natureza excepcional, e
sim as almas daqueles que já viveram na Terra, onde deixaram seu invólucro
corpóreo, e que hoje povoam os espaços, nos cercam, nos acotovelam sem cessar,
e, dentre eles, cada qual pode, por sinais incontestáveis, reconhecer seus
parentes e amigos e os que conhecera na Terra; pode-se acompanhá-los em todas
as fases de sua existência de além-túmulo, desde o instante em que abandonam o
corpo, e observar sua situação segundo o gênero de morte e o modo pelo qual
viveram na Terra. Enfim, soube-se que eles não são entes abstratos, imateriais,
no sentido absoluto da palavra; possuem um invólucro, a que chamamos
perispírito, espécie de corpo fluídico, vaporoso, diáfano, invisível no estado
normal, que, em certos casos e por uma espécie de condensação ou de disposição molecular,
pode tornar-se momentaneamente visível e mesmo tangível, e, desde então, ficou
explicado o fenômeno das aparições e do contato. Enquanto dura o corpo, esse
invólucro é um laço que o prende ao Espírito; quando, porém, o corpo morre, a
alma ou o Espírito, que é a mesma coisa, abandona-o, sem, contudo, deixar o
primeiro envoltório, do mesmo modo como despimos as peças exteriores da nossa
roupa, para só conservarmos as interiores; assim como o fruto despojado do
invólucro cortical conserva ainda o perisperma. É esse invólucro semimaterial
do Espírito que lhe serve de meio para a produção de diferentes fenômenos,
pelos quais ele se nos manifesta.
Tal
é, em poucas palavras, cavalheiro, a história do Espiritismo; bem vedes, e
reconhecereis ainda melhor quando o tiverdes estudado a fundo, que tudo nele é
o resultado da observação, e não de um sistema preconcebido.
Meios de comunicação
V. —
Falastes de meios de comunicação; podereis dar-me disso uma ideia, porquanto é
difícil compreender como podem esses seres invisíveis conversar conosco?
A.
K. — De boa vontade; vou fazê-lo, contudo, abreviadamente, porque isto exigiria
prolongado desenvolvimento, que encontrareis minuciosamente em O livro dos
médiuns. Mas o pouco que eu vos disser, agora, bastará para facilitar-vos a
compreensão do mecanismo e servirá, sobretudo, para vos dar uma ideia de
algumas das experiências, a que podereis assistir, antes de começar a vossa
iniciação. A existência desse envoltório semimaterial é já uma chave para a
explicação de muitas coisas e mostra-vos a possibilidade de certos fenômenos.
Quanto
aos meios, são muito variados e dependem tanto da natureza, mais ou menos apurada
dos Espíritos, quanto das disposições peculiares às pessoas que lhes servem de
intermediárias. O mais vulgar — o que se pode chamar universal — consiste na
intuição, isto é, nas ideias e pensamentos que eles nos sugerem; é este, porém,
um meio pouco apreciável, na generalidade dos casos; outros existem mais
materiais. Certos Espíritos se comunicam por pancadas, respondendo por sim ou
por não, ou designando as letras que devem formar as palavras. As pancadas
podem ser obtidas pelo movimento de oscilação de um objeto, de uma mesa, por
exemplo, que bate com o pé. Muitas vezes se fazem ouvir nas próprias
substâncias dos corpos, sem que estes se movimentem. Esse modo primitivo é
demorado e dificilmente se presta a comunicações de certo desenvolvimento; a escrita
substituiu-o, e é obtida de diferentes maneiras. Serviu-se no começo, e
serve-se ainda algumas vezes, de um objeto móvel, como uma prancheta, uma
cestinha, uma caixa, ao qual se adapta um lápis, cuja ponta pousa sobre o
papel. A natureza e a substância do objeto são indiferentes. O médium coloca as
mãos sobre esse objeto, ao qual transmite a influência que recebe do Espírito,
e o lápis traça os caracteres. O objeto assim empregado não é, propriamente
falando, mais que um apêndice da mão, uma espécie de porta-lápis.
Depois,
reconheceu-se a inutilidade desse intermediário, que não é senão uma
complicação de meios, cujo único mérito está em demonstrar, de modo mais
palpável, a independência do médium; este último pode escrever, segurando, ele
mesmo, o lápis.
Os
Espíritos manifestam-se ainda e podem transmitir seus pensamentos por sons
articulados, que se fazem ouvir, seja no ar, seja no interior do órgão
auditivo, pela voz do médium, pela vista, por desenhos, pela música e por
muitos outros meios que um estudo completo torna conhecidos. Os médiuns
possuem, para esses diferentes modos de comunicação, aptidões especiais que
dependem de sua organização. Assim, temos médiuns de efeitos físicos, isto é,
aptos para produzir fenômenos materiais, como pancadas, movimentos de corpos
etc.; há médiuns auditivos, falantes, videntes, desenhadores, músicos,
escreventes. Esta última faculdade é a mais comum, a que melhor se desenvolve
pelo exercício e também a mais preciosa, por ser a que permite comunicações
mais frequentes e rápidas.
O
médium escrevente apresenta numerosas variedades, das quais duas são muito
distintas. Para compreendê-las, é necessário saber-se o modo pelo qual se opera
o fenômeno. O Espírito atua, algumas vezes, diretamente sobre a mão do médium,
à qual dá um impulso totalmente independente da vontade deste, e sem que ele
tenha consciência do que escreve: é o médium escrevente mecânico. Outras vezes,
atuando sobre o cérebro do médium, seu pensamento se comunica com o deste que,
então, se bem que escrevendo de modo involuntário, tem consciência mais ou menos
nítida do que obtém: é o médium intuitivo; seu papel é exatamente o de um
intérprete, que transmite um pensamento que não é o seu e que, portanto, ele
deve compreender. Ainda que, neste caso, o pensamento do Espírito e o do médium
se confundam algumas vezes, a experiência ensina a distingui-los com
facilidade. Obtêm-se comunicações igualmente boas por esses dois gêneros de médiuns;
a vantagem dos que são mecânicos é proveitosa sobretudo para as pessoas que
ainda não estão convencidas. Ademais, a qualidade essencial de um médium está
na natureza dos Espíritos que o assistem, nas comunicações que recebe, antes
que nos meios de execução.
V. —
O processo parece-me dos mais simples. Poderia eu mesmo experimentá-lo?
A.
K. — Perfeitamente; digo mais: se possuirdes a faculdade mediúnica, tereis o
melhor meio de vos convencer, porque não podeis duvidar da vossa boa-fé.
Somente, aconselho-vos vivamente a não tentardes ensaio algum antes de acurado
estudo. As comunicações do além-túmulo são cercadas de mais dificuldades do que
se pensa; elas não estão isentas de inconvenientes e, mesmo, de perigos, para
os que não têm a necessária experiência. É o mesmo que aconteceria àquele que,
sem saber Química, tentasse fazer manipulações químicas; correria o risco de
queimar os dedos. V. — Há algum sinal pelo qual se possa reconhecer a posse
dessa aptidão?
A.
K. — Até o presente não se conhece um diagnóstico para a mediunidade; todos os
que julgamos descobrir, são sem valor; experimentar é o único meio de saber se
a faculdade existe. Além disso, os médiuns são muito numerosos e é raríssimo,
quando não o sejamos, não se encontrar algum em qualquer dos membros de nossa família,
ou nas pessoas que nos cercam. O sexo, a idade e o temperamento são
indiferentes; eles aparecem entre os homens e mulheres, entre crianças, velhos,
doentes e pessoas sadias.
Se a
mediunidade se traduzisse por um sinal exterior qualquer, isto implicaria a
permanência da faculdade, ao passo que ela é essencialmente móbil e fugidia.
Sua causa física está na assimilação, mais ou menos fácil, dos fluidos
perispirituais do encarnado e do Espírito desencarnado; sua causa moral está na
vontade do Espírito que se comunica, quando isto lhe apraz, e não segundo a
nossa vontade, donde resulta: 1o , que nem todos os Espíritos podem
comunicar-se indiferentemente por todos os médiuns; 2o , que todo médium pode
perder ou ver suspender-se a sua faculdade, quando ele menos o esperar.
Estas
poucas palavras bastam para mostrar que há nisto um sério estudo a fazer-se, a
fim de se poder explicar as variações que esse fenômeno apresenta. Seria, pois,
um erro crer que todo Espírito possa vir responder ao apelo que lhe é feito, e
se comunicar pelo primeiro médium de que se lance mão. Para que um Espírito se
comunique, é preciso: 1o , que lhe convenha fazê-lo; 2o , que sua posição ou
suas ocupações lho permitam; 3o , que encontre no médium um instrumento
apropriado à sua natureza. Em princípio, podemos comunicar-nos com os Espíritos
de todas as categorias, com os nossos parentes e amigos, com os mais elevados
como com os mais vulgares; porém, independente das condições individuais de possibilidade,
eles vêm mais ou menos de boa vontade segundo as circunstâncias e, sobretudo,
segundo a sua simpatia pelas pessoas que os chamam, e não pelo pedido do
primeiro que tenha a fantasia de evocá-los por um sentimento de curiosidade;
nestas circunstâncias, se eles, quando na Terra, não se incomodariam com elas,
depois da morte não o fazem também.
Os Espíritos
sérios só comparecem nas reuniões sérias, para onde os chamam com recolhimento
e para coisas sérias; não se prestam a responder a perguntas de curiosidade, de
prova, ou com um fim fútil, nem também a experiência alguma.
Os
Espíritos frívolos andam por toda parte; porém, nas reuniões sérias, calam-se e
conservam-se afastados para escutar, como fariam estudantes em uma assembleia
de doutos. Nas reuniões frívolas eles tomam a desforra, fazendo de tudo
divertimento, zombando, muitas vezes, dos assistentes, e respondendo a tudo sem
se importarem com a verdade.
Os
Espíritos denominados batedores e, geralmente, todos os que produzem
manifestações físicas são de ordem inferior, sem por isso serem essencialmente
maus; possuem uma aptidão, de alguma sorte especial, para os efeitos materiais;
os Espíritos superiores não se ocupam com essas coisas, assim como os sábios da
Terra não se entregam a exercícios de força muscular; quando aqueles precisam
que tais efeitos se deem, lançam mão dos atrasados, como nós nos servimos dos
trabalhadores para os serviços pesados.
Médiuns interesseiros
V. —
Antes de empreender um estudo de longo fôlego, há muita gente que deseja ter
certeza de que não vai perder o tempo, certeza que lhe poderia provir do fato
concludente, mesmo obtido a peso de ouro.
A.
K. — Aquele que não se quer dar ao trabalho de estudar, é antes guiado pela
curiosidade, que pelo desejo real de se instruir; ora, os Espíritos, assim como
eu, não gostam dos curiosos. Além disso, a cobiça é-lhes, sobretudo, antipática,
e eles recusam-se a prestar-lhe qualquer serviço; crer que Espíritos superiores
como Fénelon, Bossuet, Pascal, Santo Agostinho, se ponham às ordens do primeiro
que os chame, a tanto por hora, é fazer ideia bem falsa das nossas relações com
o mundo espiritual. Não, senhor. As comunicações de além-túmulo são assunto
muito grave e respeitabilíssimo para serem assim exibidas.
Sabemos
que os fenômenos espíritas não se produzem como o movimento das rodas de um
mecanismo, porquanto dependem da vontade dos Espíritos; mesmo admitindo-se que
um indivíduo possua aptidão mediúnica, nada lhe garante obter uma manifestação
em dado momento. Se os incrédulos são inclinados a suspeitar da boa-fé dos
médiuns em geral, muito pior seria se neles encontrassem o estímulo do
interesse; com razão se poderia suspeitar que o médium retribuído simulasse
quando o Espírito não o auxiliasse, pois que ele desejaria de qualquer forma
ganhar dinheiro. Além de que o desinteresse absoluto é a melhor garantia de
sinceridade, repugnaria à razão evocar por dinheiro os Espíritos das pessoas que
nos são caras, supondo que eles consintam nisso, o que é mais que duvidoso; em
todos os casos só se prestariam a isso Espíritos de classe inferior, pouco
escrupulosos a respeito de meios, e que não merecem confiança alguma; e estes
mesmos, muitas vezes, encontram um divertimento maldoso em frustrar as
combinações e os cálculos do seu evocador.
A
natureza da faculdade mediúnica opõe-se, pois, a que ela sirva de profissão, à
vista de sua dependência de vontade estranha à do médium, e de lhe poder ela, no
momento preciso, deixá-lo em falta, salvo se ele a suprir pela astúcia. Porém,
admitindo mesmo inteira boa-fé, desde que os fenômenos não se produzem à
vontade, seria puro acaso se, em sessão paga, se produzisse exatamente aquele
que desejávamos ver para nos convencermos. Dai 100.000 francos a um médium e
não conseguireis que ele obtenha que os Espíritos façam o que não querem; essa
dádiva, que viria desnaturar a intenção e transformá-la em violento desejo de
lucro, seria antes um motivo para que ele fosse malsucedido. Quando se está bem
compenetrado desta verdade — que a afeição e a simpatia são os mais poderosos
móveis de atração para os Espíritos —, não se pode deixar de compreender que não
lhes agradam as solicitações de alguém que tenha a ideia de servir-se deles
para ganhar dinheiro.
Aquele,
pois, que precisa de fatos que o convençam, deve provar aos Espíritos sua boa
vontade por uma observação séria e paciente, se deseja ser auxiliado; portanto
se é uma verdade que a fé não se impõe, não o é menos, que se não pode
comprá-la.
V. —
Compreendo esse raciocínio do ponto de vista moral; entretanto, não é justo que
aquele que emprega seu tempo, a bem da causa, não seja indenizado quando esse
tempo é roubado ao trabalho de que precisa para viver?
A.
K. — Primeiro: será mesmo no interesse da causa que ele o faz, ou no seu
próprio? Se ele deixou seu modo de vida, é porque não lhe satisfazia, e por esperar
ganhar mais, em um novo, ou ter menos fadigas. Não há sacrifício algum no
empregar o tempo em uma coisa de que se espera tirar lucro. É absolutamente o
mesmo que se se dissesse ser no interesse da humanidade que o padeiro fabrica o
pão. A mediunidade não é o único recurso; se ele não a tivesse, procuraria
ganhar a vida de outro modo. Os médiuns verdadeiramente sérios e devotados,
quando não possuem uma existência independente, procuram recursos no trabalho ordinário
e não abandonam suas profissões; eles não consagram à mediunidade senão o tempo
que lhe podem dar, sem prejuízo de outras ocupações; empregando parte do tempo
destinado aos divertimentos e repouso, nesse trabalho mais útil, eles se
mostram devotados, tornam-se apreciados e respeitados.
A
multiplicidade dos médiuns nas famílias torna, ademais, inúteis os médiuns de
profissão, ainda que estes ofereçam todas as garantias desejáveis, o que é
muito raro. Se não fosse o descrédito que acompanha esse gênero de exploração, para
o que me felicito de muito haver concorrido, os médiuns mercenários pululariam
e os jornais viriam sempre cheios de seus reclamos; ora, para um que fosse
leal, apresentar-se-iam cem charlatães que, abusando de uma faculdade real ou
simulada, fariam o maior dano ao Espiritismo. É, pois, um princípio: todos
quantos veem no Espiritismo coisa diferente de uma exibição de fenômenos
curiosos, que compreendem e tomam a peito a dignidade, consideração e os
verdadeiros interesses da Doutrina, reprovam toda espécie de especulação,
qualquer que seja a forma ou disfarce com que se apresente. Os médiuns sérios e
sinceros — e eu dou este nome aos que compreendem a santidade do mandato que
Deus lhes confiou — evitam até as aparências do que poderia fazer pairar sobre
eles a menor suspeita de cobiça; eles consideram uma injúria a acusação de
tirarem qualquer lucro da sua faculdade.
Convinde,
senhor, apesar de serdes incrédulo, que um médium nessas condições faria sobre
vós uma impressão totalmente diversa da que sentiríeis, se lhe tivésseis pago
para vê-lo trabalhar, ou, quando mesmo fôsseis admitido por favor, se
soubésseis que atrás de tudo aquilo havia uma questão de dinheiro; concordai
que vendo-o antes animado de um verdadeiro sentimento religioso, estimulado
pela fé somente, e não pelo desejo do ganho, involuntariamente o respeito por
ele se vos impunha; seja embora ele o mais humilde proletário, inspirar-vos-á
mais confiança, porque não há motivo algum para suspeitardes da sua lealdade. Pois
bem! Caro senhor, encontrareis mil como este, contra um que não esteja nas
mesmas condições, e é esta uma das causas que mais têm concorrido para o
crédito e propagação da Doutrina; ao passo que, se ela só tivesse intérpretes
interessados, não contaria a quarta parte dos adeptos que possui hoje.
É
perfeitamente compreensível que os médiuns de profissão sejam excessivamente
raros, pelo menos em França; eles são desconhecidos na maioria dos centros
espíritas da província, onde a reputação de mercenários bastaria para que os
excluíssem de todos os grupos sérios, e onde para eles o ofício não seria
lucrativo, por causa do descrédito de que se tornariam objeto e da concorrência
de médiuns desinteressados, que se encontram por toda parte. Para suprir, seja
a faculdade que lhes falta, seja a insuficiência da clientela, há falsos
médiuns que tudo aproveitam, servindo-se das cartas, da clara de ovo, da borra
de café etc., a fim de contentar a todos os gostos, esperando por esse meio, na
falta de Espíritos, atrair os que ainda creem nessas tolices. Se eles
unicamente a si prejudicassem, o mal não seria grande; porém, há pessoas que,
sem nada aprofundarem, confundem o abuso com a realidade, e disso se aproveitam
os mal-intencionados, para dizer que é nisso que consiste o Espiritismo. Já
vedes, pois, senhor, que se a exploração da mediunidade conduz a cometer abusos
prejudiciais à Doutrina, o Espiritismo sério tem razão de não aceitá-la, de
repelir o seu auxílio.
V. —
Tudo isso é muito lógico, concordo, mas os médiuns desinteressados não se acham
ao dispor de qualquer e sentimo-nos constrangidos de incomodá-los; escrúpulos
que não nos embaraçam, quando buscamos aquele que recebe uma paga, convencido
de que não lhe vamos roubar o tempo. Muita gente que se deseja convencer,
acharia muito mais facilidade se existissem médiuns públicos.
A.
K. — Se os médiuns públicos, como lhes chamais, não oferecem as garantias
precisas, como poderiam ser úteis para levar alguém à convicção? O
inconveniente que assinalais, não destrói os de muito mais gravidade, que vos
citei. Buscá-los-iam antes como divertimento, para ouvir a buena-dicha, do que
como meio de instrução. Aquele que, seriamente, deseja convencer-se encontra os
meios, mais cedo ou mais tarde, se tiver perseverança e boa vontade; porém,
quando não se está preparado para tal, não é por assistir a uma sessão que se
ficará convencido.
Prova
a experiência que por se trazer dessas sessões uma impressão desfavorável,
sai-se menos disposto à convicção, e talvez sem vontade alguma de prosseguir
num estudo em que nada se viu de sério. Ao lado, porém, das considerações
morais, os progressos da ciência espírita, fazendo-nos melhor conhecer as
condições em que se produzem as manifestações, mostram-nos, hoje, a dificuldade
material que se apresenta à sua produção, coisa de que ninguém a princípio
suspeitava: a necessidade de afinidades fluídicas entre o Espírito evocado e o
médium.
Ponho
de lado todo pensamento de fraude e embuste, e suponho que exista a mais
completa lealdade. Para que um médium de profissão possa oferecer toda
segurança às pessoas que o venham consultar, é necessário que ele possua uma
faculdade permanente universal, isto é, que ele se possa comunicar facilmente
com qualquer Espírito e a todo momento, para estar constantemente à disposição
do público, como um médico, e satisfazer a todas as evocações que lhe sejam
pedidas; ora, isto é o que não se encontra em médium algum, seja entre os
desinteressados, seja entre os outros, e isto por causas independentes da
vontade do Espírito, o que não posso desenvolver aqui, porque não estou fazendo
um curso de Espiritismo. Limito-me a dizer-vos que as afinidades fluídicas,
princípio do qual dimanam as faculdades mediúnicas, são individuais, e não
gerais, podendo existir do médium para tal Espírito, e não para tal outro; que,
sem essas afinidades, cujas variantes são múltiplas, as comunicações são incompletas,
falsas ou impossíveis; que, as mais das vezes, a assimilação fluídica entre o Espírito
e o médium só se estabelece depois de algum tempo, ou somente uma vez em dez
acontece que ela seja completa desde a primeira vez. A mediunidade, como vedes,
cavalheiro, é subordinada a leis, de alguma sorte orgânicas, às quais todo
médium está sujeito; ora, não se pode negar que isto é um obstáculo para a
mediunidade de profissão, pois que a possibilidade e a exatidão das
comunicações são um produto de causas que não dependem do médium nem do
Espírito.
Se,
pois, repelimos a exploração da mediunidade, não é nem por capricho, nem por
sistema, mas porque os próprios princípios que regem as nossas relações com o
mundo invisível, se opõem à regularidade e precisão necessárias naquele que se
põe à disposição do público, e a quem o desejo de satisfazer à clientela, que
lhe paga, arrasta ao abuso. Não concluo, do que tenho dito, que todos os
médiuns interesseiros sejam charlatães; digo somente que a ambição do ganho
impele ao charlatanismo e autoriza a suspeita de velhacaria. Quem deseja
convencer-se deve, primeiro que tudo, procurar elementos de sinceridade.
Médiuns e feiticeiros
V. —
Desde que a mediunidade não é mais que um meio de entrar em relação com as
potências ocultas, médiuns e feiticeiros são mais ou menos a mesma coisa.
A.
K. — Em todos os tempos houve médiuns naturais e inconscientes que, pelo
simples fato de produzirem fenômenos insólitos e incompreendidos, foram
qualificados de feiticeiros e acusados de pactuarem com o diabo; foi o mesmo
que se deu com a maioria dos sábios que dispunham de conhecimentos acima do
vulgar. A ignorância exagerou seu poder e, muitas vezes, eles mesmos abusaram
da credulidade pública, explorando-a; daí a justa reprovação que os feriu. Basta-nos
comparar o poder atribuído aos feiticeiros com a faculdade dos verdadeiros
médiuns, para conhecermos a diferença, mas a maioria dos críticos não se quer
dar a esse trabalho. Longe de fazer reviver a feitiçaria, o Espiritismo a
aniquila, despojando-a do seu pretenso poder sobrenatural, de suas fórmulas,
engrimanços, amuletos e talismãs, e reduzindo a seu justo valor os fenômenos
possíveis, sem sair das leis naturais.
A
semelhança que certas pessoas pretendem estabelecer, provém do erro em que
estão, julgando que os Espíritos estão às ordens dos médiuns; repugna à sua
razão crer que um indivíduo qualquer possa, à vontade, fazer comparecer o
Espírito de tal ou tal personagem, mais ou menos ilustre; nisto eles estão
perfeitamente com a verdade, e, se antes de apedrejarem o Espiritismo, se
tivessem dado ao trabalho de estudá-lo, veriam que ele diz positivamente que os
Espíritos não estão sujeitos aos caprichos de ninguém, que ninguém pode, à
vontade, constrangê-los a responder ao seu chamado; do que se conclui que os
médiuns não são feiticeiros.
V. —
Neste caso, todos os efeitos que certos médiuns acreditados obtêm, à vontade e
em público, não são, ao vosso ver, senão charlatanice?
A.
K. — Não o digo em absoluto. Tais fenômenos não são impossíveis, porque há
Espíritos de baixa categoria que se podem prestar à sua produção e que se
divertem, talvez por já terem sido prestidigitadores na vida terrena; também há
médiuns especialmente próprios para esse gênero de manifestações; porém, o
vulgar bom senso repele a ideia de virem os Espíritos, por menos elevados que
sejam, representar palhaçadas e fazer escamoteações para divertimento dos
curiosos. A obtenção desses fenômenos à vontade, e sobretudo em público, é
sempre suspeita; neste caso a mediunidade e a prestidigitação se tocam tão de
perto que é difícil muitas vezes distingui-las; antes de vermos nisso a ação
dos Espíritos, devemos observar minuciosamente e ter em conta, quer o caráter e
os antecedentes do médium, quer um grande número de circunstâncias que só o
estudo da teoria dos fenômenos espíritas nos pode fazer apreciar. Deve-se notar
que esse gênero de mediunidade, quando mediunidade nisso exista, limita-se a
produzir sempre o mesmo fenômeno, salvo pequenas variantes, o que não é muito
próprio para dissipar dúvidas. O desinteresse absoluto é a melhor garantia de
sinceridade.
Qualquer
que seja o grau de veracidade desses fenômenos, como efeitos mediúnicos, eles
produzirão bom resultado, por darem voga à ideia espírita. A controvérsia que
se estabelece a respeito provoca em muitas pessoas um estudo mais aprofundado. Não
é certamente aí que se deve ir beber instruções sérias sobre o Espiritismo, nem
sobre a filosofia da Doutrina; porém, é um meio de chamar a atenção dos
indiferentes e obrigar os recalcitrantes a falarem dele.
Diversidade dos
Espíritos
V. —
Falais de Espíritos bons ou maus, sérios ou frívolos; confesso- -vos que não
compreendo essa diferença; parece-me que, deixando o envoltório corporal, os
Espíritos se despojam das imperfeições inerentes à matéria; que a luz se deve
fazer para eles, sobre todas as verdades que nos são ocultas, e que eles ficam
libertos dos prejuízos terrenos.
A.
K. — Sem dúvida eles ficam livres das imperfeições físicas, isto é, das dores e
enfermidades corporais; porém, as imperfeições morais são do Espírito, e não do
corpo. Entre eles há alguns que são mais ou menos adiantados, moral e
intelectualmente. Seria erro acreditar que os Espíritos, deixando o corpo
material, recebem logo a luz da verdade. É possível admitirdes que, quando
morrerdes, não haja distinção alguma entre o vosso Espírito e o de um selvagem?
Assim sendo, de que vos serviria ter trabalhado para a vossa instrução e
melhoramento, quando um vadio, depois da morte, será tanto quanto vós? O
progresso dos Espíritos faz-se gradualmente e, algumas vezes, com muita
lentidão. Entre eles alguns há que, por seu grau de aperfeiçoamento, veem as
coisas sob um ponto de vista mais justo do que quando estavam encarnados;
outros, pelo contrário, conservam ainda as mesmas paixões, os mesmos
preconceitos e erros, até que o tempo e novas provas os venham esclarecer.
Notai bem que o que digo é fruto da experiência, colhido no que eles nos dizem
em suas comunicações. É, pois, um princípio elementar do Espiritismo que
existem Espíritos de todos os graus de inteligência e moralidade.
V. —
Por que não são perfeitos todos os Espíritos? Tê-los-á Deus assim criado em tão
diversas categorias?
A.
K. — É o mesmo que perguntar por que todos os alunos de um colégio não estão
cursando a aula de Filosofia. Todos os Espíritos têm a mesma origem e o mesmo
destino; as diferenças que os separam não constituem espécies distintas, mas
exprimem diversos graus de adiantamento. Os Espíritos não são perfeitos, porque
não são mais do que as almas dos homens, que não atingiram também a perfeição;
e, pela mesma razão, os homens não são perfeitos por serem encarnações de
Espíritos mais ou menos adiantados. O mundo corporal e o mundo espiritual estão
em contínuo revezamento; pela morte do corpo, o mundo corporal fornece seu
contingente ao espiritual; pelos nascimentos, este alimenta a humanidade. Em
cada nova existência, o Espírito dá maior ou menor passo no caminho do
progresso, e, quando adquiriu na Terra a soma de conhecimentos e a elevação
moral que o nosso globo comporta, ele o deixa, para ir viver em mundo mais
elevado onde vai aprender novas coisas.
Os
Espíritos que formam a população invisível da Terra são, de alguma sorte, o
reflexo do mundo corporal; neles se encontram os mesmos vícios e as mesmas
virtudes; há entre eles sábios, ignorantes e charlatães, prudentes e levianos,
filósofos, raciocinadores, sistemáticos; como se não se despissem de seus
prejuízos, todas as opiniões políticas e religiosas têm entre eles
representantes; cada um fala segundo suas ideias, e o que eles dizem é, muitas
vezes, apenas a sua opinião; eis o motivo por que se não deve crer cegamente em
tudo o que dizem os Espíritos.
V. —
Sendo assim, apresenta-se imensa dificuldade: nesses conflitos de opiniões
diversas, como distinguir-se o erro da verdade? Não descubro a utilidade dos
Espíritos, nem o que ganhamos em conversar com eles.
A.
K. — Quando eles apenas servissem para dar-nos a prova de sua existência e de
serem as almas dos homens, só isto seria de grande importância para quantos
ainda duvidam que tenham uma alma e ignoram o que será deles depois da morte.
Como
todas as ciências filosóficas, esta exige longos estudos e minuciosas
observações; é só assim que se aprende a distinguir a verdade da impostura, e
que se adquire os meios de afastar os Espíritos enganadores. Acima dessa turba
de baixa esfera, existem os Espíritos superiores, que só têm em vista o bem, e
cuja missão é guiar os homens pelo bom caminho; cumpre-nos sabê-los apreciar e
compreender. Estes nos vêm ensinar grandes coisas, mas não julgueis que o
estudo dos outros seja inútil; para bem conhecer um povo é necessário estudá-lo
sob todas as faces. Vós mesmos tendes a prova disso; pensáveis que bastava aos
Espíritos deixarem seu envoltório corpóreo para que ficassem isentos de todas
as suas imperfeições; ora, são as comunicações com eles que nos ensinaram que isto
não se dá, e fizeram-nos conhecer o verdadeiro estado do mundo espiritual, que
a todos nós interessa no mais alto ponto, pois que todos temos que ir para lá. Quanto
aos erros que se podem originar da divergência de opiniões entre os Espíritos,
eles desaparecem por si mesmos, à medida que se aprende a distinguir os bons
dos maus, os sábios dos ignorantes, os sinceros dos hipócritas, absolutamente
como se dá entre nós; então, o bom senso repelirá as falsas doutrinas.
V. —
A minha observação subsiste sempre no ponto de vista das questões científicas e
outras que podemos submeter aos Espíritos. A divergência de suas opiniões,
sobre as teorias que dividem os sábios, deixa-nos na incerteza. Compreendo que,
não possuindo todos o mesmo grau de instrução, não podem saber tudo, mas,
então, que peso pode ter para nós a opinião daqueles que sabem, quando não
podemos distinguir quem erra ou quem tem razão? Vale tanto dirigirmo-nos aos
homens como aos Espíritos.
A.
K. — Essa reflexão é ainda uma consequência da ignorância do verdadeiro caráter
do Espiritismo. Aquele que supõe nele achar meio fácil de saber tudo, de tudo
descobrir, labora em grande erro. Os Espíritos não estão encarregados de
trazer-nos a ciência já feita; seria, realmente, muito cômodo se nos bastasse
pedir para sermos logo servidos, ficando assim dispensados do trabalho de
estudar. Deus quer que trabalhemos, que o nosso pensamento se exercite; e só
por esse preço adquiriremos a ciência; os Espíritos não vêm libertar-nos dessa
necessidade: eles são o que são; o Espiritismo tem por objeto estudá-los, a fim
de que, por analogia, fiquemos sabendo o que seremos um dia; e não para nos
fazer conhecer o que nos deve ser oculto, ou revelar-nos as coisas antes do
tempo próprio.
Tampouco
os Espíritos são leitores da buena-dicha, e aquele que se vangloria de obter
deles certos segredos, prepara para si estranhas decepções da parte dos
Espíritos galhofeiros; em uma palavra, o Espiritismo é uma ciência de
observação, e não uma arte de adivinhar e especular. Nós o estudamos com o fim
de conhecer o estado das individualidades do mundo invisível, as relações que
nos prendem a elas, sua ação oculta sobre o mundo visível, e não para dele
tirar qualquer vantagem material. Deste ponto de vista, não há Espírito algum
cujo estudo não nos traga alguma utilidade; alguma coisa aprendemos sempre com
todos eles; as suas imperfeições, os defeitos, a incapacidade, a ignorância
mesmo, são outros tantos objetos de observação, que nos iniciam na natureza
íntima desse mundo; e quando eles não nos instruam, nós, estudando-os, nos
instruímos, como fazemos quando observamos os costumes de um povo desconhecido
para nós. Quanto aos Espíritos esclarecidos, esses nos ensinam muito, porém
sempre nos limites do possível; nunca lhes perguntemos o que eles não podem ou
não devem revelar; contentemo-nos com o que nos dizem; querer ir além é
sujeitarmo-nos às manifestações dos Espíritos frívolos, sempre dispostos a
falar de tudo. A experiência nos ensina a julgar do grau de confiança que lhes
devemos conceder.
Utilidade prática das
manifestações
V. —
Admitamos que a coisa esteja comprovada, o Espiritismo reconhecido como
realidade; qual a sua utilidade prática? Não se tendo sentido a sua falta até o
presente, parece-me que se podia continuar a dispensá-lo, e viver sem ele,
muito tranquilamente.
A.
K. — Podíamos dizer o mesmo das vias férreas e do vapor, sem os quais também se
vivia muito bem.
Se
utilidade prática, para vós, é dar meios de passar boa vida, fazer fortuna,
conhecer o futuro, descobrir minas de carvão ou tesouros ocultos, arrecadar
heranças, libertar-se do trabalho de estudar, o Espiritismo não na tem; ele não
pode produzir altas e baixas na Bolsa, nem transformar-se em ações de Bancos,
nem mesmo fornecer inventos já prontos e no estado de serem explorados. Sob tal
ponto de vista, quantas ciências deixariam de ser úteis! Quantas delas não
oferecem vantagem alguma, comercialmente falando! Os homens passavam igualmente
bem, antes da descoberta dos novos planetas, antes que se soubesse ser a Terra,
e não o Sol, que se move, antes que se conhecesse o mundo microscópico e outras
tantas coisas. O camponês, para viver e fazer brotar seu trigo, não precisa saber
o que seja um planeta. Para que, pois, se entregam os sábios a esses estudos? Há
alguém que ouse dizer que eles perdem o tempo? Tudo que serve para erguer uma
ponta do véu que nos envolve, ajuda o desenvolvimento da inteligência, alarga o
círculo das ideias, fazendo-nos melhor compreender as leis da natureza. Ora, o
mundo dos Espíritos existe em virtude de uma dessas leis naturais, e o
Espiritismo nos faz conhecê-lo; ele nos mostra a influência que o mundo
invisível exerce sobre o visível e as relações existentes entre eles, como a
Astronomia nos ensina as que ligam os astros à Terra; ele no-lo faz ver como
uma das forças que regem o universo e contribuem para a manutenção da harmonia
geral. Supondo que a isso se limitasse a sua utilidade, já não seria de grande importância
a revelação de uma tal potência, abstraindo-se mesmo de toda a sua doutrina
moral? De nada valerá um mundo inteiro novo que se nos revela, quando o
conhecimento dele nos conduz à solução de tão grande número de problemas, até
então insolúveis; quando ele nos inicia nos mistérios do além-túmulo, que nos
devem interessar de algum modo, visto que todos nós, tarde ou cedo, temos de
transpor esse marco fatal? O Espiritismo possui, porém, outra utilidade, mais
positiva: é a natural influência moral que exerce. Ele é a prova patente da
existência da alma, da sua individualidade depois da morte, da sua
imortalidade, da sua sorte futura; é, pois, a destruição do materialismo, não
pelo raciocínio, mas por fatos. Não convém pedir-lhe senão o que ele pode dar,
e nunca o que está fora dos limites do seu fim providencial.
Antes
dos progressos sérios da Astronomia, acreditava-se na Astrologia. Será razoável
dizer-se que a Astronomia para nada serve, porque já não se pode encontrar na
influência dos astros o prognóstico do destino? Assim como a Astronomia
destronou os astrólogos, o Espiritismo veio destronar os adivinhos, os
feiticeiros e os que liam a buena-dicha. Ele é, para a magia, o que é a
Astronomia para a Astrologia, a Química para a Alquimia.
Loucura, suicídio e
obsessão
V. —
Certas pessoas consideram as ideias espíritas como capazes de perturbar as
faculdades mentais, pelo que acham prudente deter-lhes a propagação.
A.
K. — Deveis conhecer o provérbio: “Quem quer matar o cão — diz que o cão está
danado.” Não é, portanto, estranhável que os inimigos do Espiritismo procurem
agarrar-se a todos os pretextos; como este lhes pareceu próprio para despertar
temores e suscetibilidades, empregam-no logo, conquanto não resista ao mais
ligeiro exame. Ouvi, pois, a respeito dessa loucura, o raciocínio de um louco.
Todas
as grandes preocupações do espírito podem ocasionar a loucura; as Ciências, as
Artes, a Religião mesmo, fornecem o seu contingente. A loucura provém de certo
estado patológico do cérebro, instrumento do pensamento; estando o instrumento
desorganizado, o pensamento fica alterado. A loucura é, pois, um efeito
consecutivo, cuja causa primária é uma predisposição orgânica, que torna o
cérebro mais ou menos acessível a certas impressões; e isto é tão real que
encontrareis pessoas que pensam excessivamente e não ficam loucas, ao passo que
outras enlouquecem sob o influxo da menor excitação. Existindo uma
predisposição para a loucura, toma esta o caráter de preocupação principal, que
então se torna ideia fixa; esta poderá ser a dos Espíritos, num indivíduo que
deles se tenha ocupado, como poderá ser a de Deus, dos anjos, do diabo, da
fortuna, do poder, de uma ciência, da maternidade, de um sistema político ou
social. É provável que o louco religioso se tivesse tornado um louco espírita,
se o Espiritismo fosse a sua preocupação dominante. É certo que um jornal disse
que se contavam, só em uma localidade da América, de cujo nome não me recordo,
4.000 casos de loucura espírita, mas é também sabido que os nossos adversários
têm a ideia fixa de se crerem os únicos dotados de razão; é uma esquisitice
como outra qualquer. Para eles, nós somos todos dignos de um hospital de
doidos, e, por consequência, os 4.000 espíritas da localidade em questão eram
considerados como loucos. Dessa espécie, os Estados Unidos contam centenas de
milhares, e todos os países do mundo um número ainda muito maior. Esse gracejo
de mau gosto começa a não ter valor, desde que tal moléstia vai invadindo as classes
mais elevadas da sociedade. Falam muito do caso de Victor Hennequin, mas se
esquecem que, antes de se ocupar com os Espíritos, já ele havia dado provas de
excentricidade nas suas ideias; se as mesas girantes não tivessem então
aparecido (as quais, segundo um trocadilho bem espirituoso dos nossos
adversários, lhe fizeram girar a cabeça), sua loucura teria seguido outro rumo.
Eu
digo, pois, que o Espiritismo não tem privilégio algum, nesse sentido, mas vou
ainda além: afirmo que, bem compreendido, ele é um preservativo contra a
loucura e o suicídio.
Entre
as causas mais numerosas de excitação cerebral, devemos contar as decepções, os
desastres, as afeições contrariadas, as quais são também as mais frequentes
causas do suicídio. Ora, o verdadeiro espírita vê as coisas deste mundo de um ponto
de vista tão elevado, que as tribulações não são para eles senão os incidentes
desagradáveis de uma viagem. Aquilo que em outro qualquer produziria violenta
comoção, afeta-o mediocremente. Ele sabe que os dissabores da vida são provas
que servirão para o seu adiantamento, se as sofrer sem murmurar, porque sua
recompensa será proporcional à coragem com que as houver suportado. Suas
convicções dão-lhe, pois, uma resignação que o preserva do desespero e, por consequência,
de uma causa incessante de loucura e de suicídio. Ele sabe, além disso, pelo
espetáculo que lhe dão as comunicações com os Espíritos, a sorte deplorável dos
que abreviam voluntariamente os seus dias, e este quadro é bem de molde a
fazê-lo refletir; também é considerável o número dos que por esse meio têm sido
detidos nesse funesto declive. É um dos grandes resultados do Espiritismo.
Em o
número das causas de loucura, devemos também colocar o medo, principalmente do
diabo, que já tem desarranjado mais de um cérebro. Sabe-se o número de vítimas
que se tem feito, ferindo as imaginações fracas com esse painel que, por
detalhes horrorosos, capricham em tornar mais assustador. O diabo, dizem, só
causa medo às crianças, é um freio para corrigi-las; sim, como o papão e o
lobisomem, que as contêm por algum tempo, tornando-se elas piores que antes,
quando lhes perdem o medo; mas, em troca desse pequeno resultado, não contam as
epilepsias que têm sua origem nesse abalo de cérebros tão delicados.
Não
confundamos a loucura patológica com a obsessão; esta não provém de lesão
alguma cerebral, mas da subjugação que Espíritos malévolos exercem sobre certos
indivíduos, e que, muitas vezes, têm as aparências da loucura propriamente
dita. Esta afecção, muito frequente, é independente de qualquer crença no
Espiritismo e existiu em todos os tempos. Neste caso, a medicação comum é
impotente e mesmo prejudicial. Fazendo conhecer esta nova causa de perturbação
orgânica, o Espiritismo nos oferece, ao mesmo tempo, o único meio de vencê-la,
agindo não sobre o enfermo, mas sobre o Espírito obsessor. O Espiritismo é o
remédio, e não a causa do mal.
Esquecimento do
passado
V. —
Não consigo explicar a mim mesmo como pode o homem aproveitar da experiência
adquirida em suas anteriores existências, quando não se lembra delas, pois que,
desde que lhe falta essa reminiscência, cada existência é para ele qual se fora
a primeira; deste modo, está sempre a recomeçar. Suponhamos que cada dia, ao
despertar, perdemos a memória de tudo quanto fizemos no dia anterior; quando
chegássemos aos 70 anos, não estaríamos mais adiantados do que aos 10; ao passo
que recordando as nossas faltas, inaptidões e punições que disso nos provieram,
esforçar-nos-emos por evitá-las. Para me servir da comparação que fizestes do
homem, na Terra, com o aluno de um colégio, eu não compreendo como este poderia
aproveitar as lições da quarta classe, não se lembrando do que aprendeu na
anterior. Essas soluções de continuidade na vida do Espírito interrompem todas
as relações e fazem dele, de alguma sorte, uma entidade nova; do que podemos
concluir que os nossos pensamentos morrem com cada uma das nossas existências,
para renascer em outra, sem consciência do que fomos; é uma espécie de
aniquilamento.
A.
K. — De pergunta em pergunta, levar-me-eis a fazer um curso completo de
Espiritismo; todas as objeções que apresentais são naturais em quem ainda nada
conhece, mas que, mediante estudo sério, pode encontrar-lhes respostas muito
mais explícitas do que as que posso dar em sumária explicação que, por certo,
deve sempre ir provocando novas questões. Tudo se encadeia no Espiritismo, e,
quando se toma o conjunto, vê-se que seus princípios emanam uns dos outros,
servindo-se mutuamente de apoio; e, então, o que parecia uma anomalia contrária
à justiça e à sabedoria de Deus, se torna natural e vem confirmar essa justiça
e essa sabedoria. Tal é o problema do esquecimento do passado, que se prende a outras
questões de não menor importância e, por isso, não farei aqui senão tocar
levemente o assunto.
Se
em cada uma de suas existências um véu esconde o passado do Espírito, com isso
nada perde ele das suas aquisições, apenas esquece o modo por que as
conquistou. Servindo-me ainda da comparação supra com o aluno, direi que pouco
importa saber onde, como, com que professores ele estudou as matérias de uma
classe, uma vez que as saiba, quando passa para a classe seguinte. Se os
castigos o tornaram laborioso e dócil, que lhe importa saber quando foi
castigado por preguiçoso e insubordinado? É assim que, reencarnando, o homem
traz por intuição e como ideias inatas, o que adquiriu em ciência e moralidade.
Digo em moralidade porque se, no curso de uma existência, ele se melhorou, se
soube tirar proveito das lições da experiência, se tornará melhor quando
voltar; seu Espírito, amadurecido na escola do sofrimento e do trabalho, terá
mais firmeza; longe de ter de recomeçar tudo, ele possui um fundo que vai
sempre crescendo e sobre o qual se apoia para fazer maiores conquistas.
A
segunda parte da vossa objeção, relativa ao aniquilamento do pensamento, não
tem base mais segura, porque esse olvido só se dá durante a vida corporal; uma
vez terminada ela, o Espírito recobra a lembrança do seu passado; então poderá
julgar do caminho que seguiu e do que lhe resta ainda fazer; de modo que não há
essa solução de continuidade em sua vida espiritual, que é a vida normal do
Espírito. Esse esquecimento temporário é um benefício da Providência; a
experiência só se adquire, muitas vezes, por provas rudes e terríveis
expiações, cuja recordação seria muito penosa e viria aumentar as angústias e
tribulações da vida presente. Se os sofrimentos da vida parecem longos, que
seria se a eles se juntasse a lembrança do passado? Vós, por exemplo, meu
amigo, sois hoje um homem de bem, mas talvez devais isso aos rudes castigos que
recebestes pelos malefícios que hoje vos repugnariam à consciência; ser-vos-ia
agradável a lembrança de ter sido outrora enforcado por vossa maldade? Não vos
perseguiria a vergonha de saber que o mundo não ignorava o mal que tínheis
feito? Que vos importa o que fizestes e o que sofrestes para expiar, quando
hoje sois um homem estimável? Aos olhos do mundo, sois um homem novo; e aos
olhos de Deus, um Espírito reabilitado. Livre da reminiscência de um passado
importuno, viveis com mais liberdade; é para vós um novo ponto de partida;
vossas dívidas anteriores estão pagas, cumprindo-vos ter cuidado de não
contrair outras.
Quantos
homens desejariam assim poder, durante a vida, lançar um véu sobre os seus
primeiros anos! Quantos, ao chegar ao termo de sua carreira, não têm dito: “Se
eu tivesse de recomeçar, não faria mais o que fiz!” Pois bem, o que eles não
podem fazer nesta mesma vida, fá-lo-ão em outra; em uma nova existência, seu
Espírito trará, em estado de intuição, as boas resoluções que tiver tomado. É
assim que se efetua gradualmente o progresso da humanidade.
Suponhamos
ainda — o que é um caso muito comum — que em vossas relações, em vossa família
mesmo se encontre um indivíduo que vos deu outrora muitos motivos de queixa,
que talvez vos arruinou, ou desonrou em outra existência, e que, Espírito
arrependido, veio encarnar-se em vosso meio, ligar-se a vós pelos laços de
família, a fim de reparar suas faltas para convosco, por seu devotamento e
afeição; não vos acharíeis mutuamente na mais embaraçosa posição, se ambos vos lembrásseis
de vossas passadas inimizades? Em vez de se extinguirem, os ódios se
eternizariam.
Disso
resulta que a reminiscência do passado perturbaria as relações sociais e seria
um tropeço ao progresso. Quereis uma prova? Supondo que um indivíduo condenado
às galés tome a firme resolução de tornar-se um homem de bem, que acontece
quando ele termina o cumprimento da pena? A sociedade o repele, e essa repulsa
o lança de novo nos braços do vício. Se, porém, todos desconhecessem os seus
antecedentes, ele seria bem acolhido; e, se ele mesmo os esquecesse, poderia
ser honesto e andar de cabeça erguida, em vez de ser obrigado a curvá-la sob o peso
da vergonha do que não pode olvidar.
Isto
está em perfeita concordância com a Doutrina dos Espíritos, a respeito dos
mundos superiores ao nosso planeta, nos quais, só reinando o bem, a lembrança
do passado nada tem de penosa; eis por que seus habitantes se recordam da sua
existência precedente, como nós nos recordamos hoje do que ontem fizemos. Quanto
à lembrança do que fizeram em mundos inferiores, ela produz neles a impressão
de um mau sonho.
Elementos de
convicção
V. —
Convenho, ilustre amigo, que do ponto de vista filosófico, a Doutrina Espírita
é perfeitamente racional, mas fica sempre de pé a questão das manifestações,
que não pode ser resolvida senão por fatos; ora, é a realidade destes que muita
gente contesta, e não deveis achar extraordinário o desejo que vos manifestam
de testemunhá-los.
A.
K. — Acho-o muito natural; todavia, como eu procuro que eles sejam
aproveitados, explico em que condições convêm que cada um se coloque, para
melhor observá-los e, sobretudo, compreendê-los; ora, quem não aceita essas
condições, mostra não ter sério desejo de esclarecer-se, e com tal pessoa é
inútil perdermos tempo.
Convireis,
também, que seria singular que tão racional filosofia tivesse saído de fatos
ilusórios e controvertidos. Em boa lógica, a realidade do efeito implica a da
causa que o produz; se um é verdadeiro, a outra não pode ser falsa, porque,
onde não há árvores, não se pode colher frutos.
Nem
todos, é certo, testemunharam os fatos, porque não se colocaram nas condições
precisas para observá-los; não tiveram a paciência e a perseverança exigidas.
Mas isso também se dá com todas as ciências: o que uns não fazem, é feito por
outros; todos os dias, aceitamos o resultado dos cálculos astronômicos, sem que
nós mesmos os façamos. Seja como for, se achais a filosofia boa, podeis
aceitá-la como aceitaríeis outra qualquer, conservando vossa opinião sobre as
vias e meios que a ela conduziram, ou, ao menos, não a admitindo senão a título
de hipótese, até mais ampla constatação.
Os
elementos de convicção não são os mesmos para todos; o que convence a uns, não
produz impressão alguma em outros; assim sendo, é preciso um pouco de tudo. É,
porém, um engano crer-se que as experiências físicas sejam o único meio de
convencer. Notei que em algumas pessoas os mais importantes fenômenos não produziram
a menor impressão, ao passo que uma simples resposta escrita venceu todas as
dúvidas. Quando se vê um fato que não se compreende, quanto mais extraordinário
ele é, mais suspeitas desperta e mais o pensamento se esforça para lhe dar uma
causa vulgar; se ele, porém, for compreendido, é logo admitido por ter uma
razão de ser, desaparecendo o maravilhoso e o sobrenatural. Certamente as
explicações que vos acabo de dar, nesta conversa, longe estão de ser completas,
mas sumárias como são, estou persuadido de que vos levarão a refletir; e, se as
circunstâncias vos fizerem testemunhar alguns fatos de manifestação, vê-los-eis
com menor prevenção, porque possuireis uma base onde firmar o vosso raciocínio.
Há
duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina
filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram
e creem tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica;
para elas, o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a
ciência; eles a veem tão grande, tão racional, que nela encontram tudo quanto
pode satisfazer às suas aspirações interiores, à parte o fato das
manifestações; do que concluem que, supondo não existissem as manifestações, a
doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolve uma multidão de
problemas reputados insolúveis. Quantos me disseram que essas ideias estavam em
germe no seu cérebro, conquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio
coordená-las, dar-lhes corpo, e foi para eles como um raio de luz. É o que
explica o número de adeptos que a simples leitura de O livro dos espíritos
produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca tivéssemos passado
das mesas giratórias e falantes?
V. —
O senhor tinha razão de dizer que das mesas giratórias e falantes saiu uma
doutrina filosófica, e longe estava eu de suspeitar as consequências que
surgiram de um fato encarado como simples objeto de curiosidade. Agora vejo
quanto é vasto o campo aberto pelo vosso sistema.
A.
K. — Nisso vos contesto, caro senhor; dais-me subida honra atribuindo-me esse
sistema quando ele não me pertence. Ele foi totalmente deduzido do ensino dos
Espíritos. Eu vi, observei, coordenei e procuro fazer compreender aos outros
aquilo que compreendo; esta é a parte que me cabe. Há entre o Espiritismo e
outros sistemas filosóficos esta diferença capital; que estes são todos obra de
homens, mais ou menos esclarecidos, ao passo que, naquele que me atribuís, eu
não tenho o mérito da invenção de um só princípio. Diz-se: a filosofia de
Platão, de Descartes, de Leibnitz; nunca se poderá dizer: a doutrina de Allan
Kardec; e isto, felizmente, pois que valor pode ter um nome em assunto de
tamanha gravidade? O Espiritismo tem auxiliares de maior preponderância, ao
lado dos quais somos simples átomos.
Sociedade Espírita de
Paris
V. —
Tendes uma sociedade que se preocupa com esses estudos: ser-me-ia possível
fazer parte dela?
A.
K. — Por ora, ainda não; porque se não há, para ser nela recebido, necessidade
de ser doutor em Espiritismo, há, contudo, a de ter-se sobre ele ao menos
ideias mais firmes do que as vossas. Como a Sociedade não deseja ser perturbada
nos seus estudos, ela não admite os que lhe viriam fazer perder tempo com
questões elementares, nem os que, não simpatizando com seus princípios e
convicções, lançariam a desordem no seu seio, com discussões intempestivas ou
com o espírito de contradição. É uma sociedade científica, como tantas outras,
que se ocupa de aprofundar os diferentes pontos da ciência espírita e procura
esclarecer-se; é o centro ao qual convergem ensinos colhidos em todas as partes
do mundo e onde se elaboram e coordenam questões que se relacionam com o
progresso da Ciência, mas não é uma escola nem um curso de ensino elementar.
Mais tarde, quando as vossas convicções estiverem fortalecidas pelo estudo, ela
decidirá se vos deve admitir. Enquanto esperais, podereis assistir, como
visitante, a uma ou duas sessões, com a condição de não fazer reflexão alguma
de natureza a melindrar quem quer que seja; do contrário, eu, que vos vou
apresentar, incorreria na censura dos meus colegas, e a porta vos seria
interdita. Aí encontrareis uma reunião de homens graves e de boa sociedade, cuja
maioria se recomenda pela superioridade do seu saber e posição social, e que
não consentiria, àqueles que recebe em seu seio, se afastarem das conveniências,
no que quer que seja; não creais, pois, que ela convide o público e chame o
primeiro recém-vindo para assistir às suas sessões. Como não faz demonstrações
com o fim de satisfazer curiosidades, ela afasta com cuidado os curiosos. Aqueles,
pois, que supõem ir aí achar uma distração e uma espécie de espetáculo, ficarão
desapontados e melhor farão se lá não forem. Eis por que ela recusa admitir,
mesmo como simples visitantes, as pessoas que não conhece, ou aquelas cujas
disposições hostis são notórias.
Interdição do
Espiritismo
V. —
Solicito-vos uma última resposta: O Espiritismo tem poderosos inimigos; não
poderiam eles interditar-lhe a prática e as sociedades e, por esse meio,
impedir-lhe a propagação?
A.
K. — Seria um modo de perder a partida um pouco mais cedo, porque a violência é
o argumento daqueles que não têm boas razões. Se o Espiritismo é uma quimera,
ele cairá por si mesmo, sem que para isso se esforcem tanto; se o perseguem é
porque o temem, e só uma coisa séria pode causar temor. Se, ao contrário, é uma
realidade, então está em a natureza, como vo-lo disse, e ninguém com um traço
de pena pode revogar uma lei natural.
Se
as manifestações espíritas fossem privilégio de um homem, não há dúvida que,
arredando-se esse homem, se poria um termo às manifestações; infelizmente para
os adversários, elas não são mistério para pessoa alguma; aí não há segredos,
nada oculto, tudo se passa às claras; elas estão à disposição de todo o mundo e
se produzem desde o palácio até a mansarda. Podem interdizer-lhe o exercício público;
porém, é assaz sabido que não é em público que elas mais se dão; é na
intimidade; ora, desde que todos podem ser médiuns, quem impedirá que uma
família no seu lar, que um indivíduo no silêncio do seu gabinete, que um
prisioneiro em seu cárcere, tenha comunicações com os Espíritos, mesmo nas
barbas da polícia e sem que esta o saiba? Admitamos, entretanto, que um governo
seja forte bastante para impedi-los de trabalhar em suas casas; conseguirá
também que o não façam na de seus vizinhos, no mundo inteiro, quando não há
país algum, nos dois hemisférios, em que não se encontrem médiuns?
O
Espiritismo, além disso, não tem sua fonte entre os homens; ele é obra dos
Espíritos, que não podem ser queimados nem encarcerados.
Ele
consiste na crença individual, e não nas sociedades, que de nenhuma sorte são
necessárias. Se chegassem a destruir todos os livros espíritas, os Espíritos
ditariam outros.
Em
resumo, o Espiritismo é hoje um fato consumado; ele já conquistou o seu lugar
na opinião pública e entre as doutrinas filosóficas; é, pois, preciso que
aqueles, a quem ele não convém, se resignem a vê-lo ao seu lado, restando-lhes
a liberdade de recusá-lo.
Terceiro diálogo – O
padre
Um
abade. — Permitir-me-eis, senhor, dirigir-vos, por minha vez, algumas
perguntas?
A.
K. — De boa mente, reverendo; mas, antes de responder a elas, creio útil
fazer-vos conhecer o terreno em que me devo colocar perante vós.
Primeiro
que tudo, cumpre-me declarar que não tenho a pretensão de vos converter às
nossas ideias. Se desejardes conhecê-las pormenorizadamente, encontrá-las-eis
nos livros em que estão expostas; neles podereis estudá-las à vontade e
aceitá-las ou rejeitá-las.
O
Espiritismo tem por fim combater a incredulidade e suas funestas consequências,
fornecendo provas patentes da existência da alma e da vida futura; ele se
dirige, pois, àqueles que em nada creem ou que de tudo duvidam, e o número
desses não é pequeno, como muito bem sabeis; os que têm fé religiosa e a quem
esta fé satisfaz, dele não têm necessidade. Àquele que diz: “Eu creio na
autoridade da Igreja e não me afasto dos seus ensinos, sem nada buscar além dos
seus limites”, o Espiritismo responde que não se impõe a pessoa alguma e que
não vem forçar nenhuma convicção. A liberdade de consciência é consequência da
liberdade de pensar, que é um dos atributos do homem; e o Espiritismo, se não a
respeitasse, estaria em contradição com os seus princípios de liberdade e
tolerância. A seus olhos, toda crença, quando sincera e não permita ao homem fazer
mal ao próximo, é respeitável, mesmo que seja errônea. Se alguém fosse por sua
consciência arrastado a crer, por exemplo, que é o Sol que gira ao redor da
Terra, nós lhe diríamos: “Acreditai-o se quiserdes, porque isso não fará que
esses dois astros troquem os seus papéis”, mas assim como não procuramos
violentar-vos a consciência, respeitai também a nossa. Se transformardes,
porém, uma crença, de si mesma inocente, em instrumento de perseguição, ela
então se tornará nociva e pode ser combatida.
Tal
é, senhor abade, a linha de conduta que tenho seguido com os ministros dos
diversos cultos que a mim se hão dirigido. Quando eles me interpelaram sobre
alguns pontos da Doutrina, dei-lhes as explicações necessárias, abstendo-me de
discutir certos dogmas de que o Espiritismo não se quer ocupar, por serem todos
os homens livres em suas apreciações; nunca, porém, fui procurá-los no
propósito de lhes abalar a fé por meio de qualquer pressão. Àquele que nos
procura como irmão, nós o acolhemos como tal; ao que nos repele, deixamo-lo em
paz. É o conselho que não tenho cessado de dar aos espíritas, porque não
concordo com os que se arrogam a missão de converter o clero. Sempre lhes tenho
dito: Semeai no campo dos incrédulos, onde há colheita a fazer.
O
Espiritismo não se impõe, porque, como vo-lo disse — respeita a liberdade de
consciência; ele sabe também que toda crença imposta é superficial e não
desperta senão as aparências da fé; nunca, porém, a fé sincera. Ele expõe seus
princípios aos olhos de todos, de modo a cada um poder formar opinião segura. Os
que lhe aceitam os princípios, sacerdotes ou leigos, o fazem livremente e por
achá-los racionais, mas nós não ficamos querendo mal aos que se afastam da
nossa opinião. Se hoje há luta entre a Igreja e o Espiritismo, nós temos
consciência de não havê-la provocado.
Padre.
— Se a Igreja, vendo levantar-se uma nova doutrina, cujos princípios, em
consciência, julga dever condenar, podeis contestar-lhe o direito de
discuti-los e combatê-los, premunindo os fiéis contra o que ela considera erro?
A.
K. — De modo algum podemos contestar esse direito, que também reclamamos para
nós outros. Se ela se houvesse encerrado nos limites da discussão, nada haveria
de melhor; lede, porém, a maioria dos discursos proferidos por seus membros e
publicados em nome da religião, os sermões que têm sido pregados, e vereis
neles a injúria e a calúnia transbordando por toda parte e os princípios da
doutrina sempre indigna e perversamente desfigurados. Do alto do púlpito, não
temos sido — os espíritas — qualificados de inimigos da sociedade e da ordem
pública, não temos sido anatematizados e rejeitados pela Igreja, sob o pretexto
de que é melhor ser incrédulo do que crer-se em Deus e na alma pelos ensinos do
Espiritismo? Não lamentam muitos, hoje, não se poder atear para os espíritas as
fogueiras da Inquisição? Em certas localidades não têm sido assinalados à
animadversão de seus concidadãos, a ponto de fazer que sejam nas ruas
perseguidos e injuriados? Não se tem imposto a todos os fiéis que os evitem
como pestíferos, e impedido que os criados entrem a seu serviço? Muitas
mulheres não têm sido aconselhadas a separarem-se de seus maridos, como muitos
maridos de suas mulheres, tudo por causa do Espiritismo? Não se têm tirado
lugares a empregados, retirado o pão do trabalho a operários e recusado
caridade aos necessitados, por serem eles espíritas? Não se têm despedido de
alguns hospitais, até cegos, pelo fato de não quererem abjurar sua crença? Dizei-me,
senhor abade, será isso uma discussão leal? Os espíritas responderam,
porventura, à injúria com a injúria, ao mal com o mal? Não. A tudo opuseram
eles sempre a calma e a moderação. A consciência pública já lhes faz a justiça
de reconhecer não terem sido eles os agressores.
Padre.
— Todo homem sensato deplora esses excessos, mas a Igreja não pode ser
responsável pelos abusos cometidos por alguns de seus membros pouco
esclarecidos.
A.
K. — Convenho, mas entrarão na classe dos pouco esclarecidos os príncipes da
Igreja? Vede a pastoral do bispo de Argel e de alguns outros. Não foi um bispo quem
ordenou o auto de fé de Barcelona? A autoridade superior eclesiástica não tem
todo o poder sobre os seus subordinados? Se ela tolera esses sermões indignos
da cadeira evangélica; se ela patrocina a publicação de escritos injuriosos e
difamatórios contra uma classe inteira de cidadãos, e se não se opõe às
perseguições exercidas em nome da religião, é porque as aprova.
Em
resumo, a Igreja, repelindo sistematicamente os espíritas que a buscavam,
forçou-os a retroceder; pela natureza e violência dos seus ataques ela ampliou
a discussão e conduziu-a para um terreno novo. O Espiritismo era apenas uma
simples doutrina filosófica; foi a Igreja quem lhe deu maiores proporções,
apresentando-o como inimigo formidável; foi ela, enfim, quem o proclamou nova
religião. Foi um passo errado, mas a paixão não raciocina melhor.
Um
livre-pensador. — Há pouco proclamastes a liberdade de pensamento e de
consciência, e declarastes que toda crença sincera é respeitável. O
materialismo é uma crença como outra qualquer; por que negar-lhe a liberdade
que concedeis a todas as outras?
A.
K. — Cada um é, certamente, livre de crer no que quiser ou de não crer em coisa
alguma; e não toleraríamos mais uma perseguição contra aquele que acredita no
nada depois da morte, assim como na promovida contra um cismático de qualquer
Religião. Combatendo o materialismo, não atacamos os indivíduos, mas sim uma
doutrina que, se é inofensiva para a sociedade, quando se encerra no foro
íntimo da consciência de pessoas esclarecidas, é uma chaga social, se vier a
generalizar-se.
A
crença de tudo acabar para o homem depois da morte, que toda solidariedade
cessa com a extinção da vida corporal, leva-o a considerar como um disparate o
sacrifício do seu bem-estar presente, em proveito de outrem; donde a máxima:
“Cada um por si durante a vida terrena, porque com ela tudo se acaba.” A
caridade, a fraternidade, a moral, em suma, ficam sem base alguma, sem nenhuma
razão de ser. Para que nos molestarmos, nos constrangermos e nos sujeitarmos a
privações hoje, quando amanhã, talvez, já nada sejamos? A negação do futuro, a
simples dúvida sobre outra vida, são os maiores estimulantes do egoísmo, origem
da maioria dos males da humanidade. É necessário possuir alta dose de virtude
para não seguir a corrente do vício e do crime, quando para isso não se tem
outro freio além do da própria força de vontade. O respeito humano pode conter
o homem do mundo, mas não contém aquele que não dá importância à opinião
pública.
A
crença na vida futura, mostrando a perpetuidade das relações entre os homens,
estabelece entre eles uma solidariedade que não se quebra na tumba; desse modo,
essa crença muda o curso das ideias. Se essa crença fosse um simples
espantalho, não duraria senão um tempo curto, mas como a sua realidade é fato
adquirido pela experiência, é um dever propagá-la e combater a crença
contrária, mesmo no interesse da ordem social. É o que faz o Espiritismo; e o
faz com êxito, porque fornece provas, e porque, decididamente, o homem antes
quer ter a certeza de viver e poder ser feliz em um mundo melhor, para
compensação das misérias deste mundo, do que a de morrer para sempre. O
pensamento de ser aniquilado, de ver os filhos e os entes que lhe são mais
caros perdidos, sem remissão, sorri a um bem limitado número, acreditai-me; é o
motivo do tão pequeno êxito obtido pelos ataques dirigidos contra o
Espiritismo, em nome da incredulidade, os quais não lhe produziram o menor
abalo.
Padre.
— A religião ensina tudo isso; até agora foi suficiente; qual é hoje a
necessidade de uma nova doutrina?
A.
K. — Se a religião ensina o bastante, por que há tantos incrédulos,
religiosamente falando? Ela prega, é verdade; ela nos manda crer, mas há muita
gente que não crê por simples afirmação. O Espiritismo prova e faz ver o que a
religião ensina em teoria. Além disso, donde vêm essas provas? Da manifestação
dos Espíritos. Ora, é provável que os Espíritos só se manifestem com o
consentimento de Deus; se, pois, Deus em sua misericórdia envia aos homens esse
socorro para afastá-los da incredulidade, é uma impiedade repeli-lo.
Padre.
— Não podeis, entretanto, contestar que o Espiritismo não está, em todos os
pontos, de acordo com a religião.
A.
K. — Ora, senhor abade, todas as religiões dirão a mesma coisa: os
protestantes, os judeus, os muçulmanos, tanto quanto os católicos. Se o
Espiritismo negasse a existência de Deus, da alma, da sua individualidade e
imortalidade, das penas e recompensas futuras, do livre- -arbítrio do homem; se
ele ensinasse que cada um só deve viver para si, não pensar senão em si, não só
seria contrário à religião católica, como a todas as religiões do mundo; ele
seria ainda a negação de todas as leis morais, base das sociedades humanas. Longe
disso: os Espíritos proclamam um Deus único, soberanamente justo e bom; eles
dizem que o homem é livre e responsável por seus atos, recompensado ou punido
pelo bem ou pelo mal que houver feito; colocam acima de todas as virtudes a
caridade evangélica e a seguinte regra sublime ensinada pelo Cristo: fazer aos
outros como queremos que nos seja feito. Não são estes os fundamentos da
religião? Essa certeza do futuro, de se ir encontrar aqueles a quem se amou, não
será uma consolação? Essa grandiosidade da vida espiritual, que é a nossa
essência, comparada às mesquinhas preocupações da vida terrena, não será
própria a elevar a nossa alma e a fortalecer-nos na prática do bem?
Padre.
— Concordo que, nas questões gerais, o Espiritismo é conforme às grandes
verdades do Cristianismo; dar-se-á, porém, o mesmo em relação aos dogmas? Não
contradiz ele alguns princípios que a Igreja nos ensina?
A.
K. — O Espiritismo é, antes de tudo, uma ciência, não cogita de questões
dogmáticas. Esta ciência tem consequências morais como todas as ciências
filosóficas; essas consequências são boas ou más? Pode-se julgá-las pelos
princípios gerais que acabo de expor. Algumas pessoas se iludem sobre o
verdadeiro caráter do Espiritismo. A questão é de grande importância e merece
alguns desenvolvimentos.
Façamos
primeiro um termo de comparação: a eletricidade, estando na natureza, existiu
em todo tempo e produziu sempre os efeitos que hoje observamos e muitos outros
que ainda não conhecemos. Na ignorância da sua verdadeira causa, os homens
explicavam esses efeitos de um modo mais ou menos extravagante. A descoberta da
eletricidade e de suas propriedades veio lançar por terra um punhado de teorias
absurdas, espargindo a luz por sobre mais de um mistério da natureza. O que
fizeram a eletricidade e as ciências físicas para certos fenômenos, o
Espiritismo o fez para outros de ordem diferente.
O
Espiritismo funda-se na existência de um mundo invisível, formado pelos seres
incorpóreos que povoam o espaço e que não são mais que as almas daqueles que
viveram na Terra, ou em outros globos, nos quais deixaram seus invólucros
materiais. São os seres a que chamamos Espíritos, seres que nos cercam e
incessantemente exercem sobre os homens, sem que estes o percebam, uma grande
influência, e desempenham papel muito ativo no mundo moral, e mesmo, até certo
ponto, no físico. O Espiritismo está, pois, em a natureza e podemos dizer que,
numa certa ordem de ideias, é ele uma potência, como a eletricidade o é sob
outro ponto de vista, e como ainda a gravitação é uma outra. Os fenômenos, de
que o mundo invisível é a fonte, produziram-se em todos os tempos; eis aí por
que a história de todos os povos faz deles menção. Somente, em sua ignorância,
como se deu com a eletricidade, os homens os atribuíam a causas mais ou menos
racionais, e deram, nesse ponto de vista, livre curso à sua imaginação.
Melhor
observado depois que se vulgarizou, o Espiritismo vem derramar luz sobre grande
número de questões, até hoje insolúveis ou mal compreendidas. Seu verdadeiro
caráter é, pois, o de uma ciência, e não de uma religião; (ver Reformador de
1949, p. 217) e a prova disso é que ele conta entre os seus aderentes homens de
todas as crenças, que por esse fato não renunciaram às suas convicções:
católicos fervorosos que não deixam de praticar todos os deveres do seu culto,
quando a Igreja os não repele; protestantes de todas as seitas, israelitas,
muçulmanos e mesmo budistas e bramanistas. Ele repousa, por conseguinte, em
princípios independentes das questões dogmáticas. Suas consequências morais são
todas no sentido do Cristianismo, porque de todas as doutrinas é esta a mais
esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os
cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência. Podemos
exprobrá-lo por isso? Cada um pode formar de suas opiniões uma religião e
interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí a constituir nova
Igreja, a distância é grande.
Padre.
— As evocações, entretanto, não são feitas segundo uma fórmula religiosa?
A.
K. — Realmente, o sentimento religioso domina nas evocações e em nossas
reuniões, mas não temos fórmula sacramental: para os Espíritos o pensamento é
tudo e a forma é nada. Nós os chamamos em nome de Deus, porque cremos em Deus e
sabemos que nada se faz neste mundo sem sua permissão, e, portanto, que eles
não virão sem que Deus o permita; procedemos em nossos trabalhos com calma e
recolhimento, porque essa é uma condição necessária para as observações, e, em
segundo lugar, porque sabemos o respeito que se deve àqueles que não vivem mais
sobre a Terra, qualquer que seja sua condição, feliz ou infeliz, no mundo espiritual;
fazemos um apelo aos bons Espíritos, porque, conhecendo que há bons e maus,
desejamos que estes últimos não venham tomar parte fraudulentamente nas
comunicações que recebemos. Que prova tudo isto? Que não somos ateus, o que não
quer dizer que sejamos professos de religião reformada.
Padre.
— Pois bem! Que dizem os Espíritos superiores a respeito da religião? Os bons
nos devem aconselhar e guiar. Suponhamos que eu não tenha religião alguma e
queira escolher uma; se eu lhes pedir para aconselharem-me se devo ser
católico, protestante, anglicano, quáquer, judeu, maometano ou mórmon, qual
será a resposta deles?
A.
K. — Há dois pontos a considerar nas religiões: os princípios gerais, comuns a
todas, e os princípios particulares de cada uma delas. Os primeiros são os de
que falamos há pouco; estes são proclamados por todos os Espíritos, qualquer
que seja a sua classe. Quanto aos segundos, os Espíritos vulgares, sem ser
maus, podem ter preferências, opiniões; podem preconizar esta ou aquela forma,
animar certas práticas, seja por convicção pessoal, seja porque conservaram as
ideias da vida terrena, seja por prudência, para não assustar as consciências
timoratas. Acreditais, por exemplo, que um Espírito esclarecido, fosse mesmo Fénelon,
dirigindo-se a um muçulmano, irá inabilmente dizer-lhe que Maomé é um impostor,
e que ele será condenado se não se fizer cristão? Não o fará, porque seria
repelido.
Em
geral, os Espíritos superiores, se a isso não são solicitados por alguma
consideração especial, não se preocupam com essas questões de minúcia, eles se
limitam a dizer: Deus é bom e justo; não quer senão o bem; a melhor de todas as
religiões é aquela que só ensina o que é conforme à bondade e Justiça de Deus;
que dá de Deus a maior e a mais sublime ideia e não o rebaixa emprestando-lhe
as fraquezas e as paixões da humanidade; que torna os homens bons e virtuosos e
lhes ensina a amarem-se todos como irmãos; que condena todo mal feito ao
próximo; que não autoriza a injustiça sob qualquer forma ou pretexto que seja;
que nada prescreve de contrário às leis imutáveis da natureza, porque Deus não
se pode contradizer; aquela cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade,
caridade e moralidade; aquela que procura melhor combater o egoísmo e lisonjear
menos o orgulho e a vaidade dos homens; aquela, finalmente, em nome da qual se
comete menos mal, porque uma boa religião não pode servir de pretexto a nenhum
mal; ela não lhe deve deixar porta alguma aberta, nem diretamente, nem por
interpretação. Vede, julgai e escolhei.
Padre.
— Creio que certos pontos da doutrina católica são contestados pelos Espíritos
que considerais superiores; supondo mesmo que esses princípios sejam errôneos,
poderá tal crença, segundo a opinião dos ditos Espíritos, ser prejudicial à
salvação daqueles que, errando ou acertando, a consideram artigo de fé e a
praticam?
A.
K. — Certamente que não, se ela os não desviar da prática do bem, se ela antes
os incitar a isso; ao passo que a mais bem fundada crença os prejudicará
evidentemente, se lhes fornecer ocasião de fazer o mal, de faltar à caridade
com o próximo, se ela os tornar duros e egoístas, por que então não praticam
segundo a Lei de Deus, e Deus olha mais os pensamentos que os atos. Quem poderá
sustentar o contrário?
Acreditais,
por exemplo, que a fé possa ser proveitosa a um homem que, crendo perfeitamente
em Deus, pratique atos inumanos ou contrários à caridade? Não haverá sempre
mais culpa naquele que mais meios tinha de esclarecimento?
Padre.
— Assim, o católico fervoroso, que escrupulosamente cumpre com os deveres do
seu culto, não é censurado pelos Espíritos?
A.
K. — Não, se isso é para ele uma questão de consciência, se ele o faz com
sinceridade; sim, mil vezes sim, se for hipócrita, se só tiver piedade aparente.
Os
Espíritos superiores, os encarregados do progresso da humanidade, declararam-se
contra todos os abusos que podem retardar esse progresso, qualquer que seja a
natureza deles e quaisquer que sejam os indivíduos ou as classes que deles se
aproveitem. Ora, não se pode negar que a religião nem sempre esteve isenta de abusos;
se, entre os seus ministros, há muitos que desempenham sua missão com
devotamento inteiramente cristão, que a fazem grande, bela e respeitável,
convireis que nem todos assim sempre compreenderam a santidade do seu
ministério. Os Espíritos combatem o mal, onde quer que ele se ache, mas
assinalar os abusos da religião, será atacá-la? Ela não tem inimigos piores que
aqueles que defendem esses abusos, abusos que fazem nascer o pensamento de
poder ser ela substituída por outra melhor. Se a religião corresse qualquer
perigo, deveria a responsabilidade cair sobre os que dão dela falsa ideia,
transformando-a em arena de paixões humanas e explorando-a em proveito de sua
ambição.
Padre.
— Dissestes que o Espiritismo não discute os dogmas, e, entretanto, ele admite
certos pontos combatidos pela Igreja, tais como, por exemplo, a reencarnação, a
aparição do homem na Terra, antes de Adão; nega a eternidade das penas, a
existência dos demônios, o purgatório e o fogo do inferno.
A.
K. — Já de há muito que esses pontos estão sendo discutidos; não foi o
Espiritismo quem os pôs em litígio; são pontos sobre alguns dos quais há
controvérsia, mesmo entre os teólogos, e que só o futuro julgará. Um grande
princípio domina a todos: a prática do bem, que é a lei superior, a condição
sine qua non do nosso futuro, como no-lo prova o estado dos Espíritos que
conosco se comunicam. Enquanto a luz não se faz para vós sobre essas questões,
crede, se o quiserdes, nas chamas e torturas materiais, se julgais que isso
impede que pratiqueis o mal; essa crença, porém, não as tornará mais reais se
elas não existirem. Acreditais que não temos mais de uma existência corporal,
mas isto não impede de renascerdes aqui ou em outra parte, se assim tiver de ser,
apesar de o não quererdes; credes que o mundo todo foi criado em seis vezes
vinte e quatro horas, mas, apesar disso, a Terra nos apresenta a prova do contrário,
escrita em suas camadas geológicas; estais convencido de haver Josué feito
parar o Sol, o que não dá lugar a que deixe de ser a Terra que gira; dizeis que
a data da vinda do homem à Terra não vai além de 6.000 anos: isto, porém, não
priva que os fatos vos contradigam. E que direis se um dia a Geologia
demonstrar, por traços patentes, a anterioridade do homem, como já tem
demonstrado tantas outras coisas? Crede, pois, em tudo que vos aprouver, mesmo
na existência do diabo, se tal crença vos puder tornar bom, humano e caridoso
para com os vossos semelhantes. O Espiritismo, como doutrina moral, só impõe uma
coisa: a necessidade de fazer o bem e evitar o mal. É uma ciência de observação
que, repito, tem consequências morais, que são a confirmação e a prova dos
grandes princípios da religião; quanto às questões secundárias, ele as abandona
à consciência de cada um.
Notai
bem, reverendo, que alguns dos pontos divergentes de que acabastes de falar,
não são, em princípio, contestados pelo Espiritismo. Se tivésseis lido tudo
quanto tenho escrito a respeito, teríeis visto que ele se limita a dar-lhes uma
interpretação mais lógica e racional do que a que vulgarmente se lhes dá.
É
assim, por exemplo, que ele não nega o purgatório; antes, pelo contrário,
demonstra sua necessidade e justiça; vai mesmo além: ele o define. O inferno
foi descrito como imensa fornalha, mas ele será assim também compreendido pela
alta teologia? Evidentemente, não; ela diz muito bem que isto é uma simples
figura; que o fogo que ali se consome é um fogo moral, símbolo das maiores
dores. Quanto à eternidade das penas, se fosse possível pôr-se a votos tal
questão, para se conhecer a opinião íntima de todos os homens que raciocinam e
se acham no caso de compreendê-la, mesmo entre os mais religiosos se veria para
que lado penderia a maioria, porque a ideia de uma eternidade de suplícios é a
negação da infinita misericórdia de Deus.
Eis,
ademais, o que avança a Doutrina Espírita a tal respeito:
A
duração do castigo é subordinada ao melhoramento do Espírito culpado. Nenhuma
condenação por tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige,
para pôr um termo aos sofrimentos, é o arrependimento, a expiação e a
reparação; em uma palavra, um melhoramento sério e efetivo, uma volta sincera
ao bem. O Espírito é assim o árbitro de sua própria sorte; sua pertinácia no
mal prolonga-lhe os sofrimentos; seus esforços para fazer o bem os minoram ou
abreviam. Sendo a duração da pena subordinada ao arrependimento, o Espírito
culpado, que não se arrependesse e nunca se melhorasse, sofreria sempre, e para
ele então a pena seria eterna. Essa eternidade de penas deve ser entendida no
sentido relativo, e não no absoluto. Uma condição inerente à inferioridade do
Espírito é não ver o termo da sua situação e crer que há de sofrer sempre — o
que é para ele um castigo. Desde que, porém, sua alma se abra ao arrependimento,
Deus lhe faz entrever um raio de esperança.
Esta
doutrina é, por certo, mais conforme à Justiça de Deus, que pune, enquanto o
culpado persiste no mal, e concede-lhe graça desde que ele volte ao bom
caminho. Quem imaginou essa teoria? Seríamos nós? Não; são os Espíritos que a
ensinam e provam, pelos exemplos que diariamente nos fornecem.
Os
Espíritos não negam, pois, as penas futuras, pois que são eles mesmos que nos
vêm descrever seus próprios sofrimentos; e este quadro nos toca mais que o das
chamas perpétuas, porque tudo nele é perfeitamente lógico. Compreende-se que
isto é possível, que assim deve ser, que essa situação é uma consequência
natural das coisas; o pensador filósofo pode aceitá-lo, porque nele nada
repugna à razão. Eis por que as crenças espíritas têm conduzido ao bem muita
gente, mesmo entre os materialistas, aos quais não fazia mossa o medo do
inferno, como lhes era pintado.
Padre.
— Admitindo esse raciocínio, não julgais que o vulgo precisa de imagens mais
impressionantes, antes que de uma filosofia que ele não pode compreender?
A.
K. — É isso um erro que tem lançado mais de um homem no materialismo, ou, pelo
menos, afastado mais de um homem da religião. Chega o momento em que essas
imagens não impressionam mais, e então aqueles que não aprofundam as coisas,
não aceitando uma parte, rejeitam o todo, porque, dizem eles: se me ensinaram
como verdade incontestável um ponto que é falso, se me deram uma imagem, uma
figura, pela realidade, quem me afiança que o resto seja verdadeiro? Se, pelo
contrário, a razão, crescendo, nada tem a repelir, a fé se fortifica. A
religião ganhará sempre em seguir o progresso das ideias; se alguma vez ela
corre perigo, é quando os homens querem avançar e ela deseja ficar
estacionária. Comete um erro de época quem espera conduzir os homens de hoje
pelo medo do demônio e das torturas eternas.
Padre.
— A Igreja, com efeito, reconhece hoje que o inferno material é uma figura, mas
isso não exclui a existência dos demônios; sem eles, como explicar a influência
do mal, que não pode vir de Deus?
A.
K. — O Espiritismo não admite os demônios no sentido vulgar da palavra, porém,
sim, os maus Espíritos, que não valem mais do que aqueles e que fazem
igualmente o mal, suscitando maus pensamentos; somente ele diz não serem eles
seres à parte, criados para o mal e perpetuamente votados a isto, espécie de
párias da criação e algozes do gênero humano; são seres atrasados, ainda
imperfeitos, mas aos quais Deus reservará o futuro. Nisso concorda o
Espiritismo com a Igreja Católica Grega, que admite a conversão de Satã, alusão
ao melhoramento dos maus Espíritos. Notai também que a palavra demônio não
implica a ideia de mau Espírito, que lhe é dada pela acepção moderna, porque a
palavra daimónion, grega, significa gênio, inteligência. Seja como for, hoje
ela exprime um Espírito mau. Ora, admitir a comunicação dos maus Espíritos é
reconhecer, em princípio, a realidade das manifestações. A questão está em
saber se são eles os únicos que se comunicam, como afirma a Igreja para motivar
a proibição, feita por ela, de se comunicar com os Espíritos. Aqui, nós
invocamos o raciocínio e os fatos. Se os Espíritos, quaisquer que eles sejam,
se comunicam, não pode ser senão com a permissão de Deus; é possível que Ele só
o tivesse permitido aos maus? Como?! Deixando a estes toda a liberdade de virem
enganar os homens, Deus poderia impedir que os bons lhes viessem fazer um
contrapeso, neutralizar suas doutrinas perniciosas? Crer que seja assim, não
seria pôr em dúvida seu poder e bondade, e fazer de Satã um rival da Divindade?
A Bíblia, o Evangelho, os padres da Igreja reconhecem perfeitamente a
possibilidade das comunicações com o mundo invisível, e desse mundo não estão
excluídos os bons; por que, pois, havemos hoje de excluí-los? Além disso, a
Igreja, admitindo a autenticidade de certas aparições e comunicações de santos,
rejeita assim a ideia de só podermos entrar em relação com os maus Espíritos.
Seguramente, quando nos trabalhos obtidos só encontramos coisas boas, quando
nos pregam neles a mais pura e sublime moral evangélica, a abnegação, o
desinteresse e o amor ao próximo; quando neles se combate o mal, qualquer que
seja o aspecto sobre que se mostre, será racional crer que o Espírito maligno
assim proceda?
Padre.
— O Evangelho ensina que o anjo das trevas, ou Satã, se transforma em anjo de
luz para seduzir os homens.
A.
K. — Satã, segundo o Espiritismo e a opinião de muitos filósofos cristãos, não
é um ser real; é a personificação do mal, como Saturno era outrora a do tempo.
A Igreja apega-se à letra dessa figura alegórica; é uma questão de opinião que
eu não discutirei. Admitamos, por um instante, que Satã seja um ser real; a
Igreja, à força de exagerar seu poder, tendo em vista intimidar, chega a um
resultado totalmente contrário, isto é, à destruição, não somente do medo, mas
também da crença em tal personagem, segundo o provérbio: “Quem muito quer
provar, nada prova.” Ela o representa como eminentemente fino, sagaz e
ardiloso, mas, na questão do Espiritismo, fá-lo desempenhar o papel de louco ou
de tolo.
Uma
vez que seu fim é alimentar de vítimas o inferno e arrebatar almas do poder de
Deus, compreende-se que se dirija àqueles que estão no bem para induzi-los ao
mal, e, para tal fim, se veja obrigado a transformar- -se, segundo belíssima
alegoria, em anjo de luz, isto é, que ele hipocritamente simule a virtude, mas
que deixe escapar aqueles que já estavam em suas redes, é o que não se pode
compreender. Os que não admitem Deus nem a alma, que desprezam a prece e vivem
mergulhados no vício, são dele, quanto é possível ser-se; nada mais lhe resta
fazer para sepultá-los no lamaçal; ora, excitá-los a voltar a Deus, a orar, a
submeter-se à vontade do Criador, animá-los a renunciar ao mal, mostrando-lhes
a felicidade dos escolhidos e a triste sorte que aguarda os maus, seria ato de
um simplório, mais estúpido que o de dar liberdade a aves que estejam numa
gaiola, com o pensamento de apanhá-las de novo.
Há,
pois, na doutrina da comunicação exclusiva dos demônios uma contradição que
fere todo homem sensato; nunca se persuadirá alguém que os Espíritos que
reconduzem a Deus aqueles que o renegavam, ao bem os que praticavam o mal; que
consolam os aflitos, dão força e coragem aos fracos; que, pela sublimidade de
seus ensinos, elevam a alma acima da vida material, sejam auxiliares de Satã, e
que, por este motivo, se deva interdizer-nos qualquer relação com o mundo
invisível.
Padre.
— Se a Igreja proíbe as comunicações com os Espíritos dos mortos, é porque elas
são contrárias à religião, sendo formalmente condenadas pelo Evangelho e por
Moisés. Este último, pronunciando a pena de morte contra essas práticas, prova
quanto elas são repreensíveis aos olhos de Deus.
A.
K. — Peço-vos perdão, mas essa proibição não se encontra em parte alguma do
Evangelho; ela se acha somente na lei mosaica. Trata-se de saber se a Igreja
coloca a lei mosaica acima da evangélica; assim será, por certo, se ela for
mais judia que cristã. Devemos mesmo notar que, de todas as religiões, é a
judaica a que faz menos oposição ao Espiritismo, contra cujas evocações ela não
invocou a lei de Moisés, em que se apoiam as seitas cristãs. Se as prescrições
bíblicas são o código da fé cristã, por que proíbem a leitura da Bíblia? Que
diriam se se proibisse a um cidadão o estudo do código das leis do seu país?
A
proibição feita por Moisés tinha então a sua razão de ser, porque o legislador
hebreu queria que o seu povo rompesse com todos os hábitos trazidos do Egito, e
de entre os quais o de que tratamos era objeto de abusos. Não se evocava então
os mortos pelo respeito e afeição tributados a eles, nem com o sentimento de
piedade, mas sim como meio de adivinhar, como objeto de tráfico vergonhoso,
explorado pelo charlatanismo e pela superstição; nessas condições, Moisés teve
razão de proibi-lo. Se ele pronunciou contra esse abuso uma penalidade severa,
é que eram precisos meios rigorosos para conter esse povo indisciplinado;
também quanto à pena de morte, era pródiga a sua legislação.
É,
pois, um erro apoiar-se na severidade do castigo para provar-se o grau de
culpabilidade da evocação dos mortos. Se a interdição da evocação aos mortos
vem do próprio Deus, como a Igreja pretende, deve também ser Deus quem marcou a
pena de morte contra os delinquentes. Esta pena passa a ter uma origem tão
sagrada como a interdição; neste caso, por que não a conservam também? Todas as
leis de Moisés são promulgadas em nome e por ordem de Deus; se creem que Deus
seja o autor delas, por que não as observam ainda? Se a lei de Moisés é para a
Igreja um artigo de fé sobre um ponto, por que deixa de sê-lo sobre os outros
todos? Por que recorrem a ela naquilo de que precisam, e repelem-na no que não
julgam conveniente? Qual o motivo de não seguirem todas as suas prescrições, entre
outras a da circuncisão, a que Jesus se sujeitou e que não aboliu?
Havia
na lei mosaica duas partes: 1a , a Lei de Deus, resumida nas tábuas do Sinai;
lei que foi conservada porque é divina, e o Cristo não fez mais que
desenvolvê-la; 2a , a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes do
tempo, e que o Cristo aboliu. Hoje as circunstâncias são outras, e a proibição
de Moisés já não tem razão de ser. Além disso, se a Igreja proíbe a evocação
dos Espíritos, poderá também impedir que eles venham sem ser chamados? Não
estamos vendo diariamente manifestações de todos os gêneros, entre pessoas que
nunca se ocuparam com o Espiritismo? E antes de ele ser divulgado não se davam
tantas delas?
Outra
contradição: Se Moisés proibiu evocar os Espíritos dos mortos, é uma prova de
que eles podem vir; do contrário essa interdição seria inútil. Se, em seu
tempo, podiam eles entrar em relação com os homens, ainda hoje o podem, e, se
são Espíritos de mortos, não são exclusivamente demônios. Antes de tudo,
devemos ser lógicos.
Padre.
— A Igreja não nega que bons Espíritos possam comunicar- -se, pois reconhece
que os santos também se têm manifestado; ela, porém, não considera bons aqueles
que vêm contradizer seus princípios imutáveis. Os Espíritos ensinam, é verdade,
que há penas e recompensas futuras, porém, de modo diverso do que ela ensina;
só ela pode julgar o que eles pregam e, portanto, distinguir os bons dos maus.
A.
K. — Eis a magna questão. Galileu foi acusado de heresia e de ser inspirado
pelo demônio, porque vinha revelar uma Lei da natureza, provando o erro de uma
crença julgada inatacável, e, então, foi condenado e excomungado. Se os
Espíritos tivessem, sobre todos os pontos, abundado no sentido exclusivo da
Igreja, se eles não proclamassem a liberdade de consciência e não condenassem
certos abusos, teriam sido todos bem-vindos e não os qualificariam de demônios.
Tal é também a razão por que todas as religiões, os muçulmanos como os
católicos, crendo-se na posse exclusiva da verdade absoluta, olham como obra do
demônio qualquer doutrina que não é inteiramente ortodoxa, do seu ponto de
vista. Ora, os Espíritos vêm, não derribar a religião, mas, como Galileu,
revelar-nos novas Leis da natureza. Se alguns pontos de fé sofrem com isto, é
porque, como na velha crença de girar o Sol ao redor da Terra, estão em
contradição com essas leis.
A
questão está em saber se um artigo de fé pode anular uma lei natural, que é
obra de Deus; e se, sendo essa lei reconhecida, não será mais racional adaptar
a interpretação do dogma a ela do que atribuí-la ao demônio.
Padre.
— Deixemos a questão dos demônios; bem sei que ela é diversamente interpretada
pelos teólogos; porém, o sistema da reencarnação parece-me mais difícil de
conciliar com os dogmas, pois que ele não é mais que a renovação da
metempsicose de Pitágoras.
A.
K. — Não é esta a ocasião própria de discutir uma questão que exige tão longos
desenvolvimentos: vós a encontrareis tratada em O livro dos espíritos (questões
166 e seg., 222 e seg. e 1.010) e em O evangelho segundo o espiritismo
(capítulos IV e V); não acrescentarei senão duas palavras.
A
metempsicose dos antigos consistia na transmigração da alma do homem nos
animais, o que implica uma degradação. Ademais, essa doutrina não era o que
vulgarmente se crê. A transmigração pelos corpos dos animais não era
considerada como condição inerente à natureza da alma humana, mas como punição
temporária; é assim que se admitia que as almas dos assassinos fossem habitar
os corpos dos animais ferozes, para neles receberem castigos; as dos impudicos,
os porcos e javalis; as dos inconstantes e estouvados, os das aves; as dos
preguiçosos e ignorantes, os dos animais aquáticos. Depois de alguns milhares
de anos, mais ou menos, conforme a culpabilidade, a alma, saindo dessa espécie
de prisão, voltava à humanidade. A encarnação animal não era, pois, uma condição
absoluta; ela, como se vê, aliava-se à encarnação humana, e a prova é que a
punição dos homens tímidos consistia em passar a corpos de mulheres, expostas
ao desprezo e às injúrias. (Vede Pluralidade das existências da alma, por
Pezzani.) Era uma espécie de espantalho para os simples, antes que um artigo de
fé para os filósofos. Assim como dizemos às crianças: “Se fordes más, o lobo
vos comerá”, os antigos diziam aos criminosos: “Vós vos tornareis em lobos”, e
hoje se diz: “O diabo vos agarrará e levará para o inferno.”
A
pluralidade das existências, segundo o Espiritismo, difere essencialmente da
metempsicose, em não admitir aquele a encarnação da alma humana nos corpos de
animais, mesmo como castigo. Os Espíritos ensinam que a alma não retrograda, mas
progride sempre. Suas diferentes existências corpóreas se cumprem na
humanidade, sendo cada uma um passo que a alma dá na senda do progresso
intelectual e moral; o que é coisa muito diversa da metempsicose. Não podendo
adquirir um desenvolvimento completo em uma só existência, muitas vezes
abreviada por causas acidentais, Deus lhe permite continuar, em nova
encarnação, o que ela não pôde acabar em outra, ou recomeçar o que fez errado.
A expiação na vida corporal consiste nas tribulações que nela sofremos.
Quanto
à questão de saber se a pluralidade das existências da alma é ou não contrária
a certos dogmas da Igreja, limito-me a dizer o seguinte:
Ou a
reencarnação existe, ou não; se existe, é uma Lei da natureza. Para provar que
ela não existe, seria necessário demonstrar que vai de encontro, não aos
dogmas, mas a essas leis, e que há outra mais clara e logicamente melhor que
ela, explicando as questões que só ela pode resolver. Além disso, é fácil
demonstrar que certos dogmas encontram nela sanção racional, hoje aceitos por
aqueles que os repeliam outrora, por falta de compreensão. Não se trata, pois,
de destruir, mas de interpretar; é o que pela força das coisas será feito mais
tarde.
Aqueles
que não queiram aceitar a interpretação ficam perfeitamente livres, como ainda
hoje o são, de crer que é o Sol que gira ao redor da Terra. A ideia da
pluralidade das existências se vulgariza com pasmosa rapidez, em razão de sua
extrema lógica e conformidade com a Justiça de Deus. Quando ela for reconhecida
como verdade natural e aceita por todos, que fará a Igreja?
Em
resumo: a reencarnação não é um sistema imaginado para satisfação das
necessidades de um ideal, nem uma opinião pessoal; é ou não um fato. Se está
demonstrado que certos efeitos existentes são materialmente impossíveis sem a
reencarnação, é preciso admitirmos que eles são a consequência desta; logo, se
está em a natureza, não pode ser anulada por uma opinião contrária.
Padre.
— Segundo os Espíritos, quem não crê neles nem nas suas manifestações, deve ser
menos aquinhoado na vida futura?
A.
K. — Se esta crença fosse indispensável à salvação dos homens, que seria
daqueles que, desde o começo do mundo, não tiveram possibilidade de possuí-la,
bem como daqueles que, durante ainda muito tempo, morrerão sem tê-la? Poderá
Deus cerrar-lhes as portas do futuro? Não; os Espíritos que nos instruem não
são assim tão pouco lógicos; eles nos dizem: Deus é soberanamente justo e bom,
não faz a sorte futura do homem subordinar-se a condições alheias à vontade
deste; eles não nos pregam que fora do Espiritismo não possa haver salvação,
mas sim como o Cristo: Fora da caridade não há salvação.
Padre.
— Permiti-me, então, dizer-vos que, desde que os Espíritos só ensinam os
princípios de moral encontrados no Evangelho, não vejo qual possa ser a
utilidade do Espiritismo, visto como antes que este viesse e hoje, sem ser por
ele, podíamos e podemos alcançar a salvação. Não seria o mesmo se os Espíritos
viessem ensinar algumas grandes verdades novas, alguns desses princípios que
mudam a face do mundo, como fez o Cristo. Ao menos o Cristo era só, sua
doutrina era única, ao passo que os Espíritos se contam por milhares e se
contradizem, uns dizendo que é branco o que outros afirmam ser negro; do que
resulta que, já desde o começo, seus partidários formam muitas seitas. Não
seria melhor deixarmos os Espíritos tranquilos e contentarmo-nos com o que já
temos?
A.
K. — Errais, meu amigo, em não sair do vosso ponto de vista e em considerar
sempre a Igreja como o único critério dos conhecimentos humanos. Se o Cristo
disse a verdade, o Espiritismo não podia dizer outra coisa, e em vez de por
isso apedrejá-lo, deve-se acolhê-lo como poderoso auxiliar, que vem confirmar,
por todas as vozes de além-túmulo, as verdades fundamentais da religião,
combatidas pela incredulidade. Que o materialismo o combata, explica-se
facilmente, mas que a Igreja se ligue ao materialismo contra ele, é um fato
menos concebível. Igualmente inconsequente é ela quando qualifica de demoníaco
um ensino que se apoia sobre a mesma autoridade e que proclama a missão divina
do fundador do Cristianismo.
O
Cristo teria dito, teria revelado tudo? Não; visto que Ele próprio disse: “Eu
teria ainda muitas coisas a dizer-vos, mas vós não podeis compreendê-las, é por
isso que Eu vos falo em parábolas.” O Espiritismo vem hoje, época em que o
homem está maduro para compreendê-lo, completar e explicar o que o Cristo
propositadamente não fez senão tocar, ou não disse senão sob a forma alegórica.
Direis, sem dúvida, que à Igreja competia dar essa explicação. Mas qual delas? A
romana, a grega ou a protestante? Como não estão elas de acordo, cada uma
explicaria a seu modo e reivindicaria o privilégio de dar essa explicação. Qual
delas conseguiria arrebanhar todos os dissidentes? Deus, que é sábio, prevendo
que os homens iriam nela enxertar suas paixões e prejuízos, não lhes quis
confiar o cuidado desta Nova Revelação: deu-a aos Espíritos, seus mensageiros,
que a proclamaram por todos os pontos do globo, fora dos limites particulares
de qualquer culto, a fim de que ela possa aplicar-se a todos, e nenhum a
transforme em objeto de exploração.
Por
outro lado, os diversos cultos cristãos não se terão, em coisa alguma, apartado
do caminho traçado pelo Cristo? Seus preceitos de moral serão escrupulosamente
observados? Não se lhe têm desnaturado as palavras, a fim de que possam servir
de apoio à ambição e às paixões humanas, quando elas lealmente condenam isso? Ora,
o Espiritismo, pela voz dos Espíritos enviados de Deus, vem chamar, à estrita
observância de seus preceitos, aqueles que dela se arredam; será por isso que o
qualificam de obra satânica?
Vós
vos iludis dando o nome de seitas a algumas divergências de opiniões relativas
aos fenômenos espíritas. Não é de admirar que no começo de uma ciência, quando
ainda as observações eram incompletas para muitos, tenham surgido teorias
contraditórias; essas teorias, porém, repousam sobre pontos de minúcias, e não
sobre o princípio fundamental. Podem constituir escolas que expliquem certos
fatos a seu modo, porém, não são seitas, como não o são os diferentes sistemas
que dividem os sábios nas ciências exatas: em Medicina, em Física etc. Riscai,
pois, a palavra seita, que é imprópria ao nosso caso. A quantas seitas não tem
o Cristianismo dado nascimento, desde a sua origem? Por que não teve bastante
poder a palavra do Cristo para impor silêncio a todas as controvérsias? Por que
é ela suscetível de interpretações que ainda hoje dividem os cristãos em
diferentes igrejas, pretendendo todas elas possuir exclusivamente a verdade
necessária à salvação, detestando-se intimamente e anatematizando-se em nome do
seu divino Mestre, que não pregou senão o amor e a caridade? Fraqueza dos
homens, direis vós. Seja; então, como quereis que o Espiritismo triunfe
subitamente dessa fraqueza, transforme a humanidade como por encanto?
Vamos
à questão da utilidade. Dizeis que o Espiritismo nada revela de novo. É um
erro: ele ensina, ao contrário, muito àqueles que não se limitam a um estudo
superficial. Não fizesse ele mais que substituir a máxima: Fora da caridade não
há salvação, que reúne os homens, àquela: Fora da Igreja não há salvação, que
os divide, para que a sua vinda marcasse uma nova era à humanidade.
Dissestes
que se podia passar sem ele; concordo, como também se podia passar sem muitas
das descobertas científicas. Os homens certamente viviam bem, antes da
descoberta de todos os novos planetas, antes que se tivesse calculado os
eclipses, antes que se conhecesse o mundo microscópico e cem outras coisas; o
camponês para viver e fazer germinar o trigo, não tem necessidade de saber o
que é um cometa, e, entretanto, ninguém nega que todas essas coisas alargam o
círculo das ideias e nos fazem compreender melhor as Leis da natureza. Ora, o
mundo dos Espíritos é uma dessas leis que o Espiritismo nos faz conhecer; ele
nos ensina a influência que esse mundo exerce sobre o corpóreo. Suponhamos que
a isso se limitasse a sua utilidade, já não seria muito a revelação de tal
potência?
Vejamos,
agora, a sua influência moral. Admitamos que ele nada ensine, sob este ponto de
vista; qual o maior inimigo da Religião? O materialismo, porque o materialista
não crê em coisa alguma; ora, o Espiritismo é a negação do materialismo, que já
não tem razão de ser. Não é mais pelo raciocínio, pela fé cega que se diz ao materialista
que nem tudo se acaba com o corpo; é pelos fatos que se lhe mostram visíveis e
palpáveis. Não será isso um pequeno serviço prestado à humanidade e à Religião?
Porém, não é ainda tudo: a certeza da vida futura, o quadro vivo daqueles que nos
precederam nela, mostram a necessidade do bem e as consequências inevitáveis do
mal. Eis por que, sem ser uma Religião, o Espiritismo se prende essencialmente
às ideias religiosas, desenvolve-as naqueles que não as possuem, fortifica-as
nos que as têm incertas. A Religião encontra, pois, um apoio nele, não para as
pessoas de vistas estreitas, que a veem integralmente na doutrina do fogo
eterno, na letra mais que no espírito, mas para aqueles que a veem segundo a
grandeza e a majestade de Deus.
Em
uma palavra, o Espiritismo engrandece e eleva as ideias; combate os abusos
engendrados pelo egoísmo, a cobiça, a ambição; mas quem terá a coragem de
defendê-los e se declararem seus campeões? Se ele não é indispensável à
salvação, facilita-a firmando-nos no caminho do bem. Além disso, que homem
sensato ousará avançar que a falta de ortodoxia é mais repreensível, aos olhos
de Deus, que o ateísmo ou o materialismo? Apresento claramente as questões
seguintes, a quantos combatem o Espiritismo, sob o ponto de vista de suas consequências
religiosas:
1a Quem
terá melhor quinhão na vida futura — aquele que não crê em coisa alguma, ou
aquele que, crente das verdades gerais, não admite certas partes do dogma?
2a O
protestante e o cismático serão confundidos na mesma reprovação que o ateu e o
materialista?
3a O
que não é ortodoxo, no rigor da palavra, mas faz o bem que pode, que é bom e
indulgente para com o próximo, leal em suas relações sociais, deve contar menos
com a salvação do que aquele que crê em tudo, mas é duro, egoísta e baldo de
caridade?
4a Qual
terá mais valor aos olhos de Deus: a prática das virtudes cristãs sem a dos
deveres da ortodoxia, ou a destes últimos sem a da moral?
Respondi,
senhor abade, às questões e objeções que me dirigistes, mas como vo-lo disse no
começo, sem intenção alguma preconcebida de conduzir-vos às nossas ideias e de
mudar as vossas convicções, limitando- -me tão somente a fazer-vos encarar o
Espiritismo sob seu verdadeiro aspecto. Se não tivésseis vindo, eu não vos
teria ido procurar. Não quer isto dizer que desprezássemos a vossa adesão aos
nossos princípios, caso ela se verificasse; longe disso; julgamo-nos sempre
felizes pelas aquisições que fazemos, as quais têm para nós tanto maior valor quanto
mais livres e voluntárias são. Não só não temos o direito de exercer constrangimento
sobre quem quer que seja, como também sentiríamos escrúpulo em ir perturbar a
consciência dos que, tendo crenças que os satisfazem, não venham
espontaneamente ao nosso encontro.
Dissemos
que o melhor meio de se esclarecerem sobre o Espiritismo é estudarem
previamente a teoria; os fatos virão depois, naturalmente, e serão facilmente
compreendidos, qualquer que seja a ordem em que as circunstâncias os façam vir.
As nossas publicações são feitas no intuito de favorecer esse estudo; eis aqui
a ordem que aconselhamos.
A
primeira leitura a fazer-se é a deste resumo, que apresenta o conjunto e os
pontos mais salientes da ciência; com isso, pois, já se pode fazer dela uma
ideia e ficar-se convencido de que, no fundo, existe algo de sério. Nesta
rápida exposição esforçamo-nos por indicar os pontos sobre que particularmente
se deve fixar a atenção do observador. A ignorância dos princípios fundamentais
é a causa das falsas apreciações da maioria daqueles que querem julgar o que
não compreendem, ou que se baseiam em ideias preconcebidas.
Se
desta leitura nascer o desejo de continuar, deve-se ler O livro dos espíritos,
no qual os princípios da Doutrina estão completamente desenvolvidos; depois, O
livro dos médiuns, para a parte experimental, destinado a servir de guia aos
que desejarem operar por si mesmos, como aos que quiserem bem compreender os
fenômenos. Vêm depois as diversas obras em que são desenvolvidas as aplicações
e as consequências da Doutrina, como: O evangelho segundo o espiritismo, O céu
e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo etc.
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