Evangelho segundo Marcos - cap. 10

Divórcio. Casamento

1. Dali partindo, veio Jesus para os confins da Judeia, além Jordão; de novo as multidões se reuniram em torno dele, que recomeçou a ensiná-las como costumava. 2. Chegaram então alguns fariseus e para o tentarem lhe perguntaram: É lícito a um homem repudiar sua mulher? 3. Ele, respondendo, perguntou: Que vos prescreveu Moisés? 4. Responderam-lhe eles: Moisés permitiu despedir a mulher, dando-lhe carta de repúdio. 5. Jesus lhes replicou: Por causa da dureza de vossos corações é que Moisés vos escreveu esse mandamento. 6. Porém, desde o princípio do mundo, Deus os fez macho e fêmea. 7. Por esta razão o homem deixará pai e mãe e se ligará à sua mulher. 8. E serão dois numa só carne. Assim, já não são dois, mas uma só carne. 9. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu.

Criados todos simples e ignorantes, mas dotados das faculdades necessárias a avançar, para o destino que lhes é comum, usando do livre-arbítrio e da razão e, assim, recebendo o prêmio ou o castigo a que fizeram jus, isto é, experimentando as sanções da lei imprescritível do progresso, moral e intelectual, a que todos se acham sujeitos, para chegarem todos à perfeição, herança que o Pai celestial reserva a seus filhos, sem exceção nenhuma, é certo que apenas alguns Espíritos ascendem a essa perfeição sem jamais se desviarem do carreiro santo que lhes foi traçado.

Esses constituem as falanges dos Espíritos puros, imaculados, que têm por morada as regiões etéreas mais próximas do centro da onisciência Deus, Os outros formam as dos que faliram mais ou menos gravemente e para os quais, em consequência, se cria a necessidade de encarnar e reencarnar, a fim de se depurarem gradativamente, mediante expiações, provações e reparações, e conquistar, progredindo, a perfeição moral.

Compreende-se, pois, que o corpo, pela sua mesma natureza, não é mais do que um instrumento facultado ao Espírito, para que, no meio planetário correspondente ao gênero e à gravidade dos seus delitos, passe pelas provas que, fazendo-lhe nascer no intimo o arrependimento, o levem de reparação em reparação e, conseguintemente, de progresso em progresso, ao fim providencial colimado. Ora, sendo a encarnação o meio de se efetivar o progresso dos Espíritos que delinquem, a existência de sexos diferentes, nos corpos que eles então têm que tomar, se tornou necessária, para que, mediante a procriação, esses corpos se reproduzissem, pois, de outro modo, não haveria para o Espírito possibilidade de encarnar.

Da obrigatoriedade imperiosa da procriação, gerou-se a necessidade da união de corpos sexualmente distintos. O casamento, porém, se bem do ponto de vista material atenda a essa necessidade, corresponde, no entanto, a um objetivo muito mais alto, em relação ao qual os corpos do homem e da mulher nenhum valor tem aos olhos do Senhor, para quem ambos só valem como Espíritos, porquanto o Espírito é que é o ser por Ele criado, com o destino a que há pouco nos referimos, nada mais sendo que instrumento de depuração o corpo que o Espírito temporariamente reveste.

Assim, o casamento que, na ordem material, tem por fim a procriação, na ordem moral traduz execução da lei de amor, pelo que tem de ser a união íntima, a fusão, por bem dizer, de duas almas, o que justifica as palavras emblemáticas da Gênese: serão dois numa só alma.

Ora, se, no matrimônio, a verdadeira união é de Espíritos, por isso que o fim moral prepondera com relação ao material, embora este também seja providencial, a conclusão a tirar-se é que ele só se realizará com acerto, oferecendo garantias seguras ao preenchimento do fim principal, quando for uma união que se efetue espontaneamente, por virtude de mútua simpatia e isento de preocupações subalternas. Então, sim, será uma união perfeita e indissolúvel, pois que, interrompida pela morte, se reatará na erraticidade, conservando-se ali, onde como disse Jesus não há “marido e mulher”, qual laço forte, a prender, pela eternidade em fora, os que o hajam formado para se prestarem apoio mútuo na sua ascensão através do infinito.

Mas, então, como se explica que Moisés tenha autorizado o divórcio, contrariamente às palavras da (Gênese, quando diz: “Não separe o homem o que Deus uniu”?). Fê-lo, por causa da dureza do coração humano, declarou-o Jesus. A princípio, as necessidades materiais constituíam o móvel único da união do homem e da mulher. Depois, tornando-se a multiplicidade dos filhos uma riqueza, o que se verificou ao surgirem ou desenvolverem-se os povos pastores, a mulher estéril entrou a ser perseguida e até mesmo eliminada. À vista dessa situação, que a ânsia pelo aumento das populações criou para a mulher, dando lugar, depois, a que todos os pretextos servissem para o abandono da esposa, que era o que ocorria ao tempo de Moisés, procurou este remediar ao mal, autorizando o divórcio, que, ao menos, preservava a estéril dos maus tratos a que se via sujeita.

Aos novos abusos que daí decorreram cuidou Jesus de remediar, só admitindo o divórcio no caso de adultério.

Conforme já dissemos, o casamento é, de fato, indissolúvel, quando é a união de dois entes que se sentem atraídos um para o outro por forte simpatia toda espiritual, que, no propósito sincero de se auxiliarem mutuamente nas suas provas, espontaneamente se ligam pelos laços de um afeto, também de natureza espiritual, independente de quaisquer formalidades religiosas e civis, apenas atraindo para si, humildes e submissos, pela prece do coração, as bênçãos e graças do Pai celestial.

Nesse caso, sim, os dois passam a ser uma só carne, que ao homem não é dado, nem possível, separar, por ter sido Deus quem os uniu, isto é, por se haver a união deles efetuado segundo as vistas de Deus, que, conseguintemente, a santificou, abençoando-a. Semelhantes uniões, no entanto, ainda, por ora, constituem apenas, para a nossa Humanidade, um ideal. Na Terra, por enquanto, mau grado a todas as pomposas solenidades de que o cercam, o casamento perde o caráter sagrado que devera ter, para ser, na grande maioria dos casos, a legalização de um contrato comercial, no cumprimento de cujas obrigações as duas partes contratantes se mostram mais ou menos escrupulosas.

Dizendo não separasse o homem o que Deus unira, Jesus cortou cerce o abuso do século em que Ele desceu à Terra e pôs um óbice à corrupção dos séculos que se seguiriam. Não disse, porém, que vivessem forçosamente unidas, em comum, duas criaturas que não possam aproximar-se uma da outra, sem se excitarem reciprocamente à prática de faltas, que implicam transgressão da lei de caridade.

O divórcio não pode existir, aos olhos do Senhor, senão quando um Espírito, pelos seus exemplos ou palavras, impele ao mal outro com quem antipatize. Aí, conceda-o ou não a lei humana, existe, de fato, o divórcio, porque, então, há, na ordem moral, adultério. Ora, em tal caso, não será melhor separar os galhos da árvore, do que deixar que esta dê maus frutos?

É uma contingência que há de desaparecer por efeito da gradual depuração da Humanidade, mas que ainda subsistirá por longo tempo, até quando os homens, ainda tão presunçosos de seus costumes e da sua moralmente hedionda civilização, deixarem de orgulhar-se do merecimento que supõem ter. A sociedade humana ainda está muito escravizada aos preconceitos, aos abusos, aos vícios, para que se execute a reforma das leis terrenas sobre o casamento, no sentido de pô-las de acordo com a lei natural da união perante Deus. Isso será obra do tempo e do progresso verdadeiro. Cada dia, entretanto, traz o seu grão de areia, que se sobrepõe aos precedentemente trazidos, e esses grãos, acumulando-se, acabarão por formar muralha impenetrável aos vícios da Humanidade.

Torne-se o casamento uma aliança determinada por mútua inclinação, por uma poderosa e irresistível simpatia, de onde se origine puro e sincero amor; uma aliança que, ao influxo desse sentimento, se efetive para recíproca sustentação e apoio, no desempenho dos encargos da existência, nos sofrimentos e infortúnios que advenham como provas, para a depuração espiritual, e o divórcio perderá toda razão de ser, porque caso não haverá em que seja aplicável.

Enquanto, porém, as nossas naturezas se não houverem modificado tão profundamente quanto é preciso, para que o casamento, de acordo com a lei natural, seja a. união, aos olhos de Deus, ao mesmo tempo livre e indissolúvel, conformemo-nos com as leis que nos regem, observando as formalidades que elas impõem para a celebração do matrimônio. E, para prescindirmos, como espíritas, das bênçãos religiosas que as Igrejas humanas pretendem indispensáveis à santificação do ato matrimonial, lembremo-nos de que estamos cercados de levitas os bons Espíritos, os mensageiros divinos, sempre prontos a no-las conceder em nome do Senhor, e de que, se nos esforçarmos por praticar o casamento, segundo a lei natural perante Deus, com relação a nós se cumprirão estas palavras do Divino. Mestre: Já não sois dois, mas uma só carne; não separe o homem o que Deus uniu.

Respostas de Jesus relativas às condições do casamento. Dos eunucos por diversos motivos

10. Em casa, os discípulos o Interrogaram de novo a esse respeito. 11. Disse-lhes ele: Se um homem deixa sua mulher e casa com outra comete adultério por causa da primeira. 12. E se uma mulher deixa o marido e casa com outro também comete adultério.

Como encarnados, os discípulos de Jesus se achavam sob a influência dos preconceitos hebraicos e, assim, encarando o casamento apenas do ponto de vista das satisfações sensuais, consideravam um embaraço a obrigação de conservarem a mulher que escolhessem, houvesse que houvesse. Daí o terem dito: “Se tal é a condição do homem com relação à esposa, não convém casar”. Entendiam que não convinha ao homem casar-se, desde que lhe cumpria, sob pena de incorrer em adultério, guardar a esposa escolhida, acontecesse o que acontecesse.

Eles não perceberam a alusão que Jesus fazia, em mente, aos tempos futuros em que, depuradas as criaturas, a união do homem e da mulher será simultaneamente livre e indissolúvel, segundo a lei natural, à face de Deus, porque será a reunião de dois corpos para a reprodução e a ligação de duas almas pelo laço divino da lei do amor.

Supunham, fazendo a observação que fizeram, falar por inspiração própria. Entretanto, haviam recebido do Alto a inspiração e a ela obedeceram, tanto mais facilmente, quanto era conforme as ideias que alimentavam em virtude daqueles preconceitos. Receberam-na, para abrirem ensejo a que o Mestre desse, como deu, veladamente, um novo ensino, destinado a ser explicado e desenvolvido pela revelação atual, tendo por objetivo, com o lhes dar a compreender os motivos de incapacidade ou de abstenção do casamento, indicar aos homens a maneira por que hão de proceder para praticar, de acordo com a lei divina, a união simultaneamente livre e indissolúvel do homem e da mulher.

Eunucos, desde o ventre materno, são os que, ao procederem à escolha de suas provações, se impõem, como uma delas, tomar, para expiação de abusos em vidas anteriores, um corpo incapaz de corresponder às exigências do Espírito, quando este ceda às tentações da carne.

Eunucos feitos pelos homens são os que tais se tornam por efeito da castração, de uso corrente na época em que Jesus falava, uso que se conservou ainda por muito tempo, ou para que adquirissem belas vozes os que a sofriam, ou para servirem de guardas de haréns ou serralhos, devendo-se também incluir no número dos que falamos os que se tornam quais os castrados, por efeito dos excessos e deboches a que se entregam e os que são vitimas de crimes, de horrendas vinganças, o que tudo exprime, para vergonha da Humanidade, a sua barbaria e depravação.

Há os que se fizeram eunucos por causa do reino dos céus. Entenda-o quem puder entender.

Tendo Jesus enunciado veladamente o seu pensamento, porque assim o exigiram a época e o estado das inteligências, muitos houve que lhe não compreenderam as palavras e que, tomando-as no sentido literal, procederam como Orígenes, filho de Leônidas de Alexandria, o qual, encarregado de instruir os fiéis dessa cidade, se fez eunuco para colocar-se ao abrigo da calúnia, visto que homens e mulheres acorriam em multidão à sua escola. Outros, seguindo-lhe os conselhos de continência perpétua, se fizeram mutilar, para porem termo aos ímpetos da Natureza e, assim, ganharem o céu. Dessa falsa interpretação humana do ensino do Cristo é que nasceu o voto de celibato dos padres e dos membros de todas as ordens religiosas e monásticas de ambos os sexos.

Tudo, porém, tem a sua razão de ser, até mesmo os abusos que hoje se assinalam e profligam. As associações religiosas foram a salvaguarda dos primeiros tempos da era atual. No seio delas se refugiavam os fracos e os perseguidos; as ciências e as artes ali se desenvolviam ao abrigo da destruição pela brutalidade dos homens e pela violência dos poderosos. Desde, entretanto, que foram desaparecendo as causas que as fizeram surgir, deveram ter sido modificadas, acompanhando o progresso geral da Humanidade. Não se tendo verificado isso, elas se tornaram prejudiciais a esse mesmo progresso.

O homem e a mulher, que não se sintam com forças para cumprir dignamente, com a abnegação e o desinteresse precisos, os deveres que a família impõe, fazem bem, aos olhos de Deus, abstendo-se de a constituírem pelo casamento, qualquer que seja o sacrifício material, carnal, que isso lhes custe. Mas, que ninguém assim proceda, na suposição de ser esse um meio de ganhar o céu, porque fora desconhecer os fundamentos divinos da constituição da família e negar funestamente satisfação às exigências da Natureza; que isso não seja tido como uma coroa de glória que cause orgulho, sob a influência deletéria do misticismo, ou da preguiça, do fanatismo, da ambição, do egoísmo. De nada serviria, em tal caso, a não ser para alimentar no coração humano o orgulho e o desvario e para fortalecer uma confiança ilusória.

Não é bom que o homem seja só, disse Deus, segundo refere Moisés. Não o é, de fato, porque, em contraposição a um que saiba dominar a carne, mil outros sucumbirão na sombra, sob o seu jugo, tornando-se hipócritas, verdade que, por manifesta, dispensa qualquer demonstração.

Jesus abençoa as crianças

(Mateus, 19:13-15; Lucas, 18:15-17)

13. E lhe apresentavam crianças para que as tocasse. Os discípulos, porém, repeliam com palavras rudes os que as apresentavam. 14. Vendo Isso, Jesus se indignou e lhes disse: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porquanto o reino dos céus é dos que forem tais como eles. 15. Em verdade vos digo que aquele que não receber, como uma criança, o reino de Deus, nele não entrará. 16. E, abraçando as crianças e lhes impondo as mãos, as abençoava.

Já tivemos ocasião de receber explicações suficientes a este respeito, quando estudamos os versículos de 1 a 5, do capítulo 18, de MATEUS. Jesus repetia essas palavras, a fim de que se gravassem na memória dos discípulos. O pensamento era sempre o mesmo, expresso em termos diferentes, em ocasiões e lugares diversos. Á simplicidade do coração e a humildade do espírito são, ao mesmo tempo, a base, a fonte, o meio e o caminho para se alcançarem as virtudes, a depuração, o progresso, que levam à pureza, à perfeição.

Parábola do mancebo rico

(Mateus, 19:16-26; Lucas, 18:18-27)

17. E, indo ele pela via pública, um homem veio a correr e, ajoelhando-se-lhe aos pés, lhe falou assim: Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna? 18. Disse Jesus: Por que me chamas de bom? Ninguém é bom senão somente Deus. 19. Conheces os mandamentos: não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não praticarás fraude, honra a teu pai e a tua mãe. 20. Ao que o homem retrucou: Mestre, todas essas coisas tenho eu observado desde a minha mocidade. 21. Jesus, olhando para ele com amor, lhe disse: Falta-te ainda uma coisa: vai, vende tudo o que possuís, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. 22. Mas o homem, aflito com aquelas palavras, se retirou triste, pois possuía grandes riquezas. 23. Jesus, olhando à volta de si, disse a seus discípulos: Quão difícil é que entrem no reino de Deus os que possuem riquezas! 24. E como os discípulos se mostrassem espantados com as suas palavras, ele lhes repetiu: Filhinhos, quão difícil é que entrem no reino de Deus os que confiam nas riquezas! 25. Mais fácil é que um camelo passe por um fundo de agulha do que entrar um rico no reino de Deus. 26. Maior ainda se tornou o espanto dos discípulos, que uns aos outros diziam: Quem pode então ser salvo? 27. Jesus, porém, fitando-os, disse: Isto para os homens é impossível, mas não para Deus, a quem tudo é possível.

O mancebo que, impelido por uma influência espírita, foi ao encontro de Jesus, tinha que servir de exemplo e de lição aos que o cercavam. Naquela circunstância, como sempre que era oportuno e conveniente, o divino Mestre recorreu a imagens e locuções materiais, para tocar e impressionar fortemente as inteligências da época, extirpar o egoísmo e o apego aos bens terrenos e preparar o advento do Espírito, para quando o reinado da letra houvesse produzido todos os seus frutos.

Protestando contra o qualificativo de bom, que lhe fora dado, Ele, que era bom por excelência, o fez intencionalmente, para de antemão proscrever a sua divinização e sustentar o monoteísmo, mostrando que, em face do Deus de Israel, ninguém o poderia tratar como Deus, senão no sentido das palavras do Profeta (Salmo 81, versículo de 1 a 6): Deus assiste sempre ao conselho dos deuses e, colocado no meio deles, julga os deuses; sem deixar, entretanto, de ser, como todos os Espíritos criados, filho do Altíssimo, do Deus dos deuses. Sois deuses e todos sois filhos do Altíssimo (Salmo citado).

Disse o Mestre: Meu pai e eu somos um. Mas, também disse, referindo-se a seus discípulos: Rogo por eles e pelos que hão de crer em mim, pela palavra deles, a fim de que todos sejam um, como tu, meu Pai, és em mim e eu em ti, a fim de que também sejam um em nós. Estou neles e tu estás em mim, para que sejam consumados na unidade. (JOÃO, capítulo 17, versículo 21 ao 23.)

Quer isto dizer que, purificando-nos, adquirindo a perfeição moral, é que nos aproximaremos de Jesus, chegaremos a estar em relação direta com Ele, porque teremos chegado à condição de puros Espíritos e alcançaremos a vida eterna, que consiste em conhecê-lo e conhecer o Pai.

Respondendo ao mancebo, Jesus lhe recordou o Decálogo, que contém os mandamentos a que os homens devem obedecer e que se resumem no seguinte: não fazermos aos outros o que não quisermos que nos façam: fazer aos outros tudo o que quiséramos nos fizessem, amando-os como a nós mesmos, praticando para com eles a justiça e a caridade, material e moral, com devotamento e renúncia.

Entretanto, precisamos entender bem, segundo o espírito, as palavras do Mestre, a fim de não deduzirmos delas que, para servir a Deus, devamos despojar-nos de tudo o que possuirmos. Daquelas palavras o que decorre é que nenhum fruto produz a prática das virtudes e dos mandamentos, se não é escoimada de egoísmo e santificada pela caridade. A caridade e o esquecimento de si mesmo faltavam ao mancebo. Foi por isso que Jesus lhe disse: Ainda te falta uma coisa, velando com a letra da imposição de um sacrifício absoluto dos bens humanos, para melhor tocar a inteligência dos homens materiais a quem falava, o espírito do ensinamento moral que lhes ministrava e que era o de que, onde está o tesouro, aí costuma estar sempre o coração da criatura humana, do que ali mesmo deu prova o mancebo, com a tristeza que lhe causou a resposta obtida. Por pressentir, lendo-lhe o pensamento, essa tristeza, foi que Jesus disse, no momento em que ele se afastava, quando, pois, ainda podia ouvi-lo: “Quão difícil é que os que possuem riquezas entrem no reino de Deus, no reino dos céus”. Proclamou assim o princípio Fora da caridade não há salvação, e preparou as gerações futuras a compreenderem que uma das provas mais temíveis, um dos maiores obstáculos a todo progresso moral é a riqueza, quando não se torna instrumento e meio de praticarem-se a caridade e o amor do próximo.

Porém, a caridade não consiste em dar do supérfluo. A verdadeira caridade sai do coração e o devotamento a acompanha sempre. Mas, ninguém pode ser devotado a seus irmãos, sem a renúncia de si mesmo, porquanto grandes sacrifícios impõe o devotamento que tenha por móvel a caridade. Assim, caridade, devotamento e abnegação formam uma trilogia inseparável.

A caridade, para o ser, de fato, exige o desinteresse absoluto, não só quanto a qualquer remuneração material como também quanto às recompensas celestes, porque, do contrário, ainda será egoísmo. Ela tem que ser praticada, colimando o bem que possa produzir, por amor do próximo exclusivamente.

Aos discípulos que, ante o que Ele dissera ao mancebo, lhe perguntaram: Quem pode então salvar-se? Respondeu apenas: O que é impossível para os homens é possível para Deus.

Mas, se só Deus nos pode salvar, para que servem as obras e a fé? É esta uma objeção que formulada tem sido muitas vezes e para a qual somente nós, os espíritas, encontraremos resposta, desde que meditemos os ensinos da Terceira Revelação.

Os que a formulam se colocam no mesmo ponto de vista dos discípulos, que se mostram espantados com o que Jesus dissera ao mancebo e induzidos a interpelá-lo como o fizeram, porque, atentando unicamente na letra, só perceberam as dificuldades da conquista do reino dos céus. Não perceberam os meios que ao Espírito são concedidos, para vencer essas dificuldades. Pode, por acaso; o homem, na sua curta existência terrena, depurar-se bastante para se considerar salvo? Poderão seus atos ser tão bons e sua fé tão viva que lhe assegurem a salvação?

Ora, se só a perfeição nos levará aos pés do Senhor, à salvação, quem senão Ele, por terno e indulgente, nos salva com o conceder-nos tempo, para que todos nos purifiquemos, com o relevar-nos as dívidas, a nós, maus servos, até que as possamos pagar? Concedendo às suas criaturas todo o tempo de que elas hajam mister, faculta-lhes Deus um agente poderoso, com cujo auxilio chegam elas sempre a alcançar a meta, por mais afastadas que desta se achem e por mais escabrosa que seja a estrada que lhes cumpre percorrer.

Assim sendo, quem, de fato, nos salva, senão Deus, que só Ele é bom, só Ele tem indulgência e longanimidade, só Ele tem em suas mãos a duração do tempo?

O homem carece de capacidade para julgar por si mesmo do grau de pureza que lhe é necessário a elevar-se. Somente Deus pode julgar. À Revelação Espírita estava reservado esclarecer, aos olhos de todos, na época predita pelos Espíritos do Senhor, órgãos do Espírito da Verdade, o sentido das palavras de Jesus, velado pela letra, e indicar os meios que Deus faculta a seus filhos, para vencerem todas as dificuldades e atingirem o fim. Esses meios são o renascimento, a reencarnação, a princípio expiatória e precedida, no espaço, da expiação proporcionada e apropriada às faltas cometidas; depois, e por fim, gloriosa, visto que dá ao Espírito entrada no reino de Deus, no reino dos céus, isto é, lhe permite alcançar a perfeição moral.

Eis por que e como é Deus e só Deus quem nos salva.

Resposta de Jesus a Pedro. Humildade e perseverança na senda do progresso

(Mateus, 19:27-30; Lucas, 18:28-30)

28 Pedro então lhe observou: Aqui estamos nós que tudo deixamos e te seguimos. 29. Disse Jesus: Em verdade vos digo que ninguém há que deixe, por mim e pelo Evangelho, casa, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos e terras, 30, que, presentemente, neste século mesmo, não receba, com as perseguições, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, pais, filhos e terras, e, no século futuro, a vida eterna. 31. Mas, muitos dos que tenham sido primeiros serão últimos e muitos dos que tenham sido últimos serão primeiros.

Tendo, como encarnados ao tempo de Jesus, colaborado na obra de regeneração da Humanidade, os apóstolos continuaram e continuarão ao serviço do Mestre, até ao momento em que os homens hajam compreendido a marcha e a finalidade de suas existências.

Já, presentemente, eles julgam as tribos de Israel, no sentido de que presidem ao progresso do nosso planeta. São os intermediários entre Jesus e os nossos guias, do mesmo modo que Jesus é o intermediário entre o Senhor e eles.

O tempo da regeneração é o em que a Revelação Espírita regenerará os homens, pondo-lhes desnudas ante os olhos as verdades que até então houveram de estar cobertas pelo véu da parábola. O tempo, em que o filho do homem estará assentado no trono da sua glória, será a época em que todos se curvarão, sob as irradiações da luz espírita, diante daquele que é o único pastor do rebanho que o Senhor lhe confiou.

Predição do sacrifício do Gólgota

(Mateus, 20:17-19; Lucas, 18:31-34)

32. Subindo eles a estrada de Jerusalém, Jesus lhes ia à frente, o que enchia de espanto e de temor os que o seguiam. Ele então chamou de parte novamente os doze discípulos e começou a predizer-lhes o que estava para lhe acontecer. 33. Subimos, como vedes, para Jerusalém e o filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes, aos escribas e aos anciães, que o condenarão à morte e o entregarão aos Gentios. 34. Escarnecê-lo-ão, cuspir-lhe-ão no rosto, açoitá-lo-ão, tirar-lhe-ão a vida e ele ressuscitará ao terceiro dia.

Jesus, neste passo, repetiu a predição que já fizera da sua “morte” e da sua “ressurreição”, acrescentando e precisando novas particularidades. (Veja-se: MATEUS, capítulo 16 versículo 21; capítulo 17, versículos 21 e 22. MARCOS, capítulo 8, versículo 31; e capítulo 9, versículo 30. LUCAS, capítulo 9, versículos 22, 44 e 45.)

Não há o que comentar nessas palavras, que são positivas. Jesus, predizendo-os, fundamentava os acontecimentos que iam ocorrer e desse modo dava maior peso às suas afirmativas. As narrações dos Evangelistas se completam, como sempre, uma pelas outras.

Os discípulos não compreenderam, dessa vez, melhor do que das precedentes, o sentido exato das palavras do Mestre. Não atinavam, sobretudo, com o que poderia ser a “ressurreição” de Jesus. Tinham o entendimento obscurecido, quanto a esse ponto, a fim de que os fatos pudessem suceder sem obstáculos.

Os apóstolos, diz um dos Evangelistas, muito admirados e receosos, seguiam o Mestre, quando a caminho de Jerusalém. É que temiam os sacerdotes e os principais Judeus, sentindo que seria difícil escapar-lhes.

A humildade e o devotamento para com todos são a fonte e o meio único de toda elevação. Nunca alimentar no coração a inveja. Seguir o exemplo de Jesus e fazer esforços por andar nas suas pegadas

35. Acercaram-se então dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, e lhe disseram: Mestre, queremos nos faças tudo o que te pedirmos. 36. Perguntou-lhes Jesus: Que quereis que eu vos faça? 37. Concede, disseram eles, que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda. 38. Jesus lhes observou: Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que eu hei de beber e receber o batismo com que eu serei batizado? 39. Responderam os dois. Podemos. Replicou Jesus: Na verdade, bebereis o cálice que eu hei de beber e sereis batizados com o batismo com que eu o serei. 40. Quanto, porém, a vos sentardes à minha direita ou à minha esquerda, não está em minhas mãos vo-lo conceder; isso será dado àqueles para quem meu Pai o haja preparado. 41. Ao ouvirem o que pediam Tiago e João, os dez outros apóstolos se tomaram de indignação contra eles. 42. Jesus, porém, os chamou e lhes disse: Sabeis que os que têm autoridade sobre os povos exercem dominação sobre estes; que seus príncipes os tratam com império. 43. Assim, entretanto, não deve ser entre vós, onde o que quiser ser o maior tem que se fazer vosso servo; 44, e o que quiser ser o primeiro tem que ser o servidor de todos. 45. Por que, o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de muitos.

Insignificante é a diferença que se pode notar entre as duas narrativas evangélicas, reproduzidas acima. A mãe de Tiago e João estava com os dois. Ela e eles dirigiram sucessivamente a palavra ao Mestre. Este, porém, só respondeu, como era natural, aos dois discípulos.

O batismo a que Jesus aludia, dizendo que lhe cumpria recebê-lo, era o sacrifício a que teria de submeter-se e não a água que João lhe derramara sobre a cabeça. Era também, de modo geral, o martírio que os apóstolos, seguindo-lhe o exemplo, teriam de sofrer.

Com o que disse, relativamente ao lugar a que os dois discípulos aspiravam, fez ressaltar a supremacia divina, com referência a qualquer outro Espírito, por mais elevado que seja.

Ante a indignação de que se tomaram os outros dez apóstolos contra Tiago e João, cujo pedido interpretaram como significando que os dois se consideravam superiores aos demais, o Mestre lhes deu o ensinamento simples e conciso, que os Evangelistas registraram, objetivando encaminhar o homem para a humildade, o desinteresse e a renúncia de si mesmo, para o devotamento a todos. Esse ensinamento deu fruto entre os discípulos e os primeiros cristãos. Os homens, porém, o olvidaram e deixaram de praticar, desde o dia em que, passados os tempos apostólicos, fizeram da Igreja do Cristo um reino deste mundo, pactuando com as potências da Terra, ou, por vezes, lutando contra elas, caminho pelo qual foram levados ao orgulho, à ambição, à ânsia de predomínio, à intolerância, ao abuso, às aberrações, aos excessos que aquelas fontes de erros e de paixões fazem jorrar. Daí o desprestígio em que caiu e vemos a Igreja de Roma.

Mas, são chegados os tempos em que as palavras do Mestre se têm de cumprir e tornar verdades práticas. Importa, pois, que nós outros, os espíritas, sejamos os primeiros a dar exemplos de humildade, de desinteresse, de renúncia e de devotamento.

Disse Jesus: “O filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de muitos”. Foi efetivamente o que fez. Segundo as suas palavras, Ele veio dar a vida pela redenção de muitos. Por que não de todos? Será por que haja estabelecido duas categorias, uma de “eleitos”, outra de “réprobos”, quando disse que muitos serão os chamados e poucos os escolhidos? Não, certamente. Já vimos como e por que os chamados são muitos, são mesmos todos, e poucos serão os escolhidos. Precisamos compreender, em toda a sua grandiosidade, o sentido das palavras do Mestre, ponderando que o caminho está aberto a todos nós, que todos temos o livre-arbítrio e a lei de amor, para nos guiarem os passos nesse caminho, de modo que o percorramos com segurança e sem desvios.

Aquela restrição se explica e justifica, porque, sem dúvida, ao tempo da purificação do nosso mundo, haverá Espíritos rebeldes e obstinados, que serão afastados deste planeta e mandados para outros, de categoria inferior, onde terão que expiar suas rebeldias e obstinações, e progredir, sob as vistas de outro Cristo de Deus. Assim, nem todos chegarão ao fim debaixo da mesma direção, mas todos hão de chegar.

A mesma restrição ainda nos faz ver de que modo Jesus foi e é o nosso redentor e como devemos compreender que haja realizado a obra da nossa redenção, excluindo toda ideia de que esta se operou por haver Ele tomado sobre si e expiado, pelo sacrifício do Gólgota, as nossas culpas, isentando-nos da responsabilidade delas. De semelhante ideia nasceu um dos erros mais grosseiros que a Igreja Romana propina e pelo qual desvirtua a significação real daquele sacrifício, tornando-o um ato de “expiação substitutiva”, que seria visceralmente contrário à justiça perfeita e ao amor infinito de Deus.

Cura dos cegos de Jericó

(Mateus, 20:29-34; Lucas, 18:35-43)

46. Estiveram depois em Jericó. Ao sair daí Jesus, acompanhado dos discípulos e de grande multidão, um cego, de nome Bartimeu, filho de Timeu, estava sentado à beira da estrada, esmolando. 47. Tendo ouvido dizer que Jesus Nazareno por ali passava, começou a clamar: Jesus, filho de Davi, tem compaixão de mim! 48. Muitos o ameaçavam para que se calasse, porém ele clamava ainda mais alto: Filho de Davi, tem piedade de mim! 49. Jesus então parou e mandou que o chamassem. Alguns o foram chamar, dizendo: Tem confiança, levanta-te que ele te chama. 50. Bartimeu, atirando para o lado a capa, de um salto foi ter com Jesus. 51. Perguntou-lhe este: Que queres que eu te faça? O cego respondeu: Mestre, faze que eu enxergue. 52. Disse-lhe então Jesus: Vai, tua fé te salvou. No mesmo instante ele enxergou e foi seguindo a Jesus pela estrada.

Jesus não permaneceu todo o tempo na cidade de Jericó, desde que nela entrou e pediu hospedagem a Zaqueu. Ao contrário, saiu muitas vezes, para instruir o povo. Assim foi que operou a dupla cura, em ocasiões diversas. Isso, entretanto, nenhuma importância tem. São minúcias pueris, com que não nos devemos preocupar.

Quanto às curas, Ele as operou, como as outras de que já tratamos, por ato exclusivo da sua vontade e pela ação do seu poder magnético. Se tocou os olhos dos cegos, coisa de que não tinha necessidade, foi para mostrar aos discípulos o que lhes cumpria fazer.

Operando a de Bartimeu, filho de Timeu, só com o pronunciar estas palavras: Vai, tua fé te sarou, quis impressionar fortemente as massas, mostrando aos homens o poder de que dispunha.

Cegos que somos do coração e da inteligência, digamos com fé: Senhor, que os nossos olhos se abram”, e recobraremos a vista moral e espiritual. Digamos com fé: Mestre, faze que eu veja, e veremos, porquanto a luz espírita clareará as trevas que nos envolvem, projetando o fulgor de seus raios na estrada reta e segura que temos de percorrer.

SAYÃO, Antonio Luiz. Elucidações evangélicas. FEB (e-book). 

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