A IGREJA CRISTÃ
PRIMITIVA
De uso especificamente
cristão, adotado pelas comunidades cristãs logo no seu início, o termo “igreja”
certamente queria dizer mais do que “reunião”, uma vez que assinalava a
diferença entre os adeptos que viam Jesus como Messias e os judeus que não o
aceitavam.
Desde a fundação da igreja
primitiva, em Jerusalém, percebe-se a existência de duas correntes religiosas.
Ambas aceitavam a aplicação da lei de Israel aos cristãos de origem judaica,
divergindo, no entanto, quanto à sua aplicação aos gentios, convertidos ao
Cristianismo.
O Evangelho do divino Mestre
ainda encontrará, por algum tempo, a resistência das trevas. A má-fé, a
ignorância, a simonia, o império da força conspirarão contra Ele, mas tempo
virá em que a sua ascendência será reconhecida.
Introdução
A palavra “igreja” (do grego
ekklesia e do latim ecclesia) significa uma assembleia que se reúne por força
de uma convocação.
De uso especificamente
cristão, adotado pelas comunidades cristãs logo no seu início, o termo “igreja”
certamente queria dizer mais do que “reunião”, uma vez que assinalava a
diferença entre os adeptos que viam Jesus como Messias, e os judeus que não o
aceitavam. O vocábulo relacionava-se com expressões do Antigo Testamento,
sobretudo com a palavra hebraica “gahal” (assembleia, congregação, multidão),
que a versão grega dos setenta (a septuaginta) traduz quase sempre para
ekklesia.
A palavra ekklesia, porém,
tem origem no Judaísmo.
No Novo Testamento, onde
ocorre cerca de 114 vezes (das quais 65 nas epístolas de Paulo), mostra a sua
correlação histórica e linguística com o Judaísmo; a sua frequência, porém,
corresponde ao desenvolvimento próprio e original de uma nova instituição —
cujo ponto de referência é agora Jesus de Nazaré, chamado o Cristo —, significa
uma ruptura com uma situação anterior. De modo geral, a ekklesia para o Novo
Testamento foi essencialmente a vivência da fé dos primeiros grupos cristãos.
Trata-se, no início, de expressar a unidade no amor em vista da instauração do
reino e do advento iminente do Senhor. Cada igreja primitiva
institucionalizava-se progressivamente em função de condições concretas, em
grande parte de significado local.
É nítida a mudança de conceito de igreja nas epístolas de Paulo, indo desde o significado elementar de assembleia ou reunião, evoluindo para o de comunidade ou grupo, de forma concreta, até chegar ao sentido teológico de que Cristo é a cabeça do corpo que é a própria Igreja (Epístola aos Colossenses, 1:18, 24).
Em Mateus, o conceito de uma
Igreja estruturada parece evidente e é coerente com a “teologia do povo”
elaborada pelo evangelista. A ideia de ruptura com a oficialidade judaica está
claramente expressa na parábola dos viticultores homicidas (Mateus, 21:33-45).
Neste aspecto, a expressão o
“reino dos céus” é retirado de um povo — o judeu — e entregue a uma nova
humanidade, formada de judeus e gentios.
João utiliza a palavra
igreja de maneira diversa em seus escritos (evangelho, epístolas e apocalipse).
Apresenta um significado simbólico, mais espiritualizado, de união com Jesus.
Os cristãos são, para o apóstolo, testemunhas da mensagem do Cristo. Somente em
Atos dos Apóstolos iremos encontrar a palavra igreja no sentido de um grupo de
pessoas que se reúnem e que professam a fé cristã (Atos dos Apóstolos, 6:1-6; 15:22).
1. A igreja primitiva
A igreja primitiva começa
com a fundação da igreja de Jerusalém, após o pentecostes; abrange, em seguida,
o trabalho realizado pelos doze apóstolos e seus discípulos na difusão do
Cristianismo, inclusive as atividades desenvolvidas por Paulo; atravessa o
período de grandes provações que os cristãos sofreram durante a perseguição do
estado imperial romano e se completa no início da Idade Média com a
constituição da igreja apostólica romana (Ocidental) e a ortodoxa (Oriental).
A era apostólica é obscura,
pois não há muitas informações a respeito. De concreto, temos as informações de
Lucas, inseridas em Atos dos Apóstolos. A documentação existente sobre a igreja
primitiva focaliza dois personagens: Pedro e Paulo. Inegavelmente, muitas das
informações que chegaram até nós deve-se ao trabalho de Paulo. Percebe-se que,
desde a constituição das primeiras comunidades, as divergências entre os
adeptos foram marcantes. Construíram grupos separados e, muitos deles, rivais.
Logo após o martírio de
Estêvão a relativa paz dos cristãos foi perturbada por uma cruel perseguição
movida por Herodes Agripa I, em 44 d.C. O apóstolo Tiago foi decapitado,
enquanto Pedro era preso, o que o levou, posteriormente, a afastar-se de
Jerusalém.
Há fortes evidências de que
tanto Pedro quanto Paulo tenham sido martirizados em Roma, na época de Nero, na
grande perseguição ocorrida no ano 64. No ano 100 morre o apóstolo João,
possivelmente.
Desde a fundação da igreja
primitiva, em Jerusalém, percebe-se a existência de dois partidos religiosos.
Ambos aceitavam a aplicação
da lei de Israel aos cristãos de origem judaica, divergindo quanto à sua
aplicação aos conversos do paganismo. Paulo afirmava que os cristão-gentios
deviam gozar de liberdade quanto à lei antiga, uma vez que não estavam a ela
obrigados. Tal problema, que se torna mais agudo com o estabelecimento da
Igreja em Antioquia, em Chipre e na Galácia, provocou a interferência do
apóstolo Paulo, que se reuniu com os líderes da Igreja em Jerusalém, onde se realizou
um Concílio, de que não resultaram possibilidades de acordo. Paulo, favorável a
um cristianismo não legalista, passa a trabalhar em favor de uma Igreja
universal, tornando-se um fundador de uma teologia cristã.
Importa considerar que não
existia, nos primeiros tempos do Cristianismo nascente, uma coesão doutrinária
entre os cristãos. As primeiras pregações caracterizavam-se por depoimentos
sobre a pessoa e os ensinamentos do Cristo. Com a crucificação e ressurreição
de Jesus, surge um novo elemento doutrinário: o Espírito Santo, manifestado no
dia de pentecostes (Atos dos Apóstolos, 4,8-12). Com o pentecostes, começa,
então, a expansão do Cristianismo para o mundo pagão, a partir do foco inicial
de Jerusalém. Os principais eventos dessa expansão podem ser resumidos em dois:
·
Fundação em Antioquia (Síria) de uma nova
comunidade que acabou por se transformar em um centro de divulgação da religião
helenista, base da organização da futura Igreja Católica Ortodoxa (Oriental).
Foi nessa igreja que, pela primeira vez, os galileus (Atos dos Apóstolos, 1:11)
ou nazarenos (Atos dos Apóstolos, 24:5) foram chamados de cristãos.
·
Constituição do Cristianismo, em Roma, pelos
judeus da diáspora presentes aos acontecimentos de pentecostes (Atos dos
Apóstolos, 2:10).
No primeiro século da
cristandade os conquistadores romanos não fazem diferença entre cristãos e
judeus, porém, quando começam a ter essa percepção, institucionalizam as
perseguições. Desta forma, a vida do cristão se revelou muito difícil, uma vez
que a nova religião era perseguida tanto por judeus — que viam no Cristianismo
uma grande ameaça aos privilégios dos doutores da lei judaica — quanto pelos
romanos, que não conseguiam aceitar uma religião que pregava a liberdade, o
respeito à dignidade do ser humano e o amor e o perdão como regras de conduta
moral.
As classes mais abastadas
não podiam tolerar semelhantes princípios de igualdade, quais os que
preconizavam as lições do Nazareno, considerados como postulados de covardia
moral, incompatíveis com a orgulhosa filosofia do Império, e é assim que vemos
os cristãos sofrendo os martírios da primeira perseguição, iniciada no reinado
de Nero de tão dolorosas quão terríveis lembranças.
Os cristãos, em
consequência, passaram a viver longos períodos de tempo às escondidas, mas
preservando a união entre eles. Possuíam um sentimento de irmandade, caridade e
fé, inegavelmente muito maior do que se percebe no cristão de hoje.
2. Os pais da Igreja
“Pais” ou “padres” foram, na
Antiguidade, os guardiões da mensagem cristã. Mais tarde, a expressão foi
substituída por “patriarcas” e, na Idade Média, por “doutores da Igreja”.
2.1 Os
pais apostólicos
São representados pelos doze
apóstolos e por dedicados discípulos de Jesus, como Paulo e Lucas.
Historicamente, abrange os anos do primeiro século da Era Cristã, de 30 a 100,
fechando, possivelmente, com a morte de João, em Éfeso, o último dos apóstolos
a retornar ao mundo espiritual. As principais características deste período são
a difusão do Cristianismo e a construção da igreja cristã. Além dos apóstolos,
destaca-se, no Ocidente, a figura de Clemente de Roma, e no Oriente, as de
Inácio, Policarpo, Barnabé, Papias e Hermas. Surge o Didaquê, uma espécie de
catecismo, com prescrições litúrgicas para o batismo, preceitos sobre o jejum,
a oração e o dia de domingo. A tradição apostólica de Hipólito, também deste
período, trata dos ofícios e ministérios na comunidade, como eleição e sagração
de bispos e ordenação de presbíteros e diáconos.
2.2 Os
apologistas
Compreende o período de 120
a 220 da Era Cristã, segundo e terceiro séculos, respectivamente. Os
apologistas foram pensadores cristãos que se dedicavam à tarefa de escrever
apologias do Cristianismo, com o intuito de defendê-lo. Era preciso, nessa
época, defender a doutrina cristã nascente de três correntes distintas, que lhe
faziam oposição: a religião judaica, o estado romano e a filosofia pagã. Contra
os judeus, era necessário afirmar, argumentativamente, o messianismo de Jesus
Cristo. Contra os romanos, era preciso convencer o imperador quanto ao direito
de legalização da prática do Cristianismo dentro do Império, e contra os
filósofos pagãos, a tarefa dos apologistas era a de apresentar a religião
cristã como uma verdade total, ao contrário dos erros ou verdades parciais
presentes, segundo esses autores, na filosofia helenística. Os apologistas
criaram um tipo de literatura denominada apologética, de cunho científico e
filosófico. Tertuliano se destaca, no Ocidente. Justino, o Mártir, Taciano,
Teófilo, Aristides e Atenágoras, no Oriente.
2.3 Os
polemistas
Os polemistas defendiam as
ideias cristãs contra as várias dou- trinas que marcaram o período compreendido
entre os anos 180 e 250 d.C. A
principal doutrina combatida por eles foi o gnosticismo, interpretação
filosófica que tem como base os ensinamentos de filósofos gregos, especialmente
os neoplatônicos. O gnosticismo se desenvolveu em mais de 30 sistemas
diferentes, mas quase todos eles tratam da oposição entre fé e razão,
misturando conceitos da filosofia grega com preceitos da cultura oriental e do
Cristianismo. Os polemistas mais proeminentes pertenciam à Escola de
Alexandria, tais como: Atanásio, Basílio de Cesareia e Cirilo.
2.4 Os
teólogos científicos
Os teólogos científicos
aparecem no quarto século (325–460) e têm a intenção de explicar a Bíblia por
meio da Ciência. Parece ser a primeira tentativa de unir a Religião e a
Ciência, ou a fé à razão. Os temas Deus, criação dos seres, dos Espíritos e
do universo são estudados de forma racional. São vultos proeminentes deste grupo:
no Ocidente, Jerônimo, Ambrósio e Agostinho. No Oriente, Crisóstomo e Teodoro.
Em Alexandria, Atanásio, Basílio de Cesaréia e Cirilo.
3. Deturpações na mensagem cristã
Se, por um lado a integração
do Cristianismo ao Estado livrara os cristãos das perseguições, por outro
obrigava a igreja cristã a fazer concessões políticas que, como sabemos, se
responsabilizaram pela desconfiguração da mensagem cristã.
As fronteiras ideológicas do
Cristianismo tornavam-se frágeis e se diluíam em tendências heterogêneas. Estas,
ao se afirmarem, criaram uma confrontação inevitável entre as múltiplas
interpretações doutrinárias e as várias tradições cristãs. Como todas as
correntes reivindicavam a legitimidade apostólica, tratava-se de definir o que
estaria de acordo ou contra a pregação tradicional dos Apóstolos. Essa
confrontação veio a caracterizar a divisão entre elementos ortodoxos e
heterodoxos no pensamento cristão elaborado.
No final do século I, a
própria constituição da Igreja modificara-se substancialmente e as primeiras
formas litúrgicas aparecem, assim como o ascetismo e o legalismo. Nesse mesmo
período, a Igreja estava presente na Ásia Menor, na Síria, na Macedônia, na
Grécia, em Roma e talvez no Egito. Se por um lado o Cristianismo se expandia
geograficamente através da vivência das igrejas organizadas, por outro perdia
em profundidade.
O ascetismo, entendido como
uma prática filosófica ou religiosa, de desprezo ao corpo e às sensações
corporais, e que tende a assegurar, pelos sofrimentos físicos, o triunfo do Espírito
sobre os instintos e as paixões, revelou-se como uma forma deprimente de viver
o Cristianismo. O ascetismo, surgido na igreja primitiva, serviu de base para o
monasticismo, estabelecido nos séculos posteriores. “Por trás do movimento
monástico, achava-se o zeloso cristão empenhando-se fervorosamente para
conseguir a união de sua alma com Deus.”
O ascetismo preconizava, e
preconiza, uma vida solitária, de completa renúncia às atividades existentes no
mundo material, e aceitação voluntária de privações e sofrimentos.
O impulso para o ascetismo e
o monasticismo não é peculiar ao Cristianismo [igrejas cristãs]. Aparece em
outras religiões, tanto antes como depois do tempo de Cristo, e entre alguns
indivíduos que não professam qualquer religião. No terceiro e quarto séculos,
outras influências deram acrescida força ao impulso para o ascetismo e o
monasticismo e levaram esses ideais a uma realização prática. Uma delas foi a
influência das filosofias dualistas do gnosticismo e do neoplatonismo.
O legalismo é definido como
um conjunto de regras ou preceitos rigorosos que contrariam a vivência pura e
simples de qualquer interpretação religiosa, inclusive a cristã. O legalismo,
em qualquer época, representa uma forma de escravidão, que conduz ao fanatismo,
e, sobretudo, afasta o homem da prática da caridade. A seguinte passagem do
Evangelho mostra o que Jesus tinha a dizer sobre o legalismo judaico: “partindo
dali, entrou na sinagoga deles. Ora, ali estava um homem com a mão atrofiada.
Então lhe perguntaram, a fim de acusá-lo: é lícito curar nos sábados?” Jesus
respondeu: “quem haverá dentre vós que, tendo uma ovelha, e caindo ela numa
cova em dia de sábado, não vai apanhá-la e tirá-la dali? Ora, um homem vale
muito mais do que uma ovelha! Logo, é lícito fazer bem aos sábados” (Mateus,
12:9-12).
A hegemonia da Igreja de
Roma, em relação à de Constantinopla, concedeu àquela poder suficiente para se
transformar numa monarquia papal. Se na Idade Antiga os principais
acontecimentos da história da Igreja se deram no Mediterrâneo e no Oriente, na
Idade Média os centros mais importantes localizam-se na Itália, França,
Inglaterra e Alemanha. A razão histórica é a invasão islâmica no mediterrâneo e
a adoção do Cristianismo pelos povos germânicos e eslavos.
Em consequência, surgem no
campo doutrinário sérias deturpações da mensagem cristã pela incorporação de
rituais pagãos, de preceitos filosóficos e de deliberações conciliares, de
natureza cada vez mais políticas e menos evangélicas. Os principais desvios
ocorridos na igreja primitiva foram:
·
Trindade divina: é uma crença de que Deus é
formado por uma trindade representada como o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
sendo cada uma expressão da perfeição.
·
A natureza divina e humana de Jesus: como
homem, Jesus era filho de uma virgem e padeceu os martírios da crucificação.
Como Deus, ofereceu-se em sacrifício para redimir os homens dos seus pecados.
·
Fora da Igreja não há salvação: todos os
cristãos são membros de uma só Igreja, que está sob a guarda divina. Revela
nítido conflito com o ensinamento de Jesus, fielmente interpretado por Paulo:
“Fora da caridade não há salvação” (1 Coríntios, 13:1-7,13).
Enquanto a máxima — Fora da
caridade não há salvação — assenta num princípio universal e abre a todos os
filhos de Deus acesso à suprema felicidade, o dogma — Fora da Igreja não há
salvação — se estriba, não na fé fundamental em Deus e na imortalidade da alma,
fé comum a todas as religiões, porém “numa fé especial”, em “dogmas
particulares”; é exclusivo e absoluto. Longe de unir os filhos de Deus, separa-os;
em vez de incitá-los ao amor de seus irmãos, alimenta e sanciona a irritação
entre sectários dos diferentes cultos.
Emmanuel conclui, destacando
o sublime consolo que a Humanidade encontra no Evangelho de Jesus.
O Evangelho do divino Mestre
ainda encontrará, por algum tempo, a resistência das trevas. A má-fé, a
ignorância, a simonia, o império da força conspirarão contra ele, mas tempo
virá em que a sua ascendência será reconhecida. Nos dias de flagelo e de
provações coletivas, é para a sua luz eterna que a Humanidade se voltará,
tomada de esperança. Então, novamente se ouvirão as palavras benditas do Sermão
da Montanha e, através das planícies, dos montes e dos vales, o homem conhecerá
o caminho, a verdade e a vida.
Fonte:
Estudo aprofundado da doutrina espírita. FEB, 2013.
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