Evangelho segundo Mateus - cap. 27

Arrependimento e morte de Judas. Lugar do seu suicídio e da sua sepultura

1. Pela manhã, todos os príncipes dos sacerdotes e anciães do povo se reuniram em conselho contra Jesus para o entregarem à morte. 2. Depois de o manietarem, levaram-no e o entregaram ao governador Pôncio Pilatos. 3. Então, Judas, que o traíra, vendo que Jesus fora condenado, tocado de arrependimento, tornou a levar as trinta moedas de prata aos príncipes dos sacerdotes e aos anciães, 4, e lhes disse: Pequei, entregando o sangue inocente. Mas eles responderam: Que nos importa? Isso é lá contigo. 5. E Judas, depois de arremessar no templo as moedas, se retirou e foi enforcar-se. 6. Os príncipes dos sacerdotes, tendo apanhado as moedas, disseram: Não nos é licito deitá-las no cofre do templo, porque são preço de sangue. 7. Depois de o deliberarem em conselho, compraram com elas o campo de um oleiro, para servir de cemitério, a forasteiros. 8. Por isso aquele campo se ficou chamando, até o dia de hoje, Hacéldama, Isto é: campo de sangue. 9. Cumpriu-se assim o que fora dito pelo profeta Jeremias: “Tomaram as trinta moedas de prata, preço daquele que com eles os filhos de Israel apreçaram, 10, e as deram pelo campo de um oleiro, como me ordenou o Senhor”.

Com relação aos fatos narrados nestes versículos, necessários se tornam alguns esclarecimentos, para que, confrontados os termos do versículo 18, do capítulo 1, dos Atos dos Apóstolos com os do versículo 7, do capítulo 27 de MATEUS, conhecidos fiquem os pormenores exatos do que houve com referência à propriedade do campo, que se chamou Hacéldama, onde Judas se suicidou e teve sepultura.

Judas foi restituir as trinta moedas que recebera aos príncipes dos sacerdotes e dos anciães, que, entretanto, não as quiseram aceitar. Ele, então, as atirou no templo e foi enforcar-se num campo, onde lhe acharam o cadáver em estado de putrefação bastante adiantada. Ao terem conhecimento desse fato, os príncipes dos sacerdotes e os anciães, que haviam apanhado as moedas, conceberam a ideia de com elas comprarem aquele campo, para cemitério dos forasteiros e para nele ser enterrado o cadáver de Judas, uma vez que entre os Israelitas não se concediam as honras da sepultura religiosa aos suicidas. Compraram, pois, o campo, que se ficou chamando Hacéldama.

Nos Atos dos Apóstolos, onde se diz que o campo foi adquirido por Judas com o preço do seu pecado, e que ele, depois de o haver comprado, lá se enforcou, houve um erro de narração, devido aos comentários feitos a propósito dos fatos que Mateus relatara, mas ainda não escrevera, e a propósito do lugar do suicídio de Judas e do sepultamento, aí, do seu cadáver.

Pedro foi dos que pensaram que Judas comprara o campo e que ali se enforcara. Essa opinião, da qual Lucas, como narrador, se fez eco, nasceu do fato de se haver Judas enforcado naquele campo e de ter sido nele enterrado. Destas circunstâncias concluíram, primeiro, que o campo lhe pertencia, visto ser costume entre os Hebreus preparar cada um, de antemão, a sua última morada; segundo, que ele o adquirira com o que ganhara da sua traição.

Jesus diante de Pilatos. Jesus é entregue para ser crucificado

(Marcos, 15:1-15; Lucas 23:1-25)

11. Jesus foi levado à presença do governador e este o interrogou assim: És o rei dos Judeus? Respondeu-lhe Jesus: Tu o dizes. 12. As acusações, porém, que lhe faziam os príncipes dos sacerdotes e os anciães nada respondeu. 13. Pilatos então lhe perguntou: Não ouves de quantas coisas estes te acusam? 14. Jesus nem uma só palavra disse em resposta, do que grandemente se admirou Pilatos. 15. Ora, o governador costumava, no dia da festa da Páscoa, dar liberdade a um preso que o povo indicasse. 16. E naquela ocasião tinha ele em seu poder um de grande fama, chamado Barrabás. 17. Perguntou, pois, Pilatos à multidão ali reunida: Qual dos dois quereis que eu vos solte, Barrabás, ou Jesus, apelidado o Cristo? 18. É que sabia que só por inveja lhe tinha sido este último entregue. 19. Nesse ínterim, quando ele se achava sentado no tribunal, sua esposa lhe mandou dizer: Não te envolvas no caso desse justo, pois que hoje, em sonho, estranhamente atormentada fui por sua causa. 20. Mas os príncipes dos sacerdotes e os anciães persuadiram o povo a pedir fosse solto Barrabás e Jesus condenado à morte. 21. Assim, perguntando-lhes o governador: Qual dos dois quereis que vos solte? Responderam: Barrabás. 22. Objetou-lhes Pilatos: Que hei de, então, fazer de Jesus, a quem chamam o Cristo? Responderam todos: Seja crucificado! 23. O governador insistiu: Que mal, porém, fez ele? Com mais força clamaram, em resposta: Seja crucificado! 24. Vendo Pilatos que nada conseguia, que, ao contrário, o tumulto se tornava cada vez maior, mandou vir água, lavou as mãos diante do povo e disse: Sou inocente do sangue deste justo; isso é lá convosco. 25. Todo povo lhe respondeu. Caia sobre nós e sobre nossos filhos o seu sangue. 26. Pilatos logo pôs Barrabás em liberdade e, depois de haver mandado acoitar a Jesus, o entregou à multidão para ser crucificado.

A diversidade que se nota entre o texto de Lucas e os dos outros Evangelistas não nos deve surpreender, nem embaraçar, pois sabemos que cada um deles tinha que entrar em particularidades especiais. Assim, o que um, refere sumariamente, outro relata descendo a minúcias. Desse modo, as narrações sempre se explicam e completam reciprocamente.

Diante de Pilatos, a uma só das suas perguntas consente Jesus em responder: à que respeitava à soberania por Ele exercida sobre os Judeus, soberania moral e espiritual, que Pilatos, apesar de não admitir a missão do Mestre, bem compreendeu que nada tinha de política. É assim que, impelido por um sentimento secreto, e, ainda mais, advertido pela mulher, que tivera com Jesus um sonho muito característico, tenta salvá-lo, mandando, ao mesmo tempo, para salvar a sua própria responsabilidade, que apresentassem o acusado ao sucessor de Herodes.

Também a nenhuma das perguntas que lhe este fez respondeu Jesus. Considerando aquele silêncio um desrespeito à sua alta dignidade, o sucessor de Herodes, indignado, se vingou, tratando-o com desprezo e ridiculizando-o, infligindo-lhe um castigo infamante, qual o de mandar lhe vestissem uma túnica branca, porque dessa cor era a dos príncipes que aspiravam ao trono. Isso fazendo, apresentava-o como um louco, como um em quem a ambição produzira a loucura.

Eximiu-se, porém, de julgá-lo, entendendo que o julgamento cabia a Pilatos, a quem o reenviou. Essa troca de atenções reconciliou os dois déspotas, que desde então se tornaram amigos.

À pergunta de Pilatos: És o rei dos Judeus? respondeu Jesus: Tu o dizes, falando, porém, unicamente do ponto de vista espiritual. Para bem compreendermos o sentido, o alcance e o objetivo dessa resposta, devemos aproximá-la destas outras palavras, já por Ele antes proferidas: Em verdade vos digo que doravante não mais me vereis, até ao dia em que digais: “Bendito o rei que vem em nome do Senhor!” (LUCAS, capítulo 13, versículo 35 e capítulo 19, versículo 38.).

Depois que lhe respondeu: Tu o dizes, duas vezes Pilatos deu a Jesus o título de rei dos Judeus, mas, por mofa. Na sua opinião, o Mestre era um espírito fraco, mais presa de loucura que de ambição.

Flagelação. Coroa de espinhos. Ultrajes. Insultos

(Marcos, 15:16-19)

27. Depois, os soldados do governador Conduziram Jesus ao pretório e em torno dele se reuniu toda a coorte. 28. Despiram-no de suas roupas e o cobriram com um manto escarlate. 29. Em seguida teceram uma coroa de espinhos entrelaçados e lha puseram na cabeça, colocando-lhe na mão direita uma cana. E, ajoelhando-se diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, rei dos Judeus! 30. Cuspiam-lhe no rosto e, tirando-lhe da mão a cana, com ela lhe batiam na cabeça.

Os exemplos de paciência e resignação que neste passo deu Jesus, devemos tê-los presentes sempre ao nosso espírito. Não sejamos nunca dos que acusam e insultam, por mais que pareça legítimo o direito que nos assista de assim proceder, porque, cegos que somos, podemos estar a acusar e insultar a um inocente.

A paciência e a doçura é o que nos cumpre opor aos que de nós zombem ou escarneçam. Fora inútil tentarmos demonstrar a cegos os princípios e as propriedades da luz. Perderíamos o nosso tempo. Firmemo-nos na pureza das nossas intenções, na pureza da nossa consciência e dos nossos atos e estejamos certos de ter sempre no Senhor um juiz imparcial e equânime.

Jesus conduzido ao lugar do suplicio. Simão de Cireneu o ajuda a carregar a cruz

(Marcos, 15:20,21; Lucas, 23:26-32)

31. Depois de o terem escarnecido, tiraram-lhe o manto escarlate, vestiram-lhe de novo suas roupas e o levaram para ser crucificado. 32. Ao saírem da cidade, encontraram um homem de Cireneu, chamado Simão, e o obrigaram a carregar a cruz com Jesus.

Jesus, depois de haver sido objeto do escárnio, do ludíbrio e das jogralidades de todos, foi manietado, para ser conduzido ao suplício. Pilatos o entregou aos Judeus que ansiavam por lhe dar a morte. Mas, os soldados do Tetrarca eram os guardas do preso e os executores da sentença. Como tais, vigiavam-no, a fim de que não fugisse, nem lhes fosse arrebatado.

Penosíssima foi a caminhada até ao lugar do sacrifício. Assim, porém, tinha que ser, a fim de que Ele mostrasse aos homens até onde podem chegar a resignação e a paciência. Nem uma só queixa, nenhum protesto lhe saíram dos lábios. Nem ninguém diga: Era-lhe fácil; a carne nada sentia.

Jesus sofria, sofria muito no seu coração, pelo endurecimento dos homens. Sofria, por ver que séculos e séculos teriam que passar, antes que o batismo do espírito nos purificasse. Ele experimentava as angústias que dilaceram o coração da mãe extremosa, que vê transviados, criminosos, seus filhos amados; que vê prestes a caírem sobre eles os rigores da lei, as aflições e torturas que os esperam. Ela não sofre, é certo, na sua carne, a devotada mãe; seus ossos não são despedaçados; mas, todas as fibras do seu coração estalam dolorosamente; torturam-na a ansiedade, a aflição pelo futuro dos seus bem-amados.

Sim, Jesus sofria e sofre ainda, no seu amor sem limites, quando nos vê endurecidos. Suavizemos esse sofrimento, com o nosso amor e a nossa submissão.

Crucificação de Jesus e dos dois ladrões. Palavras por Ele ditas como ensinamento e exemplo

(Marcos, 15:22-28; Lucas, 23:32-34; João, 19:14-24)

33. Chegaram assim ao lugar chamado Gólgota, que quer dizer lugar do Calvário (ou da caveira), 34, e lhe deram a beber vinho misturado com fel. Ele, porém, tendo-o provado, não o quis beber. 35. Depois de o terem crucificado, repartiram entre si as suas vestes, tirando sortes; a fim de que se cumprisse o que fora dito pelo profeta: Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica deitaram sortes. 36. E, sentados, ali o ficaram guardando. 37. Por cima da sua cabeça puseram escrito o motivo da sua condenação, nestes termos: Este é Jesus, o rei dos Judeus. 38. Com ele também foram crucificados, um à sua direita, outro à sua esquerda, dois ladrões.

Vimos como foi Jesus conduzido ao suplício. Chegado ao Gólgota, que quer dizer lugar do Calvário, ficou submetido às leis que então regulavam as execuções pela crucificação. Sua boca não se abre para proferir o mais ligeiro murmúrio. Nele imperam a calma e a dignidade. É que lhe cumpria dar aos homens, até ao derradeiro instante, exemplos de moderação, de submissão às leis, por mais iníquas que pareçam, de respeito aos seus executores, por mais ínfimos que sejam os agentes destes. A verdade, porém, tinha que se fazer ouvida e brilhar no alto da cruz, onde fora pregado o Rei dos Judeus, o rei da Terra, pois que procede dos céus. Ele é o rei dos habitantes da Terra, porquanto o seu reino não é deste mundo e não pode, de forma alguma, fazer sombra aos reis de tão impuro orbe.

Foram os Judeus que, por vontade própria, o crucificaram; mas, o ato material foram os Romanos que o executaram. Os soldados romanos, que tinham o encargo de executar a sentença proferida, foram apenas instrumentos passivos da sua execução. É o que claramente se deduz dos versículos 18 ao 32 do capítulo 19 do Evangelho de João.

Blasfêmias. Zombarias. Insultos

(Marcos, 15:29-32; Lucas, 23:35-37)

39. E os que por ali passavam, abanando a cabeça, blasfemavam dele, 40, dizendo: Tu, que destróis o templo de Deus e o reedificas em três dias, por que não te salvas a ti mesmo? Se és o filho de Deus, desce da cruz. 41. Do mesmo modo os príncipes dos sacerdotes, com os escribas e os anciães, o escarneciam, dizendo: 42, Ele salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo; se é o rei de Israel, que desça agora da cruz e nós o acreditaremos. 43. Ele põe toda a sua confiança em Deus; livre-o Deus agora, se o ama, pois que ele disse: Sou o filho de Deus.

Estes versículos nos mostram ainda a ingratidão e a loucura dos homens, sempre prontos a insultar aqueles a quem mais deviam respeitar. Encerram também um aviso aos insultadores e incrédulos de hoje, que rejeitam a revelação espírita e, portanto, a missão espiritual do Cristo, como rejeitaram no passado a sua missão terrena.

Os sumos sacerdotes, os escribas, os fariseus, os anciães, espíritos orgulhosos, atrasados e culpados, o povo, que em torno deles se agrupava, e os transeuntes, um e outros, dominados por eles, eram incapazes de compreender a necessidade, o motivo e o fim daquela missão que, preparada desde longos séculos, se cumpria, segundo a presciência e a sabedoria infinitas de Deus.

A despeito, porém, de todos os obstáculos que lhe foram e continuam a ser opostos, o progresso moral, intelectual e físico da Humanidade se há de realizar integralmente, porque ele faz objeto de uma lei absoluta e imutável, emanada da Divindade. E, à medida que o homem progride, os milagres se vão explicando pelo conhecimento das causas que os produziram e, desse modo, os ensinamentos do Mestre vão constituindo uma constelação, cada vez mais perceptível, de fúlgidas estrelas a rebrilharem no nosso firmamento espiritual e cujas cintilações levam ao íntimo das almas uma luz benéfica, que clareia, aquece, conforta e mitiga as dores, luz que é vida e eterna bem-aventurança para o Espírito.

Palavras que Jesus dirigiu a um dos dois ladrões, ao que é chamado o bom ladrão

(Marcos, 15:32; Lucas, 23:39-43)

44. Os mesmos impropérios lhe dirigiam os dois ladrões que com ele haviam sido crucificados.

Os dois ladrões, a princípio, faziam coro com os que ultrajavam a Jesus. Um deles, porém, vendo, afinal, que o mesmo Jesus respondia aos insultos que lhe atiravam orando pelos que assim procediam, compreendeu haver no Mestre alguma coisa que o colocava acima da Humanidade. Quer dizer que esse malfeitor entreviu a verdade, ainda que confusamente, e não hesitou em pedir misericórdia àquele em quem reconhecera de súbito maior poder para as coisas do céu, do que para as da Terra. Jesus então lhe fez esta animadora promessa: Em verdade te digo que hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.

Para que se apreendam o sentido e o significado destas palavras, importa se saiba o que é o Paraíso, para o Espírito que se tornou pecador. Não é um lugar de beatífico êxtase, sem objetivo, sem a perspectiva de coisa melhor. É, ao contrário, a entrada do ser espiritual na senda luminosa que proporciona ao culpado entrever o prêmio reservado aos esforços do trabalhador diligente: a sua redenção. É a compreensão, que ele adquire, do futuro, junta ao desejo ardente de o alcançar.

Essa senda, essa condição espiritual, em que o sofrimento causado pelo remorso das faltas cometidas constitui uma como fonte de alegria para o Espírito que se apercebe do progresso cuja realização está ao seu alcance, é que é o Paraíso que Jesus prometeu àquele que ficou apelidado de “bom ladrão”. Ele entraria nesse Paraíso, desde que, do alto de sua glória, o mesmo Jesus, por intermédio dos bons Espíritos, lhe mostrasse o caminho a percorrer e a felicidade que ao seu termo o esperava.

Sobre aquelas palavras do divino Mestre, erigiu a Igreja Católica o seu sistema da condenação e da graça, da indulgência concedida à fé, independente das obras, colocando, em consequência, o malfeitor de quem tratamos no rol dos bem-aventurados, pelo simples fato de se haver arrependido sinceramente, de haver demonstrado o que ela chama: a contrição perfeita.

Semelhante sistema, porém, é fruto de falsa interpretação das palavras do Mestre, as quais, entendidas segundo o Espírito e não interpretadas ao pé da letra, conforme ela o fez, significam: “No momento em que eu torne a ocupar o lugar que me compete, voltando à natureza espiritual que me é própria, tu entrarás na vida espiritual e verás distintamente, assim o caminho que te cumpre seguir, como a meta que terás de alcançar”.

O arrependimento é, com efeito, o primeiro passo que o Espírito tem de dar para entrar nesse caminho, um meio, portanto, de dirigir-se para a finalidade a ser atingida, de chegar à expiação produtiva, à atividade nas provações, à perseverança no objetivo. É uma venda que se rasga e que, permitindo àquele que a traz ver a luz brilhante que tem diante de si, o enche do desejo de possuí-la. Mas, isso não o exime de perlustrar o caminho, que é o que se desdobra através de sucessivas existências planetárias, isto é, de múltiplas descidas ao campo onde semeou o erro, praticando o mal, a fim de arrancá-lo pela raiz (expiação) e de fazer a semeadura do bem (reparação). Assim é que se cumpre a sentença, que não comporta exceções: A cada um segundo as suas obras.

Graças àquela luz, passa ele a ver melhor os obstáculos; consegue transpô-los mais rapidamente e com maior destreza, de sorte que atinge mais prontamente o fim colimado. Nunca, porém, aquela sentença deve ser esquecida. Sem obras, não há progresso, e as más obras, geradoras do sofrimento, só pelas boas podem ser apagadas. Segue-se daí que, sem expiação e sem reparação, o Espírito que se tornou culpado não avança para o alvo a que lhe importa chegar, porque representa a realização do destino para que o criou Deus. O arrependimento, pois, não exclui a expiação e a reparação, se bem constitua o primeiro impulso indispensável, que ele recebe da própria consciência, para se dispor a expiar e resgatar, a fim de galgar os altos cimos da espiritualidade, onde lhe é dado gozar em toda a plenitude das delícias do “paraíso”, cuja entrada se lhe abriu desde o momento em que foi tangido por aquela impulsão inicial.

Morte de Jesus, no entender dos homens

(Marcos, 15:33-37; Lucas, 23:44-46; João, 19:28-30)

45. Desde a hora sexta [meio-dia] até à hora nona [três horas da tarde] toda a terra se cobriu de trevas. 46. Por volta da hora nona, exclamou Jesus em alto brado: Eli, Eli, lama sabactâni! isto é: Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste? 47. Alguns dos que por ali estavam, ouvindo isso, disseram: Ele chama por Elias. 48. E logo um deles correu, tomou de uma esponja, ensopou-a em vinagre e, colocando-a no extremo de uma cana, lha apresentou para que bebesse. 49. Outros, porém, diziam: Deixa, vejamos se Elias o vem libertar. 50. De novo soltou Jesus um grande brado e rendeu o Espírito.

As palavras de Jesus foram erroneamente interpretadas. Como podia Ele, depois de haver cumprido fielmente a sua missão, ser abandonado pelo Senhor? Se não são admissíveis, como mostra de desfalecimento, ainda que passageiro, as que pronunciou no Horto das Oliveiras, palavras cujo sentido e objetivo já tivemos ocasião de assinalar, menos ainda se pode admitir haja, no momento em que punha glorioso fecho à sua missão, proferido essas outras, que denunciariam desfalecimento ainda maior, uma extrema fraqueza, que nenhum experimentou, dos que sofreram martírios atrozes, por se lhe conservarem fiéis. Teria Ele sido, assim, mais fraco do que estes e, portanto, menos elevado espiritualmente? Hipótese blasfema fora esta, em se tratando de quem tinha consciência plena de se achar integrado no Pai; de quem repetidamente disse que nada fazia de si mesmo, que apenas obedecia aos mandamentos que do Pai recebera; de quem, orando pelos seus apóstolos, pedia ao Pai que estes fossem um com Ele, como Ele era um com o mesmo Pai.

Não, as palavras que o divino Modelo proferiu, no momento em que, deixando na cruz o invólucro perispirítico que trazia, com a aparência de corpo humano, tornou à plena espiritualidade, de onde preside à evolução da Humanidade terrena, foram estas: Senhor, tudo está cumprido; eis-me aqui! De ordem do Mestre, essas palavras os Evangelistas, assistidos pelos Apóstolos, as transmitiram do plano invisível, ou revelaram, textualmente, ao nosso irmão.

Há, entre as narrações de MATEUS e de MARCOS, de um lado, e as de LUCAS e JOÃO (capítulo 19, versículos 28 e 30) de outro, quanto ao que Jesus disse do alto da cruz, discordâncias que os mesmos Evangelistas, naquela obra, elucidaram, restabelecendo a verdade do que ocorreu.

Assim as palavras Eli, Eli, lama sabactâni, que se traduzem: Senhor, Senhor, por que me abandonastes? foram proferidas pelo “bom ladrão”, no momento em que Jesus exclamava: Senhor, tudo está cumprido, eis-me aqui. Confiante na promessa que lhe fizera o divino Mestre, ao verificar que este se fora do mundo, por ter “morrido”, deixando-o ainda vivo no madeiro, julgou aquele condenado que o que lhe estava prometido não se cumpriria, que ficara abandonado, e soltou aquela exclamação angustiada. Soltou-a quando, em seguida ao prometimento que lhe fizera, Jesus, como dizem os Evangelistas, a fim de atrair a atenção do povo para os seus “últimos momentos”, atraindo-a, simultaneamente, para os fenômenos que se iam produzir, deu um grande brado. Ouvindo-o, os dois ladrões se puseram a gemer, os discípulos elevaram suas vozes em lamentações de imensa dor e a multidão entrou a comentar com grande rumor o que se passava. Foi nesse instante, quando chegara ao máximo a agitação tumultuosa de toda aquela turba sacudida pelos mais diversos sentimentos, que o «bom ladrão» deixou escapar-se-lhe do peito a referida exclamação de desalento. Dada a extrema confusão então reinante e a circunstância de terem sido ditas, quase ao mesmo tempo, as palavras que Jesus proferiu e as que pronunciou aquele dos dois outros crucificados, muitos atribuíram as deste ao Mestre. Mais tarde, surgiram os comentários, originando-se deles as versões que se introduziram nas narrativas evangélicas.

A diversidade dessas versões prova que nenhuma combinação houve jamais entre os Evangelistas e confirmam a naturalidade do que hoje vemos dar-se com os médiuns mais adiantados: deixarem-se dominar às vezes pela opinião que lhes é própria.

A versão que mais se acercou da realidade é a de João, que, sendo dos apóstolos o que mais perto da cruz se achava, pôde ouvir melhor, por entre os clamores que de toda a parte se elevavam, o que com efeito disse Nosso Senhor Jesus Cristo. Segundo o discípulo amado, o Mestre dissera: “Tudo está consumado”. Entretanto, pois que tudo, como sabemos, tem a sua razão de ser, a versão falsa que Mateus e Marcos reproduziram, isentos de influência mediúnica, de acordo com a opinião daqueles para quem Jesus era um homem como os demais, foi um meio de contrabalançar a crença na sua divindade, destinada a tornar-se objeto de muitas controvérsias futuras.

As locuções rendeu o espírito, espirou têm o mesmo sentido, o mesmo alcance: o da volta do Espírito à vida espírita, readquirindo a liberdade no espaço, que é a sua verdadeira pátria.

Não há, todavia, comparação possível entre o regresso de Jesus e o dos nossos Espíritos. Para nós, a encarnação material humana representa um exílio, que sofremos a título de expiação, de provação. Quando a vida nos é arrebatada, tirada, não podemos retomá-la, senão pela reencarnação. O mesmo não podia suceder a Jesus que, pela natureza extra-humana do invólucro corpóreo, tinha, só Ele, a faculdade de deixar e retomar a sua (João, capítulo 10, versículos 17 e 18.)

Assim, no Gólgota, ninguém lhe arrancou ou tirou a vida. Foi Ele quem, por si mesmo, a deixou, para mais tarde a retomar e reaparecer entre os homens, operando o que se chamou a sua ressurreição.

Ele, o Justo, voltava à pátria como Juiz e não como acusado.

Quanto às trevas que, da hora sexta à hora nona, cobriram a Terra naquele dia, foram um extraordinário efeito físico, produzido por poderosa ação espírita.

Rasga-se o véu do templo. Tremor de terra. Aparição dos mortos. Palavras do centurião

(Mateus, 27:51-56; Lucas 23:45,47-49)

51. E eis que o véu do templo se rasgou em dois de alto a baixo; a terra tremeu e as pedras se tenderam. 52. Os sepulcros se abriram e muitos corpos de santos, que neles dormiam o sono da morte, ressuscitaram. 53. E, saindo dos túmulos depois da sua ressurreição, vieram à cidade santa e apareceram a muitas pessoas. 54. O centurião e os que com ele estavam de guarda a Jesus, observando o terremoto e tudo O que se passava, se encheram de grande medo e disseram: Este era verdadeiramente filho de Deus. 55. Lá se achavam, observando as coisas de longe, muitas mulheres, que desde a Galiléia acompanhavam a Jesus, assistindo-o com o necessário. 56. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José e a mãe dos filhos de Zebedeu.

Em vão tentaremos abrir os olhos aos que se obstinam em conservá-los fechados. Não há como conseguir admitam os fatos espíritas os que negam toda influência ultramundana. Recusam-se a estudar a ciência espírita, a observar os fenômenos e negam o que teimam em “ao ver e emitem juízo sobre o que não conhecem. Em tais condições, como os havemos de qualificar? Julgam-se sábios, que nada mais têm que aprender. Deixemo-los, impando nessa presunção com que os cega o orgulho, que ainda muito os fará sofrer.

Todos os fenômenos que se produziram por ocasião da morte aparente de Jesus foram devidos à ação dos Espíritos que em número incalculável o rodeavam; foram, pois, simples fenômenos espíritas, quais tantos outros, que se produzem nos tempos presentes, embora com menor intensidade. Todos a ciência espírita os explica, como decorrentes de leis naturais.

O centurião e os que com ele estavam, guardando a Jesus, testemunhas que foram do terremoto e dos outros fenômenos que às suas vistas ali se deram, ficaram tomados de extremo pavor. Elevando então o pensamento a Deus, cuja “cólera”, segundo a maneira de ver deles, se manifestava contra a iniquidade de tal suplício, exclamaram: “Na verdade este homem era justo; era verdadeiramente filho de Deus”.

Cumpre advertir que a expressão “filho de Deus” - não foi aí empregada do ponto de vista da descendência que mais tarde deu origem ao dogma humano da divindade do Cristo, por efeito das interpretações dos homens.

José de Arimatéia desce da cruz o corpo e o deposita no sepulcro

(Marcos, 15:42-47; Lucas, 23:50-56; João, 19:38-42)

57. A tarde, um homem rico da cidade de Arimatéia, de nome José, que também era discípulo de Jesus, 58, foi ter com Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Pilatos mandou que lho entregassem. 59. José tomou do corpo, envolveu-o num lençol branco, 60, e o depositou num sepulcro novo, que para si mandara abrir na rocha e, tendo arrastado uma grande pedra, com ela tapou a entrada do túmulo e se retirou. 61. Sentadas junto do sepulcro estavam Maria Madalena e a outra Maria.

José de Arimatéia e Nicodemos tiraram da cruz o corpo do Mestre, embalsamaram-no com uma preparação de áloes e mirra e o depositaram num sepulcro que ainda a ninguém servira, aberto na rocha, num horto pertencente ao primeiro.

“Destruí este templo e eu o reconstruirei em três dias”, dissera Jesus, respondendo aos Judeus, que lhe pediam um milagre, um sinal, com que provasse o seu poder (JOÃO, capítulo 2, versículo 19.) Falando nesses termos do seu corpo, que era o templo a que se referia, aludia o divino Mestre ao que viria a chamar-se a sua “ressurreição”.

Confrontem-se com essas palavras suas os fatos que ocorreram no cimo do Calvário, de modo tão frisante, para que impressionassem os homens daquela e de todas as épocas e não deixassem dúvida sobre a sua realidade; confrontem-se as mesmas palavras com estas outras por Ele proferidas, em referência não só ao sacrifício do Gólgota, mas também ao desaparecimento do seu corpo de dentro do sepulcro, estando selada a pedra que o fechava, ao seu reaparecimento depois desse sacrifício, às suas desaparições durante o desempenho da sua missão pública, sempre que se ocultava aos olhares humanos: “Deixo a vida para a retomar; ninguém ma tira; sou eu que a deixo por mim mesmo; tenho o poder de a deixar e tenho o poder de a retomar; é este um mandamento que recebi de meu Pai” (JOÃO, capítulo 10, versículos 17 e 18); confrontem-se as citadas com estas outras: “Vós sois aqui de baixo, eu, porém, sou do Alto; vós sois deste mundo, mas eu não sou deste mundo (JOÃO, capítulo 8, versículo 23); desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas para fazer a vontade daquele que me enviou (JOÃO, capítulo 6, versículo 38); ninguém nunca subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do homem que está no céu (JOÃO, capítulo 3, versículo 13)”; confrontem-se todas essas proposições e ver-se-á que elas assinalam de modo evidente e tornam inquestionável a origem extra-humana de Jesus; fazem certo, indiscutível que, sendo sempre Espírito, debaixo daquele envoltório fluídico, tangível, Ele lia por si mesmo o pensamento dos homens e lhes penetrava as intenções.

Ora, sendo Ele sempre Espírito livre das constrições da matéria corporal humana, é claro que sua morte, que os homens consideraram real, foi meramente aparente e que o que se chamou a sua ressurreição não foi mais do que um reaparecimento que Ele levou a efeito, retomando o corpo de que estivera antes revestido, de natureza perispirítica, com a aparência do corpo humano.

Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus chumbam a pedra que fechava a entrada do sepulcro. Guardas são aí postados

62. No dia seguinte ao da parasceve (da preparação) (2), os príncipes dos sacerdotes e os fariseus se reuniram, foram ter com Pilatos, 63, e lhe disseram: Senhor, lembramo-nos de que aquele impostor, quando vivo, afirmou: Depois de três dias da minha morte, ressuscitarei. 64. Manda, portanto, que o sepulcro seja guardado até ao terceiro dia, para não suceder que venham seus discípulos, lhe furtem o corpo e depois digam ao povo: Ressuscitou dentre os mortos, pois que este ultimo embuste seria pior do que o primeiro. 65. Pilatos lhes respondeu: Aí tendes guardas, ide e guardai-o como entenderdes. 66. Eles se foram e, para garantirem o sepulcro, selaram-lhe a pedra e lhe puseram guardas.

Os Judeus haviam percebido a importância das palavras de Jesus e a voz íntima de suas consciências lhes fazia temer fossem verdadeiras tais palavras. Daí o cuidado que tiveram de vigiar o sepulcro.

A guarda deste, porém, foi confiada a soldados da milícia romana, pois que os Judeus não dispunham de exército, nem comando militar.

Os príncipes dos sacerdotes e os fariseus, que sabiam haver Jesus dito que “ressuscitaria” três dias depois de sua “morte”, tinham o maior interesse em lhe conservar o corpo, como peça de convicção, como elemento de prova, a fim de poderem confundir o Mestre e seus discípulos, mostrando o cadáver do primeiro ao povo, caso estes últimos tentassem espalhar o boato da ressurreição. Tomaram, pois, todas as precauções para uma vigilância eficaz, esperando passasse a festa do sábado, para obterem que a autoridade assumisse o encargo de vigiar a gruta.

Assim, quando foram falar a Pilatos, sabiam muito bem que o corpo estava no sepulcro e, só depois de verificarem que lá estava, foi que selaram a pedra e postaram os guardas a vigiá-lo. Exatamente porque tinham verificado que o corpo continuava no sepulcro, foi que, quando alguns dos guardas lhes relataram o que ocorrera, eles, os príncipes dos sacerdotes e os fariseus, se reuniram aos anciães e combinaram dar grande soma de dinheiro aos soldados, para que espalhassem que, durante a noite, enquanto dormiam, o corpo de Jesus fora subtraído pelos seus discípulos.

Portanto, não pode ser posta em dúvida a permanência do corpo no sepulcro, ao lhe serem colocados os guardas, nem o emprego de todas as cautelas, por parte dos encarniçados inimigos do Senhor e por parte de quantos se denunciavam interessados em apontá-lo como embusteiro, para que não se desse a subtração do mesmo corpo.

(2) Sexta-feira, era o dia em que os Judeus se preparavam para celebrar o sábado, ou qualquer dia festivo, principalmente a Páscoa.

Elucidações evangélicas. FEB (e-book).

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