Em conhecida passagem do
Evangelho, Jesus exorta os homens a que entrem pela porta estreita,
alertando-os de que larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz à
perdição, e muitos são os que entram por ela; E porque estreita é a porta, e
apertado, o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem (Mateus,
7:13-14).
É preciso compatibilizar tais assertivas com a figura de um Deus pleno de amor, justiça, bondade e poder que Ele apresentou à humanidade como um autêntico Pai.
Afinal, tem-se um Pai amoroso estabelecendo nos roteiros de Seus filhos uma passagem estreita e de difícil acesso à felicidade, enquanto a porta para a perdição apresenta-se larga, a ponto de serem poucos os que se saem bem na escolha.
O Espírito Emmanuel, mentor
do médium Francisco Cândido Xavier, ajuda a entender a metáfora. No livro Ceifa de luz, ele assevera que nosso
dever é nossa escola e que a senda estreita a que se refere Jesus é a
fidelidade que nos cabe manter limpa e constante, no culto às obrigações
assumidas diante do Bem Eterno. Ainda afirma que, para sustentá-la, é
imprescindível sacrificar no santuário do coração tudo aquilo que constitua
bagagem de sombra no campo de nossas aspirações e desejos.
Dessas reflexões, surge
claro que a passagem pela porta estreita implica o cumprimento dos próprios
deveres, o que o homem apenas consegue mediante o sacrifício de seus vícios e
paixões negativas.
Os deveres que a vida impõe
representam um programa de aprendizado e sublimação, traçado antes da
reencarnação, o qual o Espírito se propôs a cumprir. O atendimento de tais
deveres costuma ser árduo, pois a eles se contrapõem os hábitos do homem velho,
necessitado de retificar suas concepções e se adequar à harmonia das leis
cósmicas.
Conforme Kardec elucida em O livro dos Espíritos, nas questões 614
e seguintes, Deus rege o universo com base em leis perfeitas, plenas de justiça
e misericórdia, voltadas a realizar a felicidade do homem. Elas lhe indicam o
que deve fazer ou deixar de fazer e ele só é infeliz quando delas se afasta. Ou
seja, a felicidade deve constituir a regra, e não a exceção.
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo XVIII, item 5,
esclarece-se que a porta da salvação não é estreita para a Humanidade em geral,
mas apenas para uma sua parcela situada, pelo seu próprio estado evolutivo, em
um mundo de provas e expiações. Afinal, não faz mesmo sentido que um Deus
amoroso estabeleça uma sistemática na qual a conquista da felicidade é
extremamente difícil, a ponto de ensejar a perdição da maioria de Suas
criaturas.
A estreiteza da porta
traduz, por assim dizer, uma pequena crise do processo evolutivo, na qual o ser
imortal é convidado à transcendência, ao abandono de hábitos e sentimentos
próprios de fases mais primitivas, mas se apega a eles com certa insistência.
Segundo se infere da
Codificação, os mundos de provas e expiações se caracterizam pela imensa
maioria de seus habitantes ser formada de Espíritos com importantes conquistas
intelectuais, mas moralidade vacilante, pífia, revelada pela presença de
numerosos vícios e paixões negativas.
Extrai-se de O Livro dos Espíritos que as paixões
humanas não são negativas em seu princípio, na medida em que este se encontra
na natureza e tudo o que Deus faz é bom e tem utilidade providencial (questão
907).
As paixões podem levar à
realização de grandes coisas, pois decuplicam as forças do homem e o auxiliam
na execução dos desígnios da Providência (questão 908). Elas apenas se tornam
negativas quando o homem não mais as governa, mas é por elas governado, e
causam prejuízo para ele ou para outrem.
A Espiritualidade Superior é
enfática ao afirmar que o homem, pelos seus esforços, pode vencer as suas más
inclinações. Ela aduz que falta ao homem é vontade de se reformar e ainda
lamenta: Ah, quão poucos dentre vós fazem esforços! (questão 909).
Bem se vê que a Humanidade
terrena passa por uma crise evolutiva, mais propriamente por uma crise de
moralidade, revelada pela vivência de paixões negativas, sobre as quais não
exerce o devido controle, quando poderia fazê-lo.
A disciplina em controlar as
próprias tendências negativas exige algum esforço, mas é plenamente viável. Ela
constitui o necessário para viabilizar a passagem pela porta estreita de que
fala o Evangelho. Trata-se de domar em si a ira, o orgulho, a inveja, o
egoísmo, o ciúme, a gula, o desequilíbrio da sexualidade, dentre outros hábitos
e sentimentos infelizes.
Deus, em Sua sabedoria e em
Sua bondade, situa o Espírito encarnado em ambientes nos quais ele é
naturalmente convidado à sublimação. Coloca-o em um contexto profissional,
familiar e social em que precisa atender uma série de deveres. Se os atende,
sacrificando para isso suas fantasias, caprichos e desejos, atravessa a sua
porta estreita, a que lhe cabe naquela encarnação.
É necessário e urgente que a
criatura encarnada se empenhe em ser um profissional honesto e competente, um
pai ou mãe presente e dedicado, um filho respeitoso e obediente, um aluno
estudioso, um irmão compreensivo, um esposo fiel e afetuoso, um cidadão honesto
etc. Ela precisa atentar para os deveres de cada dia e cumpri-los, sem buscar
desculpas para a conduta indigna.
Como ensina o Espírito
Lázaro, no item 7 do capítulo XVII de O
Evangelho Segundo o Espiritismo, na ordem dos sentimentos, o dever é muito
difícil de cumprir-se, por se achar em antagonismo com as atrações do interesse
e do coração. Ele também afirma que o dever é o mais belo laurel da razão.
Então, o senso do dever é o
mais belo, o maior prêmio que a razão esclarecida confere ao homem. Ele lhe
possibilita identificar o que deve fazer, embora a conduta identificada, por
vezes, contrarie os desejos mais profundos de seu coração. Uma vez feita essa
identificação, resta aplicar a vontade firme para viver e fazer o que é certo,
o que implica domar os maus instintos, essa velha herança do primitivismo que
impede a conquista da paz e da plenitude. Trata-se da evolução intelectual
auxiliando a consolidação da evolução moral.
Convém ressaltar que a
evolução moral constitui a conquista por excelência, que faz o Espírito
ascender na escala espiritual. A Espiritualidade Superior admite três grandes
ordens ou categorias principais de classificação na referida escala, a saber:
Espíritos imperfeitos, bons Espíritos e Espíritos puros (LE, questões 100 e
ss.).
Para passar de Espírito
imperfeito para bom Espírito, o ser imortal precisa vencer por completo as más
paixões e ter apenas o desejo do bem. Não são a intelectualidade, os
conhecimentos e a ciência que fazem a diferença, mas a questão moral. Conforme
consta da questão 107 de O Livro dos
Espíritos, os bons Espíritos retiram do amor que os une uma fonte de
inefável ventura, que não tem a perturbá-la nem a inveja, nem os remorsos, nem
nenhuma das más paixões que constituem o tormento dos Espíritos imperfeitos.
Essa peculiaridade de
desejar apenas o bem, de não possuir mais paixões malévolas, é que torna os
bons Espíritos tão notáveis, às vezes até incompreensíveis, em sua psicologia.
Um bom exemplo a ser citado
é o do Espírito Joanna de Ângelis, mentora do médium Divaldo Pereira Franco, na
encarnação em que ostentou o nome de Joana de Cusa e conviveu com Jesus.
Segundo a narrativa do livro Boa Nova,
do Espírito Humberto de Campos, ditado ao médium Francisco Cândido Xavier, ao
final da vida ela se encontrava, juntamente com um filho, amarrada ao poste do
martírio. Por ser cristã e não renegar sua fé, foi condenada a ser queimada
viva.
Nos derradeiros instantes de
sua vida, quando as labaredas já lhe lambiam o corpo envelhecido, a soldadesca
ainda a importunava. Um dos soldados lhe indagou se o Cristo apenas lhe havia
ensinado a morrer. Ela buscou tomar fôlego, por entre as dores do martírio, e
encontrou forças para responder: Não apenas a morrer, mas também a vos amar!
Impressiona que uma pessoa,
em instante tão crítico, sendo queimada viva e ainda provocada, tenha
encontrado forças para proclamar seu amor pelo verdugo. A chave para entender
essa conduta é considerar que Joana de Cusa, nesse momento, já era um bom
Espírito. Ela já havia vencido o mal em si mesma, domado todas as paixões
negativas. Ela não poderia blasfemar ou ofender, pois nada disso mais existia
nela. Em seu íntimo pacificado, havia apenas o bem. Ela já havia cruzado a
porta estreita.
Ocorre que ninguém consegue
o pleno domínio das más paixões em um repente e nem surge sublime de um
instante para o outro. A evolução é um processo gradativo, embora possa ser
acelerado enormemente pela vontade.
Pode-se afirmar que há a
porta estreita situada ao término de uma longa jornada, que marca a transição
da fase de Espírito imperfeito para a de bom Espírito. Mas também existe a
porta estreita de cada existência, a fim de que ela seja bem aproveitada.
Deus é que dosa as
experiências, conforme as possibilidades de cada um de Seus filhos.
Ao homem resta, em sua
condição de aprendiz na grande escola da vida, identificar e cumprir os seus
deveres de cada dia. Entender que a sua felicidade não vem de realizar
fantasias e caprichos, que frequentemente apenas refletem o desejo de reviver
hábitos de um passado que convém deixar para trás em caráter definitivo.
Finalmente, compreender que
lhe compete basicamente ser digno e bondoso e aplicar a vontade firme na
realização desse projeto, que constitui o seu roteiro de libertação, a sua
porta estreita.
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