O Espiritismo tem na pessoa
de Jesus o ideal e exemplo de desenvolvimento máximo do Espírito. As demais
denominações cristãs o têm como Deus-Filho, pessoa da Trindade Divina. Os
estudiosos dedicados a uma análise histórico-crítica do Novo Testamento, nem
sempre movidos por compromissos de fé, tomam-no por seu papel social, não
ignorando, porém, os seus dotes e capacidades singulares. Islâmicos
consideram-no um dos mais importantes profetas; budistas e hinduístas diversos
já se pronunciaram sobre Ele como um grande iluminado, guru e mesmo um ser
divino. Qualquer que seja a perspectiva adotada, seria preciso desconsiderar
completamente o relato dos Evangelhos para desprezar ou mesmo reduzir ao plano
de pensador comum a figura de Jesus. Faz sentido, portanto, supor que um ser
tão universalmente admirado e respeitado pelo seu ensino, a ponto de
influenciar sobremaneira a cultura ocidental, com reflexos sobre outras, tenha
uma filosofia própria.
Tratar da filosofia de
Jesus, no entanto, continua a ser um trabalho extremamente ingrato, porque
paradoxalmente este complexo e inesgotável pensador é tido pela maior parte da
tradição filosófica como revelador religioso apenas, ao qual não se aplicariam
as categorias do discurso filosófico. Ainda que esta conclusão absurda tenha
sido contestada por inúmeros nomes ilustres, a concepção vulgar, incluindo a
cultura acadêmica, repete os papéis estereotipados atribuídos pelos teólogos
mais ortodoxos, sejam os católicos ou protestantes, de Cristo e dos apóstolos
em seus papéis dogmáticos.
Estranhamente, o pensador que orienta toda a ética, metafísica e psicologia do Ocidente, especialmente querido pelos racionalistas de todos os tempos, teve a sua profundidade filosófica pervertida pelas disputas clericais iniciadas pouco após a sua morte. E com isso não quero me referir aos pontos em que evidentemente Jesus possui ascendência absoluta sobre o pensamento humano, tais como a questão da imortalidade, da ética, da dignidade humana, da Teologia, do autoconhecimento etc. Prefiro levantar um dos problemas mais graves da Metafísica e da Ontologia, em que suas ideias tão frutíferas continuam a oferecer ilimitados contributos, sem que sejam ainda reconhecidas.
Um daqueles pontos nos quais
a razão parece estar em conflito consigo mesma, para reproduzir a feliz
expressão de Kant, é o conflito entre livre-arbítrio e determinismo. Questão
que deve a sua formatação moderna, senão a sua essência, aos problemas e
soluções levantados pelo pensamento de Jesus. Em nenhum outro pensador os dois
elementos se achavam tão presentes, tão harmoniosamente unificados, de modo que
se qualquer outra influência tivesse sido determinante nesta questão, a
filosofia deveria ter pendido para um dos dois. Se estoicos ou epicuristas
tivessem prevalecido na orientação da tradição europeia, tenderíamos para o
determinismo. Se o platonismo ou o aristotelismo tivessem prevalecido, seríamos
excessivamente confiantes no nosso poder. A síntese de Jesus equilibrou de tal
modo esta questão que o conflito passou a ser insolúvel ou marcado pela
igualdade complementar das duas forças, correspondendo esta última variante ao
que se produziu de mais elevado na Filosofia e Teologia humanas.
A defesa que Jesus faz do
livre- -arbítrio transcende todas as categorias segundo as quais se havia
julgado o poder do homem, elevando-o às alturas da divindade, fazendo dele até
então visto como animal ou, na melhor das hipóteses, cidadão, o herdeiro do
Deus único e absoluto. É tão grande a liberdade, na concepção de Jesus, que a
fé do homem pode transportar montanhas, e todas as forças de sua alma estão sob
o seu controle.
A fé, aliás, é exaltada sem
qualquer restrição, pois “tudo o que for pedido com fé, será obtido”,1
e o rabi galileu atribuía as curas e milagres à fé dos requerentes,
lembrando-lhes que “fora feito segundo a sua fé”.2 Em nenhum momento
Jesus diz aos discípulos que eles são incapazes de repetir os seus feitos por
ausência de talento ou habilidade, mas garante-lhes, ao contrário, que nada
lhes é impossível e os repreende sempre por não terem a fé suficiente para tal
ensejo.3
Quanto ao patrimônio íntimo,
Jesus inovava colocando todos os sentimentos e pensamentos sob a tutela da
consciência. Enquanto a ética lidava até então com atos, Jesus ressalta a
liberdade de consciência, estendendo a nossa responsabilidade aos “pecados
cometidos em pensamento”.4 Recomendando a vigilância, estava Ele
afirmando a necessidade de regrar as emoções e ideias. Transformando o amor em
mandamento, contrariou completamente a ideia de um amor passional ou fruto de
inclinação, gosto, tendência, e lançou as bases ainda incompreendidas da
reforma emocional. Ao ensinar o amor a Deus e ao próximo, como mandamento
maior, assegura-nos de que qualquer pessoa tem o governo de seus sentimentos,
sendo responsável pela amargura, aridez ou floração interior. Pregou a verdade
que liberta e afirmou que os homens andavam até então como escravos de seus
pecados,5 estando libertos a partir daquele momento pela revelação
de que o Espírito é senhor de seu destino, a par de todos os hábitos, costumes,
instintos, atavismos e compromissos sociais.
Ao mesmo tempo e sem
diminuir em nada esta prerrogativa de liberdade, Jesus apresentou uma visão da
Providência tão absoluta, onipotente e imanente a todos os fenômenos da Criação
que mesmo os judeus se espantavam com a sua convicção de que todas as coisas
são determinadas por Deus. Recomendou a resignação incondicional às agruras da
vida e às provações enviadas pela divindade. Apontou Deus como o Pai e Senhor
da vida, em cujas mãos devemos nos depositar com desassombro, sem
preocuparmo-nos com o dia de amanhã.6 Reuniu no sublime Sermão da
Montanha as condições da iluminação com destaque para a entrega, abnegação e
confiança na direção que Deus oferece ao mundo, dando a entender que o futuro
está em suas mãos. Orou sempre a Deus para que tudo transcorresse conforme a
sua vontade.7 Baseou a própria grandeza na destruição da vontade
pessoal e na submissão à vontade do Pai, apresentando-se assim como revelação
máxima de Deus, na exata medida em que não reconhecia ser nada fora dele.8
Essa doutrina de implicações
oceânicas gera, há dois mil anos, um estarrecimento da razão. Os que a
aceitaram de modo humilde encontraram nela a serenidade e a consolação do
determinismo divino e a responsabilidade e grandeza da liberdade individual. Os
muitos que tentaram entendê-la reduziram-na às próprias limitações e
enfatizaram os polos correspondentes às suas preferências.
Santo Agostinho
concentrou-se na ideia de Deus, depositando nele, causa de tudo, a decisão
sobre a salvação humana, e deixando ao livre-arbítrio apenas a decisão entre
aceitar ou não a eleição. Pelágio, enfocando a divindade e responsabilidade do
indivíduo, colocou nas mãos do homem a salvação ou queda, confrontando a ideia
de Agostinho sobre a eleição pela graça de Deus e estabelecendo a necessidade de
obras para a elevação do Espírito. Graças ao poder político do bispo de Hipona,
Pelágio foi fortemente perseguido e julgado como herege, pesando sobre os
ombros do santo africano a responsabilidade pelo desequilíbrio filosófico e
doutrinário do Cristianismo.
Lutero e Erasmo, o
reformista protestante e o católico, respectivamente, repetiram a mesma disputa
mais de mil anos depois, dando sinais de que a Humanidade pouco evoluiu na
interpretação da filosofia de Jesus. Enquanto Lutero condenou o livre-arbítrio
em seu livro De servo arbítrio (Sobre o arbítrio escravo), Erasmo o exaltou em
seu livro-resposta De libero arbítrio (Sobre o livre-arbítrio). Lutero
acreditava que a única coisa em poder do homem é a sua entrega à fé. Se o
fizesse, o homem converter-se-ia por força do poder de Cristo, e a fé revelada
o transformaria. As boas obras seriam mera consequência dessa conversão.
Erasmo, racionalista e liberal, rebatia que havia muitas interpretações
conflitantes sobre as Escrituras, e que era impossível distinguir com certeza a
fé correta da equivocada, a aparente da sincera, e que por isso a razão deveria
fiscalizar a fé, e o homem deveria manter o seu livre-arbítrio e juízo crítico,
embora aceitando a orientação das Escrituras. Erasmo também enxergava passagens
em que Jesus sugere o livre-arbítrio, e por isso concluía que, na dúvida, o
homem deveria agir como se a salvação dependesse de suas obras, esforçando-se
por si mesmo como se não estivesse salvo, ao invés de entregar-se à ideia
dogmática de estar garantido pela fé.
Ainda outras vezes a
história da Teologia e da Filosofia polarizou-se numa dicotomia do pensamento
de Jesus, em detrimento da completude magnífica que a sua síntese harmônica
oferecia. Mas conquanto essas diástoles do pensamento tenham provocado
contendas, foi também importante para o exercício do raciocínio que essas
divisões didáticas e simplificadoras da dialética cristã ocorressem. Se ao
menos conseguirmos aprender com este processo de evolução histórica, poderemos
evitar a continuidade dessa cisão, e reconstituir a metafísica de Jesus em sua
potência integradora original, onde livre- -arbítrio e Providência implicam-
-se mutuamente, ao invés de se contradizerem.
1 MATEUS, 21:22; MARCOS,
11:24.
2 MARCOS, 5:34; LUCAS, 7:50,
8:48; MATEUS, 9:22.
3 Como no episódio em que
Pedro caminha sobre as águas, bem como na exortação de João (10:34): “Vós sois
deuses, e tudo o que eu faço também podeis fazer, e ainda mais”. E em Marcos
(9:23): “Tudo é possível para aquele que crê”.
4 MATEUS, 9:4.
5 JOÃO, 8:33-34.
6 MATEUS, 6:28
7 Não só na oração Pai Nosso
como também em Mateus (7:21; 12:46-50); João (4:34), e em muitas outras
passagens mais indiretamente.
8 JOÃO, 5:19-38, 14:8-10.
Fonte: Reformador, ano 129,
nº 2.195, fevereiro 2012, por Humberto Schubert Coelho (e-book)
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