Obras póstumas – Parte 1.VI

INFLUÊNCIA PERNICIOSA DAS IDEIAS MATERIALISTAS

Sobre as Artes em geral; a regeneração delas por meio do Espiritismo

Lê-se na seção Correio de Paris, do Mundo Ilustrado, de 19 de dezembro de 1868:

Carmouche escreveu mais de duzentas comédias e vaudeviles e, quando muito, o nosso tempo apenas lhe conhecerá o nome. É que a glória dramática, que tantas cobiças desperta, é terrivelmente fugaz. A menos que um autor haja produzido excepcionais obras-primas, condenado se acha a ver o seu nome cair no esquecimento, logo que ele deixe de estar na brecha. Mesmo durante a luta, a maioria lhe ignora a existência. Com efeito, o público, quando lê o cartaz, apenas atenta no título da peça; pouco lhe importa o nome de quem a escreveu. Tente o leitor lembrar-se de quem escreveu tal ou tal obra encantadora, cuja lembrança lhe ficou. Quase sempre se encontrará na impossibilidade de declinar esse nome. E quanto mais avançarmos, tanto mais assim será, pois que as preocupações de ordem material cada vez mais se sobrepõem aos cuidados artísticos.

Precisamente a esse propósito, Carmouche contava uma anedota típica. Conversando, dizia, com o meu alfarrabista, acerca do seu comerciozinho, ele se manifestava assim: “Isto não vai mal, meu senhor, mas modifica-se; os artigos que se vendem já não são os mesmos de antes. Outrora, quando me surgia um rapaz de 18 anos, nove vezes em dez era à procura de um dicionário de rimas; hoje, é para me pedir um manual das operações da Bolsa.

As preocupações de ordem material se sobrepõem aos cuidados artísticos, mas, como não ser assim, quando os maiores esforços se fazem para concentrar todos os pensamentos do homem na vida carnal e para destruir nele toda esperança, toda aspiração que ultrapasse essa existência? É lógica, inevitável semelhante consequência para aquele que nada vê fora do círculo estreito da efêmera vida presente. Quando a criatura nada percebe atrás de si, nada adiante de si, nada acima de si, em que pode ela concentrar seus pensamentos senão no ponto onde se encontra? O que há de sublime na Arte é a poesia do ideal, que nos transporta para fora da esfera acanhada de nossas atividades. Mas o ideal paira exatamente nessa região extramaterial onde só se penetra pelo pensamento; que a vista corporal não pode varar, mas que a imaginação concebe. Ora, que inspiração pode o Espírito haurir da ideia do nada?

O pintor que unicamente houvesse visto o céu brumoso, as estepes áridas e monótonas da Sibéria e que julgasse estar ali todo o Universo, poderia conceber e descrever o brilho e a riqueza de tons da Natureza tropical? Como querereis que os vossos artistas e os vossos poetas vos transportem a regiões que eles não veem com os olhos da alma, que não compreendem e nas quais nem mesmo creem?

O Espírito somente pode identificar-se com o que sabe ou crê ser a verdade e essa verdade, embora de ordem moral, se lhe torna uma realidade que tanto melhor ele exprime, quanto melhor a sente. Se à inteligência da coisa junta a flexibilidade do talento, faz que suas próprias impressões se transmitam às almas dos outros. Mas que impressões pode provocar nos outros aquele que não as tem?

Para o materialista, a realidade é a Terra; seu corpo é tudo, pois que, além dele, nada mais há, visto que a sua própria mente se extingue com a desorganização da matéria, como o fogo com o combustível. Não pode, portanto, com a linguagem da Arte, exprimir senão o que vê e sente. Ora, se ele só vê e sente a matéria tangível, unicamente isso lhe é possível exprimir. Nada pode haurir de onde apenas vê o vazio. Se se aventura por um mundo que desconhece, entra aí como cego e, malgrado os esforços que empregue para elevar-se ao diapasão do idealismo, fica no terra a terra, como um pássaro sem asas.

A decadência das Artes, neste século, resultou inevitavelmente da concentração dos pensamentos sobre as coisas materiais, concentração essa que, a seu turno, é o resultado da ausência de toda crença, de toda fé na espiritualidade do ser. O século apenas colhe o que semeou. Quem semeia pedras não pode colher frutas. As Artes não sairão do torpor em que jazem, senão por meio de uma reação no sentido das ideias espiritualistas.

Como poderiam o pintor, o poeta, o literato, o músico ligar seus nomes a obras duráveis, quando, em sua maioria, eles próprios não creem no futuro de seus trabalhos; quando não se apercebem de que a Lei do Progresso, força invencível que arrasta os Universos pela estrada do infinito, lhes pede mais do que descoradas cópias das criações magistrais dos artistas dos tempos idos! Toda gente se lembra dos Fídias, dos Apeles, dos Rafaéis, dos Miguéis Ângelos, luminosos faróis que se destacam da obscuridade dos séculos transcorridos, como fúlgidas estrelas em meio de profundas trevas, mas quem se lembrará de notar o claror de uma lâmpada a lutar contra o brilho do sol de um dia de verão?

O mundo caminhou a passos gigantescos desde os tempos históricos; os filósofos dos povos primitivos gradualmente se transformaram. As Artes que se apoiam nas filosofias que lhes são a consagração idealizada, também tiveram que se modificar e transformar. É matematicamente certo dizer-se que, sem crença, as Artes carecem de vitalidade e que toda transformação filosófica acarreta necessariamente uma transformação artística paralela. Em todas as épocas de transformação, as Artes periclitam, porque a crença em que se estribam não basta às aspirações engrandecidas da Humanidade e porque, não estando ainda adotadas pela grande maioria dos homens os novos princípios, os artistas não ousam explorar, senão de modo hesitante, a mina desconhecida que se lhes abre sob os passos.

Durante as épocas primitivas, em que os homens unicamente conheciam a vida material, em que a Filosofia divinizava a Natureza, a Arte buscou, antes de tudo, a perfeição da forma. A beleza corporal era, então, a qualidade capital; a Arte se aplicou em a reproduzir e idealizar. Mais tarde, a Filosofia enveredou por nova senda; os homens, progredindo, reconheceram que acima da matéria havia uma potência criadora e organizadora, que recompensava os bons, punia os maus e fazia da caridade uma lei. Um mundo novo, o mundo moral se edificou sobre as ruínas do mundo antigo. Dessa transformação nasceu uma Arte nova que fez palpitasse a alma sob a forma e juntou à percepção plástica a expressão de sentimentos que os antigos desconheceram.

A ideia viveu sob a matéria, mas revestiu as formas severas da Filosofia em que a Arte se inspirava. Às tragédias de Ésquilo, aos mármores de Milo, sucederam as descrições e as pinturas das torturas físicas e morais dos réprobos. A Arte se elevou; revestiu caráter grandioso e sublime, porém ainda sombrio. Ela está toda, com efeito, na pintura do inferno e do céu da Idade Média, na de sofrimentos eternos, ou de uma beatitude muito distante, colocada tão alto, que nos parece quase inacessível; é talvez por isso que ela nos toca tão pouco, quando a vemos reproduzida na tela ou no mármore.

Também hoje, ninguém ousaria contestá-lo, o mundo está num período de transição, solicitado violentamente por hábitos obsoletos, crenças precárias do passado e verdades novas, que lhe são progressivamente desvendadas.

Assim como a arte cristã sucedeu à arte pagã, transformando-a, a arte espírita será o complemento e a transformação da arte cristã. O Espiritismo, efetivamente, nos mostra o porvir sob uma luz nova e mais ao nosso alcance. Por ele, a felicidade está mais perto de nós, está ao nosso lado, nos Espíritos que nos cercam e que jamais deixaram de estar em relação conosco. A morada dos eleitos, a dos condenados já não se acham insuladas; há incessante solidariedade entre o Céu e a Terra, entre todos os mundos de todos os Universos; a ventura consiste no amor mútuo de todas as criaturas que chegam à perfeição e numa constante atividade, com o objetivo de instruir e conduzir àquela mesma perfeição os que se tornaram retardatários. O inferno está no próprio coração do culpado, que tem nos remorsos o seu castigo, não mais, todavia, eterno, e ao mau, que toma o caminho do arrependimento, se depara de novo a esperança, sublime consolação dos desgraçados.

Que inesgotáveis fontes de inspiração para a Arte! Que obras-primas de todos os gêneros as novas ideias suscitarão, pela reprodução das cenas tão multiplicadas e várias da vida espírita! Em vez de representar despojos frios e inanimados, ver-se-á uma mãe tendo ao lado a filha querida em sua forma radiosa e etérea; a vítima a perdoar ao seu algoz; o criminoso a fugir em vão ao espetáculo, de contínuo renascente, de suas ações culposas! o insulamento do egoísta e do orgulhoso, em meio da multidão; a perturbação do Espírito que volve à vida espiritual etc. etc. E, se o artista quiser elevar-se acima da esfera terrestre, aos mundos superiores, verdadeiros édens onde os Espíritos adiantados gozam da felicidade que conquistaram, ou, se desejar reproduzir alguns aspectos dos mundos inferiores, verdadeiros infernos onde reinam soberanamente as paixões, que cenas emocionantes, que quadros palpitantes de interesse se lhe depararão!

Sem dúvida, o Espiritismo abre à Arte um campo inteiramente novo, imenso e ainda inexplorado. Quando o artista houver de reproduzir com convicção o mundo espírita, haurirá nessa fonte as mais sublimes inspirações e seu nome viverá nos séculos vindouros, porque, às preocupações de ordem material e efêmeras da vida presente, sobreporá o estado da vida futura.

TEORIA DA BELEZA

Será a beleza coisa convencional e relativa a cada tipo? O que, para certos povos, constitui a beleza, não será, para outros, horrenda fealdade? Os negros se consideram mais belos que os brancos e vice-versa. Nesse conflito de gostos, haverá uma beleza absoluta? Em que consiste ela? Somos, realmente, mais belos do que os hotentotes e os cafres? Por quê?

Esta questão que, à primeira vista, parece estranha ao objeto dos nossos estudos, a eles, no entanto, se prende de modo direto e entende com o futuro mesmo da Humanidade. Ela nos foi sugerida, assim como a sua solução, pela seguinte passagem de um livro muito interessante e muito instrutivo, intitulado: As revoluções inevitáveis no globo e na humanidade, de Charles Richard.

O autor combate a opinião dos que sustentam a degenerescência física do homem, desde os tempos primitivos; refuta vitoriosamente a crença na existência de uma primitiva raça de gigantes e empreende provar que, do ponto de vista físico e do talhe, os homens de hoje valem os antigos, se é que não os ultrapassam.

Pelo que toca à beleza do rosto, à graça da fisionomia, ao conjunto que constitui a estética do corpo, ainda é mais fácil de comprovar-se a melhoria operada. Basta, para isso, que se lance um olhar sobre os tipos que as medalhas e as estátuas antigas nos transmitiram intactas através dos séculos.

A iconografia de Visconti e o museu do conde de Clarol são, entre muitas outras, duas fontes donde com facilidade se podem tirar variados elementos para este interessante estudo.

O que mais solicita a atenção nesse conjunto de figuras é a rudeza dos traços, a animalidade da expressão, a crueza do olhar. O observador sente, com involuntário frêmito, que tem diante de si gente que o cortaria em pedaços, para dá-los de comer às suas moreias, como o fazia Polion, rico apreciador de boas iguarias, cidadão de Roma e familiar de Augusto.

O primeiro Brutus (Lucius Junius), o que mandou cortar a cabeça a seus filhos e assistiu a sangue-frio ao suplício de ambos, assemelha-se a uma fera. Seu perfil sinistro tem da águia e do mocho o que esses dois carniceiros do ar apresentam de mais feroz. Vendo-o, ninguém pode duvidar de que haja merecido a ignominiosa honra que a História lhe conferiu. Assim como matou os dois filhos, também teria estrangulado a própria mãe, pelo mesmo motivo.

O segundo Brutus (Marcus), que apunhalou César, seu pai adotivo, precisamente na hora em que este mais contava com o seu reconhecimento e o seu amor, lembra, pelos traços, um asno fanático; não mostra, sequer, a beleza sinistra que o artista descobre muitas vezes, essa energia extremada que impele ao crime.

Cícero, o orador brilhante, escritor espiritual e profundo, que deixou tão grande recordação da sua passagem por este mundo, tem um rosto acachapado e vulgar, que certamente tornava muito menos agradável vê-lo, do que ouvi-lo.

Júlio César, o grande, o incomparável vencedor, o herói dos massacres, que deu entrada no reino das sombras com um cortejo de dois milhões de almas por ele previamente despachadas para lá, era tão feio como o seu predecessor, mas de outro gênero. Seu rosto magro e ossudo, posto sobre um pescoço comprido e enfeado por um gogó saliente, parecia-se mais com um grande Gilles do que com um grande guerreiro.

Galba, Vespasiano, Nerva, Caracala, Alexandre Severo, Balbino, não eram apenas feios, mas horrendos. É com dificuldade que, nesse museu dos antigos tipos da nossa espécie, o observador logra descobrir, aqui ou ali, algumas figuras que possam merecer um olhar de simpatia. As de Cipião, o Africano, de Pompeu, de Cômodo, de Heliogábalo, de Antinous, o pequeno de Adriano, são desse reduzido número. Sem serem belos, no sentido moderno da palavra, essas figuras são, entretanto, regulares e de agradável aspecto.

As mulheres não são melhor tratadas do que os homens e dão ensejo às mesmas notas. Lívia, filha de Augusto, tem o perfil pontudo de uma fuinha; Agripina faz medo e Messalina, como que para desconcertar a Cabanis e Lavater, parece uma gordanchuda serviçal, mais amante de sopas suculentas do que de outra coisa.

Os gregos, é preciso dizê-lo, são, em geral, menos mal talhados que os romanos. As figuras de Temístocles e de Milcíades, entre outros, podem comparar-se aos mais belos tipos modernos. Mas Alcibíades, o avô longínquo dos nossos Richelieu e dos nossos Lauzun, cujas façanhas galantes, por si sós, enchem a crônica de Atenas, tinha, como Messalina, muito pouco do físico que corresponderia às suas atividades. Ao ver-lhe os traços solenes e a fronte grave, quem quer que seja o tomaria antes por um jurisconsulto agarrado a um texto de lei do que pelo audacioso conquistador, que foi, de mulheres, que se fazia exilar em Esparta, unicamente para enganar o pobre rei Ágis e, depois, vangloriar-se de ter sido amante de uma rainha.

Sem embargo da pequena vantagem que, quanto a esse ponto, se possa conceder aos gregos sobre os romanos, quem se der ao trabalho de comparar esses velhos tipos com os do nosso tempo, reconhecerá sem esforço que nesse sentido, como em todos os outros, houve progresso. Apenas, convém não esquecer, nessa comparação, que aqui se trata de classes privilegiadas, sempre mais belas do que as outras e que, por conseguinte, os tipos modernos que se hajam de contrapor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões, e não nas pocilgas. É que a pobreza, ah! em todos os tempos e sob todos os aspectos, jamais foi bela e não o é, precisamente, para nos envergonhar e forçar-nos a um dia nos libertarmos dela.

Não quero, pois, dizer, longe disso, que a fealdade haja desaparecido inteiramente das nossas frontes e que a marca divina se acha afinal posta em todas as máscaras que velam uma alma. Longe de mim avançar uma afirmação que muito facilmente poderia ser contestada por toda gente. A minha pretensão se limita a verificar que, num período de dois mil anos, coisa tão pouca para uma Humanidade que tanto tem de viver, a fisionomia da espécie melhorou de maneira já sensível.

Creio, além disso, que as mais belas figuras da Antiguidade são inferiores às que podemos diariamente admirar em nossas reuniões públicas, em nossas festas e até no trânsito das ruas. Se não fosse o receio de ofender certas modéstias e também o de excitar certos ciúmes, confirmaria a evidência do fato com algumas centenas de exemplos conhecidos de todos, no mundo contemporâneo.

Os oradores do passado enchem constantemente a boca com a famosa Vênus de Médici, que lhes parece o ideal da beleza feminina, sem se aperceberem de que essa mesma Vênus passeia todos os domingos pelas avenidas d’Arles, em mais de cinquenta exemplares, e poucas serão as nossas cidades, sobretudo do Sul, que não possuam algumas...

...Em tudo o que vimos de dizer, limitamo-nos a comparar o nosso tipo atual com o dos povos que nos precederam de apenas alguns milhares de anos. Se, porém, remontarmos mais longe através das idades, penetrando nas camadas terrestres onde dormem os despojos das primeiras raças que habitaram o nosso globo, a vantagem a nosso favor se tornará de tal modo sensível que qualquer negação a esse propósito se desvanecerá por si mesma.

Sob aquela influência teológica que deteve Copérnico e Tycho Brahe, que perseguiu Galileu e que, nestes tempos mais próximos, obscureceu por um instante o gênio do próprio Cuvier, a Ciência hesitava em sondar os mistérios das épocas antediluvianas. A narrativa bíblica, admitida ao pé da letra, no mais estreito sentido, parecia haver dito a última palavra acerca da nossa origem e dos séculos que nos separam dela. Mas a verdade, impiedosa nos seus acrescentamentos, acabou rompendo a veste de ferro em que a queriam aprisionar para sempre e pondo a nuas formas até então ocultas.

O homem que vivia, antes do dilúvio, em companhia dos mastodontes, do urso das cavernas e de outros grandes mamíferos hoje desaparecidos, o homem fóssil, numa palavra, por tão longo tempo negado, foi encontrado afinal, ficando fora de dúvida a sua existência. Os recentes trabalhos dos geólogos, particularmente os de Boucher de Perthes, de Filippi e de Lyell, permitem se apreciem os caracteres físicos desse venerável avô do gênero humano. Ora, a despeito dos contos imaginados pelos poetas, sobre a beleza originária; malgrado o respeito que lhe é devido, como chefe antigo da nossa raça, a Ciência é obrigada a atestar que ele era de prodigiosa fealdade.

Seu ângulo facial não passava de 70º; suas mandíbulas, de considerável volume, eram armadas de dentes longos e salientes; tinha fugidia a fronte e as têmporas achatadas, o nariz esborrachado larga as narinas. Em resumo, esse venerável pai devia assemelhar-se bem mais a um orangotango do que aos seus afastados filhos de hoje; a tal ponto que, se não lhe houvessem achado ao lado as achas de sílex que fabricara e, em alguns casos, animais que ainda apresentavam traços das feridas causadas por essas armas informes, fora de duvidar-se do papel que ele desempenhava na nossa filiação terrestre. Não somente sabia fabricar achas de sílex, como também clavas e pontas de dardos, da mesma matéria. A galantaria antediluviana chegava mesmo a confeccionar braceletes e colares de pedrinhas arredondadas para adorno, naqueles tempos longínquos, dos braços e pescoços do sexo encantador, que depois se tornou muito mais exigente, como todos podem testemunhar.

Não sei o que a respeito pensarão as elegantes dos nossos dias, cujas espáduas cintilam de diamantes; quanto a mim, confesso-o, não me posso forrar a uma emoção profunda, ao pensar nesse primeiro esforço que o homem, mal diferenciado do bruto, fez para agradar à sua companheira, pobre e nua como ele, no seio de uma Natureza inóspita, sobre a qual a sua raça há de reinar um dia. Ó distanciados avós! Se já sabíeis amar, com as vossas faces rudimentares, como poderíamos nós duvidar da vossa paternidade, ante esse sinal divino da nossa espécie?

É, pois, manifesto que aqueles humanos informes são nossos pais, uma vez que nos deixaram traços da sua inteligência e do seu amor, atributos essenciais que nos separam da besta. Podemos, então, examinando-os atentamente, despojados das aluviões que os cobrem, medir, como a compasso, o progresso físico que a nossa espécie realizou, desde o seu aparecimento na Terra. Ora, esse progresso, que, faz pouco, podia ser contestado pelo espírito de sistema e pelos prejuízos de educação, assume tal evidência que não há mais como deixar de reconhecê-lo e proclamar.

Alguns milhares de anos podiam permitir dúvidas, algumas centenas de séculos as dissipam irrevogavelmente...

...Quão jovens e recentes somos em todas as coisas! Ainda ignoramos o nosso lugar e o nosso caminho na imensidade do Universo e ousamos negar progressos que, por falta de tempo, ainda não puderam ser reconhecidos. Crianças que somos, tenhamos um pouco de paciência e os séculos, aproximando-nos da meta, nos revelarão esplendores que, no seu afastamento, escapam aos nossos olhos apenas entreabertos.

Mas, desde já, proclamemos em altas vozes, pois que a Ciência no-lo permite, o fato capital e consolador do progresso lento, mas seguro, do nosso tipo físico, rumo a esse ideal que os grandes artistas entreviram, graças às inspirações que o Céu lhes envia, revelando-lhes seus segredos. O ideal não é produto ilusório da imaginação, um sonho fugitivo destinado a dar, de tempos a tempos, compensação às nossas misérias. É um fim assinado por Deus aos nossos aperfeiçoamentos, fim infinito, porque só o infinito, em todos os casos, pode satisfazer ao nosso espírito e oferecer-lhe uma carreira digna dele.

Destas judiciosas observações, resulta que a forma dos corpos se modificou em sentido determinado e segundo uma lei, à medida que o ser moral se desenvolveu; que a forma exterior está em relação constante com o instinto e os apetites do ser moral; que, quanto mais seus instintos se aproximam da animalidade, tanto mais a forma igualmente dela se aproxima; enfim, que, à medida que os instintos materiais se depuram e dão lugar a sentimentos morais, o envoltório material, que já não se destina à satisfação de necessidades grosseiras, toma formas cada vez menos pesadas, mais delicadas, de harmonia com a elevação e a delicadeza das ideias. A perfeição da forma é, assim, consequência da perfeição do Espírito: donde se pode concluir que o ideal da forma há de ser a que revestem os Espíritos em estado de pureza, a com que sonham os poetas e os verdadeiros artistas, porque penetram, pelo pensamento, nos mundos superiores.

Diz-se, de há muito, que o semblante é o espelho da alma. Esta verdade, que se tornou axioma, explica o fato vulgar de desaparecerem certas fealdades sob o reflexo das qualidades morais do Espírito e o de, muito amiúde, se preferir uma pessoa feia, dotada de eminentes qualidades, a outra que apenas possui a beleza plástica. É que semelhante fealdade consiste unicamente em irregularidades de forma, mas sem excluir a finura dos traços, necessária à expressão dos sentimentos delicados.

Do que precede se pode concluir que a beleza real consiste na forma que mais afastada se apresenta da animalidade e que melhor reflete a superioridade intelectual e moral do Espírito, que é o ser principal. Influindo o moral, como influi, sobre o físico, que ele apropria às suas necessidades físicas e morais, segue-se: 1o) que o tipo da beleza consiste na forma mais própria à expressão das mais altas qualidades morais e intelectuais; 2o) que, à medida que o homem se elevar moralmente, seu envoltório se irá avizinhando do ideal da beleza, que é a beleza angélica.

O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato, mas não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do sentimento, nem as modulações de um espírito fino.

Daí o podermos, sem fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais.

Lido que foi na Sociedade de Paris, este artigo se tornou objeto de grande número de comunicações, apresentando todas as mesmas conclusões. Transcreveremos apenas as duas seguintes, por serem as mais desenvolvidas:

Paris, 4 de fevereiro de 1869.

(Médium: Sra. Malet)

Ponderastes com acerto que a fonte primária de toda bondade e de toda inteligência é também a fonte de toda beleza. — O amor gera a beleza de todas as coisas, sendo, ele próprio, a perfeição. — O Espírito tem por dever adquirir essa perfeição, que é a sua essência e o seu destino. Ele tem que se aproximar, por seu trabalho, da inteligência soberana e da bondade infinita; tem, pois, também que revestir a forma cada vez mais perfeita, que caracteriza os seres perfeitos.

Se, nas vossas sociedades infelizes, no vosso globo ainda mal equilibrado, a espécie humana está tão longe dessa beleza física, é porque a beleza moral ainda está em começo de desenvolvimento. A conexão entre essas duas belezas é fato certo, lógico e do qual já neste mundo a alma tem a intuição. Com efeito, sabeis todos quão penoso é o aspecto de uma encantadora fisionomia, cujo encanto, porém, o caráter desmente. Se ouvis falar de uma pessoa de mérito comprovado, logo lhe atribuis os mais simpáticos traços e ficais dolorosamente impressionados, quando verificais que a realidade desmente as vossas previsões.

Que concluir daí, senão que, como todas as coisas que o futuro guarda de reserva, a alma tem a presciência da beleza, à medida que a Humanidade progride e se aproxima do seu tipo divino. Não busqueis tirar, da aparente decadência em que se acha a raça mais adiantada deste globo, argumentos contrários a essa afirmação. Sim, é verdade que a espécie parece degenerar, abastardar-se; sobre vós se abatem as enfermidades antes da velhice; mesmo a infância sofre as moléstias que habitualmente só se manifestam noutra idade da vida. É isso, no entanto, simples transição. A vossa época é má; ela acaba e gera: acaba um período doloroso e gera uma época de regeneração física, de adiantamento moral, de progresso intelectual. A nova raça, de que já falei, terá mais faculdades, mais recursos para os serviços do espírito; será maior, mais forte, mais bela. Desde o princípio, por-se-á de harmonia com as riquezas da Criação que a vossa raça, descuidosa e fatigada, desdenha ou ignora. Ter-lhe-eis feito grandes coisas, das quais ela aproveitará, avançando pela estrada das descobertas e dos aperfeiçoamentos, com um ardor febril cujo poder desconheceis.

Mais adiantados também em bondade, os vossos descendentes farão desta infeliz terra o que não haveis sabido fazer: um mundo ditoso, onde o pobre não será repelido, nem desprezado, mas socorrido por vastas e liberais instituições. Já desponta a aurora dessas ideias; chega-nos, por momentos, a claridade delas. Amigos, eis afinal o dia em que a luz brilhará na Terra obscura e miserável, em que a raça será boa e bela, de acordo com o grau de adiantamento que haja alcançado, em que o sinal posto na fronte do homem já não será o da reprovação, mas um sinal de alegria e de esperança. Então, os Espíritos adiantados virão, em multidões, tomar lugar entre os colonos deste globo; estarão em maioria e tudo lhes cederá ao passo. Far-se-á a renovação e a face do globo será mudada, porquanto essa raça será grande e poderosa e o momento em que ela vier assinalará o começo dos tempos venturosos. Pamphile

Paris, 4 de fevereiro de 1869.

A beleza, do ponto de vista puramente humano, é uma questão muito discutível e muito discutida. Para a apreciarmos bem, precisamos estudá-la como amador desinteressado. Aquele que estiver sob o encantamento não pode ter voz no capítulo. Também entra em linha de conta o gosto de cada um, nas apreciações que se fazem.

Belo, realmente belo só é o que o é sempre e para todos; e essa beleza eterna, infinita, é a manifestação divina em seus aspectos incessantemente variados; é Deus em suas obras e nas suas leis! Eis aí a única beleza absoluta. É a harmonia das harmonias e tem direito ao título de absoluta, porque nada de mais belo se pode conceber.

Quanto ao que se convencionou chamar belo e que é verdadeiramente digno desse título, não deve ser considerado senão como coisa essencialmente relativa, porquanto sempre se pode conceber alguma coisa mais bela, mais perfeita. Somente uma beleza existe e uma única perfeição: Deus. Fora dele, tudo o que adornarmos com esses atributos não passa de pálido reflexo do belo único, de um aspecto harmonioso das mil e uma harmonias da Criação.

Há tantas harmonias, quantos objetos criados, quantas belezas típicas, por conseguinte, determinando o ponto culminante da perfeição que qualquer das subdivisões do elemento animado pode alcançar. — A pedra é bela e bela de modos diversos. — Cada espécie mineral tem suas harmonias e o elemento que reúne todas as harmonias da espécie possui a maior soma de beleza que a espécie possa alcançar.

A flor tem suas harmonias; também ela pode possuí-las todas ou insuladamente e ser diferentemente bela, mas somente será bela quando as harmonias que concorrem para a sua criação se acharem harmonicamente fusionadas. — Dois tipos de beleza podem produzir, por fusão, um ser híbrido, informe, de aspecto repulsivo. — Há então cacofonia! Todas as vibrações, insuladamente, eram harmônicas, mas a diferença de tonalidade entre elas produziu um desacordo, ao encontrarem-se as ondas vibrantes; daí o monstro!

Descendo a escala criada, cada tipo animal dá lugar às mesmas observações e a ferocidade, a manha, até a inveja poderão dar origem a belezas especiais, se estiver sem mistura o princípio que determina a forma. A harmonia, mesmo no mal, produz o belo. Há o belo satânico e o belo angélico; a beleza enérgica e a beleza resignada. Cada sentimento, cada feixe de sentimentos, contanto que seja harmônico, produz um particular tipo de beleza, cujos aspectos humanos são todos, não degenerescências, mas esboços. É, pois, certo dizermos, não que somos mais belos, porém que nos aproximamos cada vez mais da beleza real, à medida que nos elevamos para a perfeição.

Todos os tipos se unem harmonicamente no perfeito. Daí o ser este o belo absoluto. — Nós que progredimos possuímos apenas uma beleza relativa, debilitada e combatida pelos elementos desarmônicos da nossa natureza. Lavater

A MÚSICA CELESTE

Certo dia, numa reunião familiar, o chefe da família lera uma passagem de O livro dos espíritos concernente à música celeste. Uma de suas filhas, boa musicista, pôs-se a dizer consigo mesma: Mas não há música no Mundo Invisível! Parecia-lhe isso impossível; entretanto, não externou seu pensamento. Na noite do mesmo dia, escreveu ela espontaneamente a comunicação seguinte:

Esta manhã, minha filha, teu pai te leu uma passagem de O livro dos espíritos. Tratava-se de música e tu aprendeste que a do Céu é muito mais bela do que a da Terra. Os Espíritos acham-na muito superior à vossa. Tudo isto é verdade; no entanto, dizias intimamente: Como poderia Bellini vir dar-me conselhos e ouvir a minha música? Foi provavelmente algum Espírito leviano e farsista (Alusão aos conselhos que o Espírito Bellini às vezes lhe dava sobre música). Enganas-te, minha filha. Quando os Espíritos tomam sob a sua proteção um encarnado, o objetivo que colimam é fazê-lo adiantar-se.

Assim, Bellini já não acha bela a sua música, porque não a pode comparar à do Espaço, mas, vendo a tua aplicação e o teu amor a essa arte, se te dá conselhos, é por sincera satisfação. Ele deseja que o teu professor seja recompensado de todo o seu esforço. Achando suas composições muito infantis, em face das sublimes harmonias do Mundo Invisível, ele aprecia o teu talento, que se pode qualificar de grande aí nesse mundo. Acredita, minha filha, os sons dos vossos instrumentos, as vossas mais belas vozes não poderiam dar-vos a menor ideia da música celeste e da sua suave harmonia.

Passados alguns instantes, disse a moça: “Papai, papai, vou adormecer, vou cair”. Logo se lançou numa poltrona, exclamando: “Ó papai, papai, que música deliciosa!... Desperta-me, senão eu me vou”.

Não sabendo os assistentes, aterrorizados, como fazer para despertá-la, disse ela: “Água, água”. Com efeito, algumas gotas que lhe salpicaram no rosto deram pronto resultado. Atordoada a princípio, voltou lentamente a si, sem a mínima consciência do que se passara.

Ainda na mesma noite, achando-se só, o pai da donzela recebeu do Espírito São Luís a explicação seguinte:

Quando lias à tua filha a passagem de O livro dos espíritos referente à música celeste, ela se conservava em dúvida; não compreendia que no Mundo Espiritual pudesse haver música. Eis por que depois eu lhe disse que era verdade. Não tendo a minha afirmativa podido persuadi-la, Deus permitiu que, para convencer-se, ela caísse em sono sonambúlico. Então, desprendendo-se do corpo adormecido, seu Espírito se lançou pelo Espaço e foi admitido nas regiões etéreas, onde ficou em êxtase produzido pela impressão da harmonia celeste. Por isso foi que exclamou: ‘Que música! Que música!’ Sentindo-se, porém, transportada a regiões cada vez mais elevadas do Mundo Espiritual, pediu que a despertassem, indicando o meio de o conseguirem: com água.

Tudo se faz pela vontade de Deus. O Espírito de tua filha não mais duvidará. Embora, despertado, não guarde lembrança nítida do que se passou, seu Espírito sabe agora onde está a verdade.

Agradecei a Deus os favores de que cumula esta criança. Agradecei-lhe o dignar-se fazer-vos conhecer cada vez mais a sua onipotência e a sua bondade. Que suas bênçãos se derramem sobre vós e sobre este médium, ditoso entre mil!”

Nota – Perguntar-se-á talvez que convicção pode ter resultado para aquela moça do que lhe foi dado ouvir, uma vez que de nada se lembra. Se, no estado de vigília, os pormenores se lhe apagaram da memória, seu Espírito se recorda. Ficou-lhe uma intuição, bastante para lhe modificar as ideias. Em vez de fazer-lhes oposição, ela aceitará sem dificuldade as explicações que lhe foram dadas, porque as compreenderá e intuitivamente as reconhecerá de acordo com o seu sentimento íntimo.

O que se passou neste fato isolado, pelo espaço de alguns minutos, durante a breve excursão que o Espírito da moça realizou pelo Mundo Espiritual, é análogo ao que se dá no intervalo de uma existência a outra, quando o Espírito que encarna possui luzes sobre um assunto qualquer. Ele se apropria sem dificuldade de todas as ideias referentes a esse assunto, se bem que, como homem, não se recorde da maneira por que as adquiriu. Ao contrário, as ideias, para cuja assimilação ainda não se acha maduro, dificilmente lhe entram no cérebro.

Assim se explica a facilidade com que certas pessoas assimilam as ideias espíritas. Em tais pessoas, essas ideias nada mais fazem que despertar as que já elas possuíam. As criaturas a que nos referimos são espíritas de nascença, como outros são poetas, músicos ou matemáticos. Logo às primeiras palavras, compreendem e não necessitam de fatos materiais para se convencerem. É, não há duvidar, um sinal de adiantamento moral e de desenvolvimento espiritual.

Na comunicação acima se lê: “Agradecei a Deus os favores de que cumula esta criança; que suas bênçãos desçam sobre este médium, ditoso entre mil”. Poder-se-ia supor que estas palavras indicam a concessão de um favor, uma preferência, um privilégio, quando o Espiritismo ensina que, sendo Deus soberanamente justo, nenhuma de suas criaturas é privilegiada e que Ele não facilita o caminho mais a uns do que a outros. Sem nenhuma dúvida a mesma senda está aberta a todos, mas nem todos a percorrem com a mesma rapidez e com o mesmo resultado; nem todos aproveitam igualmente das instruções que recebem. O Espírito da moça em questão, embora jovem como encarnado, já com certeza muito vivera e progredira bastante.

Os bons Espíritos, achando-a dócil aos seus ensinamentos, se comprazem em instruí-la, como faz o professor ao aluno em quem descobre boas disposições. É nesse sentido que o médium é ditoso entre muitos outros que, para seu adiantamento moral, nenhum fruto colhem da mediunidade de que são dotados. Não há, pois, neste caso, nem favor, nem privilégio; unicamente uma recompensa. Se o seu Espírito deixasse de ser digno dela, dentro em pouco teria afastado de si seus bons guias e se veria cercado de uma multidão de Espíritos maus.

MÚSICA ESPÍRITA

“Recentemente, na sede da Sociedade Espírita de Paris, o presidente me deu a honra de pedir a minha opinião sobre o estado atual da música e sobre as modificações que lhe poderiam advir por influência das crenças espíritas. Se de pronto não cedi a esse apelo benévolo e simpático, foi, crede-o, meus senhores, por uma causa de ordem superior.

Os músicos são homens como os outros, mais homens, talvez, e, nessas condições, falíveis e sujeitos a pecar. Nunca estive isento de fraquezas e, se Deus me fez longa a vida, a fim de que eu tivesse tempo de me arrepender, a embriaguez do êxito, a complacência dos amigos e as lisonjas dos cortejadores muitas vezes me tiraram o meio de efetivar esse arrependimento. Um maestro é uma potência neste mundo, onde o prazer desempenha tão importante papel. Àquele cuja arte consiste em deleitar os ouvidos e enternecer os corações muitas ciladas se lhe armam diante dos passos, nas quais cai o infeliz. Ele se inebria da ebriez dos outros; os aplausos lhe tapam as ouças e ei-lo a caminhar direto para o abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.

Entretanto, sem embargo dos meus erros, eu depositava fé em Deus; eu cria na alma que vibrava em mim e, libertando-se da gaiola sonora, ela presto se reconheceu em meio das harmonias da Criação e confundiu sua prece com as que se elevam da Natureza ao Infinito, da Criação ao Ser incriado!...

Sou feliz pelo sentimento que a minha vinda ao seio dos espíritas provocou, porque foi a simpatia que o determinou, e, se a princípio só a curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que devereis a explanação do tema que me propuseram. Eu ali estava, pronto a falar, supondo tudo saber, quando, abatido o meu orgulho, a minha ignorância se me patenteou. Fiquei mudo e a escutar. Voltei, instruí-me e, quando às palavras de verdade, ditas pelos vossos mentores, se juntaram a reflexão e a meditação, disse eu de mim para comigo: O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras-primas segundo os homens, nada mais fez, ah! do que debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo Mestre dos mestres. Rossini reuniu notas, compôs melodias, bebeu da taça que contém todas as harmonias, roubou algumas centelhas ao fogo sagrado, mas esse fogo sagrado nem ele, nem outros o criaram! — Nada inventamos: copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude, quando não apresentamos por demais deformada a partitura.

Uma dissertação sobre a música celeste! Quem poderia de tal coisa encarregar-se? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia apanhar- -lhe os matizes infinitamente variados? Quem possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não está feito em tais condições!... Mais tarde!... muito mais tarde!...

Por agora, virei, talvez dentro em pouco, satisfazer ao vosso desejo e dar-vos a minha apreciação sobre o estado atual da música e dizer-vos das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá fazer que ela experimente. — Hoje, é ainda muitíssimo cedo. O assunto é vasto, já o estudei, mas ele ainda me excede. Quando dele me houver assenhoreado, se isso for possível, ou, melhor, quando eu haja entrevisto tanto quanto o estado de meu espírito me permitir, eu vos satisfarei. Um pouco mais de tempo. Se somente um músico pode falar da música do futuro, deve fazê-lo como mestre e Rossini não quer falar dela como um escolar. Rossini – Médium: Desliens

“Foi explicado o silêncio que guardei sobre a questão que o Mestre da Doutrina Espírita me propôs. Era conveniente que, antes de entrar em tão difícil assunto, eu me concentrasse, reunisse as minhas lembranças e condensasse os elementos que me estavam ao alcance. Não me cabia estudar a música, tinha apenas de classificar com método os argumentos, a fim de apresentar um resumo capaz de dar ideia da minha concepção da harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, se acha concluído e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.

A harmonia é difícil de definir-se; muitas vezes, confundem-na com a música, com os sons, como resultante de um arranjo de notas e das vibrações dos instrumentos que reproduzem esse arranjo. Mas não é isso a harmonia, do mesmo modo que a chama não é a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: é tangível; a luz que ela projeta é um efeito dessa combinação, e não a própria chama: não é tangível. Aqui, o efeito é superior à causa. O mesmo se dá com a harmonia; ela resulta de um arranjo musical, é um efeito igualmente superior à causa. Esta é brutal e tangível; o efeito é sutil e intangível.

Pode-se conceber a luz sem chama e compreender a harmonia sem música. A alma é apta a perceber a harmonia, excluído todo o concurso de instrumentação, como é apta a ver a luz sem o concurso de combinações materiais. A luz é um sentido íntimo que a alma possui: quanto mais desenvolvido ele, tanto melhor percebe ela a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da alma, que a percebe em relação com o desenvolvimento desse sentido. Fora do mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são de essência divina. A posse de uma e outra está na razão dos esforços empregados para adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para me fazer mais bem compreendido e também porque esses dois sublimes gozos da alma são filhos de Deus e, portanto, irmãos.

É tão complexa a harmonia do Espaço, tem tantos graus que eu conheço e muitos outros mais que se me conservam ocultos no éter infinito, que aquele que se acha colocado a certa altura de percepções é como que tomado de espanto ao contemplar essas diversas harmonias, que constituiriam, se reunidas, a mais insuportável cacofonia; enquanto, ao contrário, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Nos graus inferiores, essas harmonias são elementares e grosseiras; levam ao êxtase, nos graus superiores. Tal harmonia, que choca um Espírito de percepções sutis, encanta um outro de percepções grosseiras e, quando é dado ao Espírito inferior deleitar-se com os encantos das harmonias superiores, o êxtase o arrebata e a prece lhe penetra o íntimo. O encantamento o transporta às elevadas esferas do mundo moral; ele entra a viver uma vida superior à sua e assim desejara continuar a viver para sempre. Mas desde que a harmonia deixe de penetrá-lo, ele desperta, ou, se o preferirem, adormece. Em todo caso, volta à realidade da sua situação e, dos lamentos que lhe escapam por haver descido, se exala uma prece ao Eterno, a pedir-lhe forças para de novo subir. Aí tem ele um grande motivo de emulação.

Não tentarei explicar os efeitos musicais que o Espírito produz atuando sobre o éter; o que é certo é que o Espírito produz os sons que queira e que não pode querer o que não sabe. Assim, pois, aquele que compreende muito, que tem em si a harmonia, que se acha dela saturado, que goza do seu sentido íntimo, desse nada impalpável, dessa abstração que é a concepção da harmonia, atua quando quer sobre o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o que ele concebe e deseja. O éter vibra sob a ação da vontade do Espírito; a harmonia, que este último traz em si, concretiza-se, por assim dizer; evola-se, doce e suave, como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou estala como o raio, ou solta queixumes como a brisa. É rápida qual relâmpago, ou lenta como a neblina; tem os despedaçamentos de um soluço, ou é contínua como a relva; é precipitada qual catarata, ou calma como um lago; murmura como um regato, ou ronca como uma torrente. Ora apresenta a rudeza agreste das montanhas, ora a frescura de um oásis; é alternativamente triste e melancólica como a noite, leda e jovial como o dia; caprichosa como a criança, consoladora como uma mãe e protetora como um pai; desordenada como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando chega a este último terreno, confunde-se com a prece, glorifica a Deus e leva ao arroubamento aquele mesmo que a produz, ou a concebe.

Oh! comparação! comparação! Por que havemos de ser obrigados a servir-nos de ti! Por que havemos de dobrar-nos à necessidade degradante de buscar, de tomar de empréstimo à natureza tangível imagens grosseiras, para fazermos compreensível a sublime harmonia em que o Espírito se deleita! E, a despeito das comparações, não se consegue dar ideia dessa abstração, sentimento quando causa, sensação quando se torna efeito.

O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o Espírito que tem a riqueza intelectual: um e outro gozam constantemente da propriedade inalienável que granjearam. O Espírito inteligente, que ensina a sua ciência aos que ignoram, experimenta a ventura de ensinar, porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz ressoar no éter os acordes da harmonia que traz em si experimenta a felicidade de ver satisfeitos os que o escutam.

A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes concepções do Espírito: a primeira o arrebata, a segunda o esclarece, a terceira o eleva. Possuídas em toda a plenitude, elas se confundem e constituem a pureza. Ó Espíritos puros que as possuís! descei às nossas trevas e iluminai a nossa caminhada. Mostrai-nos a estrada que tomastes, a fim de que sigamos as vossas pegadas!

Quando penso que esses Espíritos, cuja existência mal posso compreender, são seres finitos, átomos, em face do eterno Senhor do Universo, a minha razão se confunde ao cogitar da grandeza de Deus e da bem-aventurança infinita, de que ele goza em si mesmo, pelo só fato de ser infinita a sua pureza, pois que tudo o que a criatura adquire não é mais que uma parcela do que emana do Criador. Ora, se a parcela chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade, a resplandecer pela virtude, que não produzirá a fonte eterna e infinita donde provém a criatura? Se o Espírito, ser criado, chega a extrair da sua pureza tanta felicidade, que ideia se há de ter da que o Criador tira da sua pureza absoluta? Problema eterno!

O compositor que concebe a harmonia a traduz na grosseira linguagem chamada música; concreta a sua ideia e a escreve. O artista aprende a forma e escolhe o instrumento que lhe permita exprimir a ideia. Acionado pelo instrumento, o ar a transporta ao ouvido do ouvinte e o ouvido a transmite à alma. Mas o compositor foi impotente para expressar inteiramente a harmonia que concebera, por falta de uma língua apropriada. O executante, a seu turno, não compreendeu toda a ideia escrita e o instrumento indócil de que ele se serve não lhe permite traduzir tudo o que haja compreendido. O ouvido é afetado pelo ar grosseiro que o cerca e a alma, enfim, recebe, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia desabrochada na alma do maestro. Essa ideia era o seu sentimento íntimo. Embora desvirtuada pelos agentes da instrumentação e da percepção, ela sempre causa sensações nos que a ouvem traduzida; essas sensações são a harmonia. A música as produziu; elas são efeito da música. Esta é posta a serviço do sentimento para ocasionar a sensação. O sentimento, na composição, é a harmonia; a sensação, no ouvinte, é também a harmonia, com a diferença de que é concebida por um e recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e a dá, como o refletor é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Transmite-a mais ou menos deformada, conforme seja bem ou mal executada, do mesmo modo que o refletor envia mais ou menos bem a luz, conforme seja mais ou menos brilhante e polido, do mesmo modo que o médium exprime mais ou menos bem os pensamentos dos Espíritos, conforme seja mais ou menos maleável.

Agora, que a harmonia está bem compreendida na sua significação, que se sabe ser ela concebida pela alma e transmitida à alma, compreender-se-á a diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do Espaço.

Na Terra, tudo é grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós, tudo é sutil: vós tendes o ar, nós temos o éter; tendes um órgão que obstrui e vela; nós temos a percepção direta. Entre vós, o autor é traduzido; entre nós, ele opera sem intermediário e numa língua que exprime todas as concepções. Entretanto, essas harmonias têm a mesma fonte de origem, como a luz da lua tem a mesma fonte de origem que a do sol; a harmonia da Terra não é mais do que reflexo da harmonia do Espaço.

É tão indefinível a harmonia, quanto a felicidade, o temor, a cólera. É um sentimento. Só a pode compreender quem a possui e só a possui quem a tenha adquirido. O homem jovial não pode explicar a sua jovialidade; o que é timorato não pode explicar a sua timidez; podem expor os fatos que esses sentimentos provocam, defini-los, descrevê-los, mas os sentimentos, esses se conservam inexplicados. O fato que a um causa alegria, nada a outro produzirá; o objeto que ocasiona o temor em um determinará a coragem noutro. As mesmas causas geram efeitos contrários; em Física isto não existe, em Metafísica existe. Existe, porque o sentimento é propriedade da alma e as almas diferem de sensibilidade entre si, de impressionabilidade, de liberdade. A música, que é a causa segunda da harmonia percebida, penetra e transporta a um, deixando frio e indiferente a outro. É que o primeiro se acha em estado de receber a impressão que a harmonia produz, ao passo que o segundo se acha em estado oposto; ele ouve o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega a entediar-se e a adormecer, enquanto aquele outro se entusiasma e chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é muito mais elevado, mais depurado, do que aquele em quem ela não logra penetrar; sua alma, mais apta a sentir, desprende-se mais facilmente e a harmonia lhe auxilia o desprendimento; transporta-a e lhe permite ver melhor o mundo moral. Deve-se concluir daí que a música é essencialmente moralizadora, uma vez que traz a harmonia às almas e que a harmonia as eleva e engrandece.

Toda gente reconhece a influência da música sobre a alma e sobre o seu progresso. Mas a razão dessa influência é em geral ignorada. Sua explicação está toda neste fato: que a harmonia coloca a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa. Este sentimento existe em certo grau, mas desenvolve-se sob a ação de um sentimento similar mais elevado. Aquele que esteja desprovido de tal sentimento é conduzido gradativamente a adquiri-lo: acaba deixando-se penetrar por ele e arrastar ao mundo ideal, onde esquece, por instantes, os prazeres inferiores que prefere à divina harmonia.

Agora, se considerarmos que a harmonia sai do concerto do Espírito, deduziremos que a música exerce salutar influência sobre a alma e a alma que a concebe também exerce influência sobre a música. A alma virtuosa, que nutre a paixão do bem, do belo, do grandioso e que adquiriu harmonia, produzirá obras-primas capazes de penetrar as mais endurecidas almas e de comovê-las. Se o compositor é terra a terra, como poderá exprimir a virtude de que desdenha, o belo que ignora e o grandioso que não compreende? Suas composições refletirão seus gostos sensuais, sua leviandade, sua negligência. Serão ora licenciosas, ora obscenas, ora cômicas, ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os sentimentos que exprimirem e os perverterão, em vez de melhorá-los.

O Espiritismo, com o moralizar os homens, exercerá, pois, grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que transfundirão suas virtudes ao fazerem ouvidas suas composições.

Rir-se-á menos; chorar-se-á mais; a hilaridade cederá lugar à emoção, a fealdade à beleza e o cômico à grandiosidade.

Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo dispuser a receber facilmente a harmonia gozarão, ouvindo a música séria, de verdadeiro encanto; desprezarão a música frívola e licenciosa, que seduz as massas. Quando o grotesco e o obsceno forem varridos pelo belo e pelo bem, desaparecerão os compositores daquela ordem, porquanto, sem ouvintes, nada ganharão, e é para ganhar que eles se emporcalham.

Oh! sim, o Espiritismo terá influência sobre a música! Como poderia não ser assim? Seu advento transformará a arte, depurando-a. Sua origem é divina, sua força o levará a toda parte onde haja homens para amar, para elevar-se e para compreender. Ele se tornará o ideal e o objetivo dos artistas. Pintores, escultores, compositores, poetas irão buscar nele suas inspirações e ele lhas fornecerá, porque é rico, é inesgotável.

O Espírito do maestro Rossini voltará, numa nova existência, a continuar a arte que ele considera a primeira de todas. O Espiritismo será seu símbolo e o inspirador de suas composições. Rossini – Médium: Nivart

 


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