A pele do rinoceronte

Nas noites de segunda e sexta-feira, ele colocava o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, embaixo do braço e ia para o Centro Luiz Gonzaga. Seguia à risca uma instrução ditada por Emmanuel: fidelidade irrestrita a Jesus Cristo e a Kardec, o codificador da doutrina espírita. O guia do outro mundo levava tão a sério este mandamento que um dia chegou a determinar a Chico:
- Se alguma vez eu lhe der um conselho que não esteja de acordo com Jesus e Kardec, fique do lado deles e procure me esquecer.


Chico demorava na cartilha espírita, praticava as lições de caridade, promovia sessões de desobsessão às quartas-feiras, mas o centro ficava cada dia mais vazio. José Hermínio Perácio e a mulher, Carmem, se mudaram para Belo Horizonte - precisavam ficar mais perto da família. José Xavier teve que trabalhar à noite numa oficina de arreios para pagar uma dívida. De repente, o rapaz se viu sozinho no barracão. Quando pensou em sair de fininho, ouviu a voz de Emmanuel.

- Você não pode se afastar.
- Como? Não temos frequentadores.
- E nós? Nós também precisamos ouvir o Evangelho. Além disso, temos aqui vários "desencarnados" que precisam de ajuda. Abra a reunião na hora marcada e não encerre a sessão antes de duas horas de trabalho.

Chico seguiu as instruções. Às oito horas iniciava a reza de abertura da sessão. Em seguida, abria o Evangelho Segundo o Espiritismo ao acaso e comentava o capítulo em voz alta. Nessa época, começou a ver mortos e ouvir vozes com maior frequência e nitidez. Os seres invisíveis ocupavam os bancos vazios.
Do lado de fora, vizinhos e parentes acompanhavam aquele espetáculo absurdo: o rapaz falava sozinho, gesticulava, rezava, duas horas seguidas. Uma das irmãs, uma noite, se pendurou na janela para ouvir o monólogo:
- Tenhamos fé em Jesus, minha irmã.
- ....
- Com paciência alcançaremos a paz.
- ...
- Sem calma, tudo piora.
- ...
A espectadora interrompeu a cena insólita:
- Com quem está conversando?
- Com a dona Chiquinha de Paula.
- Ela já morreu, Chico.
- Você é que pensa. Ela está bem viva.

A família ainda pensava em levar o rapaz a um bom hospício.
O padre Júlio Maria, da cidade mineira de Manhumirim, estava disposto a providenciar uma camisa-de-força para o espírita de Pedro Leopoldo. 

Todo mês, ele escrevia artigos para o jornal local, O Lutador, e fazia o favor de enviar suas opiniões pelo correio ao autor do Parnaso de Além Túmulo. Em nome de Jesus Cristo, os textos excomungavam o espiritismo, reduziam a pó a reencarnação e à piada o porta-voz dos mortos no Brasil. "Francisco Cândido Xavier deve ter a pele de um rinoceronte para suportar tantos espíritos", escreveu num dos seus manifestos.

Chico ficou engasgado e precisou da ajuda de Emmanuel para engolir o comentário.

Se você não tem a pele de rinoceronte, precisa ter, porque, se cultivar uma pele muito frágil, cairá sempre alfinetada.

O padre Júlio Maria espetou Chico Xavier durante treze anos. Só parou quando morreu. E, nesse dia, Chico ouviu um vozeirão de seu guia:
Vamos orar pelo nosso irmão Júlio Maria. Com ele sempre tivemos um cooperador maravilhoso. Dava-nos coragem na luta e concitava-nos a trabalhar.

A cada ataque dos céticos, Chico escutava Emmanuel bater sempre na mesma tecla:
Não te aflijas com os que te atacam. O martelo que atormenta o prego com pancadas o faz mais seguro e mais firme.

O conselheiro invisível esquecia que martelos também entortam pregos.
Chico sentia os golpes e andava pela cidade arqueado, sob o peso da desconfiança alheia.

Em dezembro de 1932, o rapaz fechou os olhos e fincou o lápis no papel. As frases apareceram velozes e nada evangélicas. Eram endereçadas a ele mesmo.

Meu amigo,
Há um decênio que não me preocupo com as parvoíces da Terra. Nem presumia a possibilidade de enviar novamente para aí a minha futilíssima correspondência, quando alguém me insinuou a ideia de vir ditar-te minhas sandices.
Acometeu-me o desejo incoercível de atirar um dos meus petardos de troça no gênero bípede e estalar uma boa gargalhada, sonora e sã.
Foi o que fiz. Tentei a prova.
Focalizei no meu pensamento a ideia de vir ter contigo e bastou isso para que as minhas raras faculdades de fantasma me conduzisse a esse maravilhoso recanto sertanejo em que vives, esplendor de canto agreste, quase selvagem...Busquei aproximar-me da sua individualidade.
Vi-te finalmente. Lá surgias ao fim de uma rua bem cuidada, onde se alinhavam casas brancas e arejadas, brasileiríssimas, abarrotadas de ar, de saúde, de sol; vinhas com o passo cansado, pele suarenta a derrete-se dentro de roupas quase ensebadas, como os pés metidos em legítimos socos do Porto, obrigando-me a evocar o cais de Lisboa.
Sem que pudesses observar-me, submeti-te a demorado exame.
Procurei a tua bagagem de pensamento, encontrando tua mocidade tudo quanto a tristeza criou de mais sombrio; em tua alma amargurada, vi apenas porções de sofrimentos, pedaços de angústia esterilizadora, recordações tristonhas, lágrimas cristalizadas...Vi-te e ri-me. Ri-me da estultice do cérebro desequilibrado do asno humano, com o volumoso e pesado arquivo de baboseiras.
Cansado das lamúrias de Chico Xavier, o remetente da carta recomendava o bom humor como arma:
Convence-te de que se comete um ato desarrazoado, uma inqualificável imprudência, em chorar totalmente, em derreter-se inutilmente. Abandona essa exótica preocupação aos mais parvos do que tu. Ri-se o mundo de nós? Riamo-nos dele. Achincalhemos os seus arremedos aos gorilas, ridicularizemos as suas instituições, onde predominam a bandalheira, os seus pulos de cabra-cega; traduzamos a admiração que tudo isso nos desperta com o riso bom, que sempre apavorou os tímidos e insuficientes.

O recado tinha a assinatura de Eça de Queiroz. O escritor português, autor de "pecados" como O Crime do Padre Amaro, dava mostras não só de sarcasmo como também de boas doses de informação sobre a polêmica em torno de Parnaso do Além-Túmulo.

Após listar a série de teorias usadas pelos críticos para decifrar o enigma Chico Xavier- consciência, mediunidade, psicopatia, loucura, anormalidade, fenômeno, estupidez, espiritomania - o autor invisível não resistiu e levou à boa e velha ironia: "Vai continuando até que te receitem a enxovia ou o manicômio. No cárcere ou no sanatório, alcançaras um período de repouso. Não te apavores."

Semana depois, o rapaz colocou no papel um alerta sobre os riscos da vaidade e da ambição. Desta vez, quem assinava o texto era Maria João de Deus, sua mãe.

Chico decorou cada palavra. Muitas delas eram golpes secos contra sua auto-estima. Para começo de conversa, ele não deveria encarar a mediunidade como uma dádiva, porque, imperfeito que era, não merecia favores de Deus. Uma metáfora barroca marcou sua história: "Seja tua mediunidade uma harpa melodiosa; porém, no dia em que receberes os favores do mundo como se estivesses vendendo, os seus acordes, ela se enferrujará para sempre".

Chico ficou atento às lições e passou a exercitar tanto o bom humor com a humildade ao longo dos anos.

Do livro As Vidas de Chico Xavier, SOUTO Maior Marcel, Editora Pensamento.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário