Autor espiritual: André Luiz
Ano:
1949
Prefácio:
Ante as Portas Livres
Ante as portas livres de
acesso ao trabalho cristão e ao conhecimento salutar que André Luiz vai
desvelando, recordamos prazerosamente a antiga lenda egípcia do peixinho
vermelho.
No centro de formoso jardim,
havia grande lago, adornado de ladrilhos azul-turquesa.
Alimentado por diminuto
canal de pedra, escoava suas águas, do outro lado, através de grade muito
estreita.
Nesse reduto acolhedor, vivia toda uma comunidade de peixes, a se refestelarem, nédios e satisfeitos, em complicadas locas, frescas e sombrias. Elegeram um dos cidadãos de barbatanas para os encargos de rei, e ali viviam, plenamente despreocupados, entre a gula e a preguiça.
Junto deles, porém, havia um
peixinho vermelho, menosprezado de todos.
Não conseguia pescar a mais
leve larva, nem se refugiar nos nichos barrentos.
Os outros, vorazes e
gordalhudos, arrebatavam para si as formas larvérias e ocupavam, displicentes,
todos os lugares consagrados ao descanso.
O peixinho vermelho que
nadasse e sofresse. Por isso mesmo era visto, em correria constante, perseguido
pela canícula ou atormentado de fome.
Não encontrando pouso no
vastíssimo domicílio, o pobrezinho não dispunha de tempo para muito lazer e
começou a estudar com bastante interesse.
Fez o inventário de todos os
ladrilhos que enfeitavam as bordas do poço, arrolou todos os buracos nele
existentes e sabia, com precisão, onde se reuniria maior massa de lama por
ocasião de aguaceiros.
Depois de muito tempo, à
custa de longas perquirições, encontrou a grade do escoadouro.
À frente da imprevista
oportunidade de aventura benéfica, refletiu consigo:
-" Não será melhor
pesquisar a vida e conhecer outros rumos?."
Optou pela mudança.
Apesar de macérrimo pela
abstenção completa de qualquer conforto, perdeu várias escamas, com grande
sofrimento, a fim de atravessar a passagem estreitíssima.
Pronunciando votos
renovadores, avançou, otimista, pelo rego d'água, encantado com as novas paisagens,
ricas de flores e sol que o defrontavam, e seguiu embriagado de esperança...
Em breve, alcançou grande
rio e fez inúmeros conhecimentos.
Encontrou peixes de muitas
famílias diferentes, que com ele simpatizaram, instruindo-o quanto aos
percalços da marcha e descortinando-lhe mais fácil roteiro.
Embravecido contemplou nas
margens homens e animais, embarcações e pontes, palácios e veículos, cabanas e
arvoredo.
Habituado com o pouco, vivia
com extrema simplicidade, jamais perdendo a leveza e a agilidade naturais.
Conseguiu, desse modo,
atingir o oceano, ébrio de novidade e sedento de estudo.
De inicio, porém, fascinado
pela paixão de observar, aproximou-se de uma baleia para quem toda a água do
lago em que vivera não seria mais que diminuta ração; impressionado com o
espetáculo, abeirou-se dela mais que devia e foi tragada com os elementos que
lhe constituíam a primeira refeição diária.
Em apuros, o peixinho aflito
orou ao Deus dos Peixes, rogando proteção no bojo do monstro e, não obstante as
trevas em que pedia salvamento, sua prece foi ouvida, porque o valente cetáceo
começou a soluçar e vomitou, retituindo-o às correntes marinhas.
O pequeno viajante,
agradecido e feliz, procurou companhias simpáticas e aprendeu a evitar os
perigos e as tentações.
Plenamente transformado em
suas concepções do mundo, passou a reparar as infinitas riquezas da vida.
Encontrou plantas luminosas, animais estranhos, estrelas móveis e flores
diferentes no seio das águas. Sobretudo, descobriu a existência de muitos
peixinhos, estudiosos e delgados tanto quanto ele, junto dos quais se sentia
maravilhosamente feliz.
Vivia, agora, sorridente e
calmo, no Palácio de Coral que elegera, com centenas de amigos, para residência
ditosa, quando, ao se referir ao seu começo laborioso, veio, a saber, que
somente no mar as criaturas aquáticas dispunham de mais sólida garantia, de vez
que, quando o estio se fizesse mais arrasador, as águas de outra altitude
continuariam a correr para o oceano.
O peixinho pensou, pensou...
E sentindo imensa compaixão daqueles com quem convivera na infância, deliberou
consagra-se à obra do progresso e salvação deles.
Não seria justo regressar e
anunciar-lhes a verdade? Não seria nobre ampará-los, prestando-lhes a tempo
valiosas informações?
Não hesitou.
Fortalecido pela
generosidade de irmãos benfeitores que com ele viviam no Palácio de Coral,
empreendeu comprida viagem de volta.
Tornou ao rio, do rio
dirigiu-se aos regatos e dos regatos se encaminhou para os canaizinhos que o
conduziram ao primitivo lar.
Esbelto e satisfeito como
sempre, pela vida de estudo e serviço a que se devotava, varou a grade e
procurou, ansiosamente, os velhos companheiros.
Estimulado pela proeza de
amor que efetuava, supôs que o seu regresso causasse surpresa e entusiasmo
gerais. Certo, a coletividade inteira lhe celebraria o feito, mas depressa
verificou que ninguém se mexia.
Todos os peixes continuavam
pesados e ociosos, repimpados nos mesmos ninhos lodacentos, protegidos por
flores de lótus, de onde saíam apenas para disputar as larvas, moscas ou
minhocas desprezíveis.
Gritou que voltara a casa,
mas não houve quem lhe prestasse atenção, porquanto ninguém, ali, havia dado
pela ausência dele.
Ridiculizado procurou,
então, o rei de guelras enormes e comunicou-lhe a reveladora aventura.
O soberano, algo entorpecido
pela mania de grandeza, reuniu o povo e permitiu que o mensageiro se
explicasse.
O benfeitor desprezado,
valendo-se do ensejo, esclareceu, com ênfase, que havia outro mundo líquido,
glorioso e sem fim. Aquele poço era uma insignificância que podia desaparecer,
de momento para outro. Além do escoadouro próximo desdobravam-se outra vida e
outra experiência, Lá fora, corriam regatos ornados de flores, rios caudalosos
repletos de seres diferentes e, por fim, o mar, onde a vida aparece cada vez
mais rica e mais surpreendente. Descreveu o serviço de tainhas e salmões, de
trutas e esqualados. Deu notícias do peixe-lua, do peixe-coelho e do galo do
mar. Contou que vira o céu repleto de astros sublimes e que descobrira árvores
gigantescas, barcos imensos, cidades praieiras, monstros temíveis, jardins
submersos, estrelas do oceano e ofereceu-se para conduzi-los ao Palácio de
Coral, onde viveriam todos, prósperos e tranquilos. Finalmente os informou de
que semelhante felicidade, porém, tinha igualmente seu preço. Deveriam todos
emagrecer, convenientemente, abstendo-se de devorar tanta larva e tanto verme
nas locas escuras e aprendendo a trabalhar e estudar tanto quanto era
necessário à venturosa jornada.
Assim que terminou,
gargalhadas estridentes coroaram-lhe a preleção.
Ninguém acreditou nele.
Alguns oradores tomaram a
palavra e afirmaram, solenes, que o peixinho vermelho delirava, que outra vida
além do poço era francamente impossível, que aquela história de riachos, rios e
oceanos era mera fantasia de cérebro demente e alguns chegaram a declarar que
falavam em nome do Deus dos Peixes, que trazia os olhos voltados para eles
unicamente.
O soberano da comunidade,
para melhor ironizar o peixinho, dirigiu-se em companhia dele até a grade de
escoamento e, tentando, de longe, a travessia, exclamou, borbulhante:
- “Não vês que não cabe aqui
uma só de minhas barbatanas? Grande tolo! vai-te daqui! não nos perturbes o
bem-estar... Nosso lago é o centro do Universo... Ninguém possui vida igual a
nossa!...”.
Expulso a golpes de
sarcasmo, o peixinho realizou a viagem de retorno e instalou-se, em definitivo,
no Palácio de Coral, aguardando o tempo.
Depois de alguns anos,
apareceu pavorosa e devastadora seca.
As águas desceram de nível.
E o poço onde viviam os peixes pachorrentos e vaidosos esvaziou-se, compelindo
a comunidade inteira a perecer, atolada na lama...
O esforço de André Luiz,
buscando acender luz nas trevas, é semelhante à missão do peixinho vermelho.
Encantado com as descobertas
do caminho infinito, realizadas depois de muitos conflitos no sofrimento, volve
aos recôncavos da Crosta Terrestre, anunciando aos antigos companheiros que,
além dos cubículos em que se movimentam, resplandece outra vida, mais intensa e
mais bela, exigindo, porém, acurado aprimoramento individual para a travessia
da estreita passagem de acesso às claridades da sublimação.
Fala, informa, esclarece...
Há, contudo, muitos peixes
humanos que sorriem e passam, entre a mordacidade e a indiferença, procurando
locas passageiras ou pleiteando larvas temporárias.
Esperam um paraíso gratuito
com milagrosos deslumbramentos depois da morte do corpo.
Mas, sem André Luiz e sem
nós, humildes servidores de boa vontade, para todos os caminheiros da vida
humana pronunciou o Pastor Divino as indeléveis palavras: - "A cada um
será dado de acordo com as suas obras”.
Emmanuel
(Pedro Leopoldo, 22 de
fevereiro de 1949)
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