Fé raciocinada, farol no fim do túnel

“Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão em todas as épocas da Humanidade.” (O Evangelho segundo o Espiritismo, Fronstispício e cap. XIX, item 7.)

Dois milênios são transcorridos desde os tempos em que Jesus caminhou sobre a Terra a semear amor e compaixão, a curar enfermos do corpo e da alma. As multidões seguiam seus passos por agros caminhos. Eram regiões castigadas por frio intenso ou sol escaldante, poeira, vento e inumeráveis perigos. Sobrecarregadas de aflições físicas e morais, buscavam soluções para seus males. O que movia milhares de pessoas a enfrentar os perigos, a fome, a intempérie?

Um sentimento imbatível: a fé.

Hoje, a modernidade ilumina todos os recantos do mundo, proporciona conforto e progresso, no entanto, as necessidades, as aflições, os conflitos humanos permanecem.

Onde a fé?

O homem almeja conquistar o mundo; seus olhos ambicionam atingir além dos horizontes, dominar fronteiras e vencer limites, mas em qualquer parte em que esteja seus olhos continuam fixos nas teias do egoísmo. No anseio de exaltar-se não percebe que deixa sem abrigo e sem vigilância o seu maior tesouro: o próprio Espírito.

Essa peregrinação não terá fim enquanto não se conscientizar de que a solução não se encontra nas conquistas dos tesouros materiais, mas nas aquisições do mundo íntimo. E deve entender que o ponto de partida se situa na energia interior incendida pela fé. Sem fé o homem se degrada. Desejoso de dominar, torna-se dominado. Crente na vitória, surpreende-se derrotado. Sem fé, perde-se pelos atalhos do mundo. Só a fé gera combustível para a iluminação perene do Espírito. Uma vez cultivada, rasga caminhos, fortalece a esperança e acorda o amor pelos semelhantes. O homem que tem fé vence o mundo.

“O crepúsculo inflamava o horizonte. Ordenou Jesus que seus discípulos entrassem no barco e fossem adiante para o outro lado, enquanto despedia a multidão.

Após despedir a multidão, subiu ao monte para orar [...].

O barco com seus discípulos já estava no meio do mar, açoitado pelas ondas, porque o vento era contrário.

Jesus dirigiu-se para eles, caminhando sobre o mar.

E os discípulos, vendo-o caminhar sobre o mar, assustaram-se dizendo: É um fantasma. E gritaram, com medo.

Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais.

E respondeu-lhe Pedro: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo, por cima das águas.

E Ele disse: Vem. E Pedro descendo do barco andou sobre as águas para ir ter com Jesus.

Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou dizendo: Senhor, salva-me.

E logo, Jesus, estendendo a mão, segurou-o e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste?

E, quando subiram para o barco, acalmou o vento.

Então aproximaram-se os que estavam no barco, e adoraram-no, dizendo: És verdadeiramente o Filho de Deus.” (Mateus, 14:22-33.)

Jesus prossegue, através dos séculos, atendendo a multidões.

Esse acontecimento, registrado por Mateus, é de grande significação para a Humanidade. Observa-se no decorrer de toda a Boa Nova, que o Mestre não perdia oportunidade, os fatos mais simples eram aproveitados para ilustrar suas lições, pois deveriam ficar eternizadas na memória dos povos.

O mar, símbolo vivo dos perigos e das inseguranças humanas.

O barco, a frágil proteção material.

As ondas, o vento forte figuram as aflições que açoitam as criaturas de tempos em tempos.

Jesus, a certeza, a segurança, o amigo sempre presente, o socorro perene às aflições.

Pedro, o ser individual, aquele dentre a multidão que clama pelo Cristo, mas na primeira dificuldade duvida e, diante do vento forte das vicissitudes da vida, sente medo.

O medo, inimigo invisível, dominador, faz Pedro afundar, mas imediatamente grita e o Amigo Divino estende-lhe as mãos e o coloca a salvo.

Jesus é, pois, o amigo de todas as horas em quem se deve depositar toda confiança, toda fé. “Inspiração divina, a fé desperta todos os instintos nobres que encaminham o homem para o bem. É a base da regeneração. Preciso é, pois, que essa base seja forte e durável, porquanto, se a mais ligeira dúvida a abalar, que será do edifício que sobre ela construirdes? [...]” (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIX, item 11.)

No poder de caminhar sobre as águas e no insucesso de Pedro, Jesus exaltou a necessidade de se possuir uma fé sólida.

E essa solidez é registrada na advertência do Mestre: “Homem de pouca fé, por que duvidaste?”

Um Espírito Protetor (op. cit., item 12) afirma: “A fé é humana e divina [...]. Se todos os encarnados se achassem bem persuadidos da força que em si trazem, e se quisessem pôr a vontade a serviço dessa força, seriam capazes de realizar o a que, até hoje, eles chamaram prodígios e que, no entanto, não passa de um desenvolvimento das faculdades humanas”.

A fé humana desperta a força interior que induz o indivíduo a alcançar o objetivo proposto.

A fé divina é a chama ardente que se acende na alma quando se tem a certeza da existência de um Ser superior – Deus –, pelo qual se foi criado e sem o qual nada é possível.

Quando a fé se solidifica na alma, uma energia interior toma conta do ser; equilibram-se as emoções; as vicissitudes da vida passam a ser enfrentadas com coragem e resignação. É a certeza de que Deus lhe estenderá as mãos no momento aprazado.

A fé pode desenvolver-se de forma desequilibrada, sem lógica, em que o indivíduo tudo acata. Dessa forma, em tudo crê sem refletir sobre o que é certo ou errado, incapaz de examinar ou avaliar de forma racional o que lhe é proposto. Eis a fé cega, seguramente prejudicial, pois induz à aceitação tanto do falso quanto do verdadeiro.

Somente a fé raciocinada ilumina e liberta. Fundamentada nos fatos e na lógica, resiste à análise e à reflexão, pois está assentada sobre as bases da verdade.

Cultivar a fé cega é dar vazão ao orgulho, enquanto que a fé raciocinada faz da humildade a sua fonte de bênçãos.

A Humanidade está carente de fé. E quando se vê em meio ao mar de inseguranças, açoitada pelo vento das aflições, sente-se amedrontada pela dor. Quando se tem fé, não se teme a dor. É aceita com resignação. A dor, instrumento de disciplina e de educação, é a mestra que aciona o alarme, tanto do corpo quanto da alma: é o aviso de que alguma coisa não vai bem. A dor é o teste que verifica a solidez dos sentimentos. É o fiel da balança que revela qual o sentimento predominante: fé ou medo? Quem tem fé não deixa o medo tomar conta. Todo o Evangelho de Jesus exalta o poder da fé nos diferentes momentos da vida humana.

A fé é uma centelha que nasce com o ser; é dádiva divina: cabe ao homem ativá-la e ampliá-la através do estudo e da vivência do Evangelho.

Pedro soube ampliar sua fé. Ao sentir-se sobre as águas, assolado pelas ondas e pelo vento forte, teve medo, mas acreditou em Jesus e atendeu o seu chamado. Novamente teve medo, sentiu-se afundar, mas clamou ao Amigo, que lhe estendeu a mão. Às vésperas da crucificação negou Jesus por três vezes. Por três vezes sentiu a garra do medo ante a fragilidade de sua fé. No entanto, ao longo do tempo, conquistou uma fé tão fervorosa que lhe deu forças para vencer todos os dolorosos testemunhos, e foi capaz de cumprir arduamente a tarefa de divulgação do Evangelho. Aprisionado e também condenado à cruz do martírio, tornou-se tão confiante que pediu humildemente para ser crucificado de cabeça para baixo, por não se sentir digno de ser crucificado da mesma forma que Jesus.

Fé é conquista, aquisição da alma que deseja crescer.

Para o incrédulo a dor é mais intensa, o sofrimento infindo; as doenças mais aflitivas, a morte aterroriza e a separação dos entes queridos é afastamento eterno. O medo se impõe como companhia constante e indesejável.

Como se libertar do medo?

Pode-se dizer que o medo é o substituto da fé. Onde há fé o medo não se apresenta. É impostor moral a derramar sobre a alma sensação de insegurança, de inquietação, de apreensão, de pavor ante um perigo real ou imaginário. Torna-se avassalador, tanto mais contundente quanto menos sólida for a fé. O medo enfraquece não só o físico, mas também o Espírito, tornando-os susceptíveis às doenças e influências inferiores.

André Luiz (Nosso Lar, cap. 42) faz referência ao aspecto destrutivo desse sentimento desagregador: Há “[...] elevada porcentagem de existências humanas estranguladas simplesmente pelas vibrações destrutivas do terror, que é tão contagioso como qualquer moléstia de perigosa propagação. Classificamos o medo como dos piores inimigos da criatura, por alojar-se na cidadela da alma, atacando as forças mais profundas”.

O medo desequilibra as energias espirituais e em consequência desarticula o metabolismo do corpo físico, que apresenta reações diversas de acordo com o grau de intensidade absorvida em cada indivíduo. Os efeitos podem ser diversos como: pressão alta ou baixa, palpitação, palidez, mudez, pensamentos desconexos, má digestão e outros tantos sintomas que podem se agravar com a influência de Espíritos inferiores. Nesse estado de desequilíbrio o pensamento não consegue concatenar ideias e, consequentemente, aquele que não tem fé, mesmo que queira, no momento de perigo não conseguirá formular súplicas. Nessa circunstância os mensageiros espirituais, a fim de auxiliar, têm que superar a barreira da falta de fé. Por isso, em seguida às curas, Jesus sempre afirmava: “Vai que a tua fé te salvou”.

Deus, em sua infinita sabedoria, dotou o corpo humano de recursos inimagináveis e um deles está presente nas glândulas suprarrenais, em número de duas, situadas uma sobre cada rim. “Elas produzem dois tipos de hormônios, um deles é a adrenalina. Esse hormônio adapta o corpo às situações de perigo e ao estresse. Se nos alarmamos ou nos assustamos, o coração palpita mais forte e a respiração torna-se profunda e rápida. Estes são efeitos da adrenalina que prepara o corpo para uma situação de emergência. Acelera a respiração e a frequência cardíaca e desvia sangue extra para os músculos, ao mesmo tempo atrasa a digestão e obriga o fígado a lançar glicose no sangue, havendo dessa forma mais combustível para a contração muscular. A adrenalina funciona em conjunto com o sistema nervoso, preparando o indivíduo para enfrentar o perigo.” (Dicionário Escolar do Corpo Humano.)

Somente esse mecanismo, descrito com simplicidade, sem a complexidade própria da fisiologia humana, já deveria ser suficiente para crer-se na existência de Deus e em sua sabedoria. Trata-se de um processo físico para que a criatura possa enfrentar com segurança as emoções fortes e os testemunhos dolorosos. A confiança, a certeza da existência de um Ser superior que ama e que vela por suas criaturas fortalece o Espírito e lhe dá condições de receptividade às energias dos planos maiores. Aquele, porém, que prefere cultivar o medo, que nada faz para vencê-lo, sofre constantes bombardeios de adrenalina que acabam por desorganizar o metabolismo orgânico, atraindo para si moléstias indesejáveis e desnecessárias.

Há situações em que uma pequena parcela de medo é providencial e chega a livrar as pessoas de perigos. Assim, as ameaças de perigo, insegurança, aflições devem ser enfrentadas com fé, de forma racional, equilibrada e calma, a fim de ter condições para providências imediatas como a prece.

O medo infundado é prejudicial, requer tratamento psíquico e espiritual. O indivíduo sente fobia de tudo ou de determinadas situações que muitas vezes não acontecerão. Num rol imenso incluem-se: doenças e mortes, sair de casa, ficar pobre, perder o emprego, falar em público, enfrentar o futuro, afastar-se dos entes queridos, e outros tantos.

Existem duas opções: ou se domina o medo ou se deixa dominar por ele.

É importante lembrar que a ausência total de medo não supõe presença de fé. Há criaturas que se entregam às mais variadas situações de risco, sem qualquer segurança, sem proteção adequada, onde a vida própria e a dos semelhantes são colocadas em leilão. Essas situações configuram imprudência, que pode levar à invalidez ou à desencarnação prematura: suicídio.

O Espírito Emmanuel assim define a fé:

“– Ter fé é guardar no coração a luminosa certeza em Deus [...]. [...] é alcançar a possibilidade de não mais dizer: ‘eu creio’, mas afirmar: ‘eu sei’, com todos os valores da razão tocados pela luz do sentimento. [...]” (O Consolador, questão 354.)

Jesus paira sobre o mar das paixões humanas, converte as ondas revoltas da incompreensão em calmaria e, às suplicas fervorosas, Ele responde da mesma forma que a Pedro. No entanto, somente a fé racional sustenta o caminho sobre as águas agitadas da atualidade planetária.

Fonte: Reformador, ano 124, nº 2.126, maio 2006, por A. Merci Spada Borges.

  

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