O Espiritismo compreende
Jesus como modelo e guia por excelência, sendo discutida em suas obras, entre
outros temas, a essência da mensagem cristã, comentada e interpretada por Allan
Kardec e pelos Espíritos, destacadamente em O Evangelho segundo o
Espiritismo . O texto bíblico é alvo da atenção de Kardec também em outros
livros, onde é valorizado, mas analisado de forma crítica, seguindo a tendência
das leituras mais liberais do século XIX.
Já em O Livros dos
Espíritos , a figura de Jesus e os evangelhos ganham destaque. Em sua
questão 625, os Espíritos respondem que “o tipo mais perfeito que Deus já
ofereceu ao homem para lhe servir de guia e modelo” é Jesus. Na conclusão da
obra, Kardec ainda afirma ser a moral espírita a mesma que a cristã, exposta
nos evangelhos. Todavia, em O Evangelho segundo o Espiritismo a
importância dada a eles é ainda mais clara. Contudo, que tratamento Kardec dá
aos textos bíblicos? Como os analisa e interpreta? São essas as questões
centrais discutidas nesse artigo.
Identificando o caráter
alegórico e muitas vezes de difícil entendimento desses textos pelo o leitor
moderno, para Kardec o Espiritismo é a chave completa para compreender seu
“verdadeiro sentido”. O contexto de surgimento do Espiritismo já contava com
esse otimismo na pesquisa sobre os textos bíblicos, ainda que predominasse uma
abordagem materialista, que não admitia a realidade dos fenômenos
extraordinários atribuídos a Jesus. Contudo, a essa expectativa de compreender
melhor a Bíblia por métodos científicos, Kardec uniu a contribuição dos
Espíritos.
Já na Antiguidade, Orígenes (185-254) e Santo Agostinho (354-430), admitiam um sentido “espiritual”, simbólico ou alegórico do texto bíblico, além do literal. Para este último, esta forma de interpretação, “levantando o véu místico, revelava-me o significado espiritual de passagens que, segundo a letra, pareciam ensinar um erro”. Todavia, na Idade Média, a interpretação literal se fortaleceu, controlada pela hierarquia cristã, que também regulava a admissão de possíveis alegorias. Com o tempo, a leitura bíblica se limitou progressiva e unicamente ao sentido literal, o que visava impedir entendimentos arbitrários ou particulares. Para São Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo, a interpretação literal era identificada ao sentido desejado pelo autor divino, era o que Deus queria realmente dizer.
Contudo, o advento do
pensamento iluminista, acompanhado de uma análise mais crítica dos textos,
trouxe uma reviravolta nos estudos bíblicos. A dúvida metódica passou a
substituir a tradição como fundamento do pensamento. O século XVI, marcado pela
Reforma Protestante, foi palco de discussões nesse campo. A Reforma libertou as
Escrituras de suas amarras eclesiásticas, promovendo essa avaliação crítica,
ainda que também subordinada a objetivos teológicos. Dessa forma, as leituras
protestantes logo também cederam ao dogmatismo, e o entendimento do texto ficou
submetido aos interesses particulares de católicos e protestantes. Apenas nos
séculos seguintes se fortaleceram as comparações entre traduções e os textos
nas línguas originais, assim como questionamentos de dados históricos e
literários. Retirada de seu pedestal, a Bíblia passou a ser alvo de
entendimentos mais livres, agora também aberta à investigação dos
historiadores.
No início do século XVIII,
uma ciência histórica começou a florescer no interior das próprias igrejas, ainda
que presa a contradições compreensíveis. Contudo, os estudiosos não buscavam
negar o caráter religioso do texto, mas entendiam seu trabalho de pesquisa como
uma contribuição ao entendimento mais verdadeiro da Bíblia. O Protestantismo,
defendendo a superioridade da Bíblia histórica e teologicamente sobre a
instituição eclesiástica, havia despertado indiretamente o interesse pelos
métodos históricos-críticos na abordagem do texto bíblico. Esses métodos,
fortalecidos no século XIX, são constituídos, basicamente, da análise
aprofundada das fontes textuais, avaliando sua autenticidade e sua
historicidade; da crítica filológica, que investiga sistematicamente as línguas
antigas usadas nos textos; da valorização do contexto histórico em que Jesus
viveu; e, em um segundo momento, da análise das tradições orais ou textuais que
os embasaram e de padrões adotados em sua redação; entre outras ferramentas de
investigação.
Os alemães Hermann S.
Reimarus (1694-1768), professor de línguas orientais, e David F. Strauss
(1808-1874), filósofo e teólogo, foram pioneiros na tentativa de enxergar
racionalmente a vida do Cristo, fortemente influenciados pelo pensamento
iluminista. Suas abordagens puramente históricas admitiam fraudes, invenções,
incompreensões e ingenuidade dos primeiros cristãos na redação dos textos
bíblicos, negando os fenômenos extraordinários da vida de Jesus. Suas obras
inspiraram outras de mesmo teor, como a Vida de Jesus do francês Ernest
Renan (1823-1892). Filósofo, teólogo e historiador, publicou essa obra em 1863,
com propósito puramente histórico, ainda que tenha organizado sua “história”
arbitrariamente. Mesmo sendo espiritualista, como Strauss questionava a
divindade de Jesus e a autenticidade dos milagres, atribuindo-os a invenções ou
enganos.
O Codificador analisou a
obra de Renan e questionou os Espíritos sobre seu efeito. Segundo eles, Renan
“reduziu o Cristo à proporção do mais vulgar dos homens, negando-lhe todas as
faculdades que constituem atributos do Espírito livre e independente da
matéria”.
O efeito dessa visão seria imenso, pois abalaria os pilares milenares do
cristianismo institucionalizado. Todavia, ainda segundo os Espíritos, ao lado
de erros capitais, sobretudo no que se refere à espiritualidade, o livro contém
observações muito justas, que até aqui haviam escapado aos comentadores e que,
de certo ponto de vista, lhe dão alto alcance. Seu autor pertence a essa legião
de Espíritos encarnados que se podem classificar como demolidores do velho
mundo, tendo por missão nivelar o terreno sobre o qual se edificará um mundo
novo mais racional. Quis Deus que um escritor, justamente conceituado entre os
homens, do ponto de vista do talento, viesse projetar luz sobre algumas
questões obscuras e eivadas de preconceitos seculares, a fim de predispor os
Espíritos às novas crenças. Sem o suspeitar, Renan aplainou o caminho para o
Espiritismo.
Nesse período, em diversos
campos do conhecimento, da filosofia aos estudos bíblicos, romper com os
paradigmas era fundamental. Renan foi um desses demolidores. Além disso, a
resposta recebida por Kardec denuncia a boa acolhida de um lidar mais crítico
com a religião, o que, certamente, inclui uma leitura também criteriosa dos
textos religiosos. Logo, podemos entender que essa abordagem crítica dos textos
bíblicos é uma ferramenta também útil à pesquisa espírita. Em exemplos que
vamos apresentar à frente, notamos certo desapego da letra do texto por parte
de Kardec, que se permite desconfiar, questionar ou mesmo negar a autenticidade
ou a literalidade de passagens bíblicas, quando em desacordo com certos
pressupostos espíritas e/ou científicos. Afinal, dada a importância que o
Espiritismo reserva à Ciência, buscando assimilar “todas as doutrinas
progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de
verdades práticas”, os métodos históricos-críticos poderiam ser aplicados aos
textos bíblicos.
Allan Kardec, já na
introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo , aponta a prioridade do
ensinamento moral cristão sobre quaisquer outros aspectos. Logo, em primeiro
lugar, partindo desse pressuposto, não admite interpretações que conduzam a
conclusões contrárias à ética cristã, conforme entendida pelo Espiritismo.
Jesus, em sua vida na Terra, já guardava características que o colocavam como
pleno em ciência, sabedoria, e bondade, com superioridade intelectual e moral
absoluta sobre as demais classes de Espíritos. Dessa forma, mantinha todas as
suas atitudes alinhadas às Leis de Deus, sem possibilidades de falhas no campo
ético, ainda que imerso na cultura de sua época.
Outros pressupostos da
leitura espírita bíblica são a existência de Deus, a imortalidade da alma, a
mediunidade e a reencarnação. A partir deles é que o Espiritismo se vê como
chave de entendimento da mensagem bíblica e permite coordenar as “verdades
esparsas”, aparentemente contraditórias, imersas em acessórios muitas vezes
confusos, dada a distância cultural e aspectos do texto que vamos apontar à
frente. Logo, não é adequada para o espírita uma leitura apenas “científica” do
texto bíblico, desconectada de seus pressupostos filosóficos, mas uma leitura
que una esses dois aspectos. Importante é deixar claro que essa postura não é
singular, mas também presente em qualquer leitura bíblica, seja católica,
protestante, judaica ou ateia, visto que toda leitura passa pelas lentes da
cultura e das expectativas do leitor. Assim, há um “olhar” espírita específico
sobre as Escrituras, a partir de pressupostos e expectativas, em que Kardec
busca o “espírito, e não a letra do texto bíblico”. Em nossa discussão, vamos
abordar sua postura diante de algumas controvérsias, como de tradução,
interpolação, redação e interpretação.
Tradução e
interpolação
A preocupação de Kardec com
questões de tradução e interpolação dos textos é bem destacada em O
Evangelho segundo o Espiritismo . Na discussão sobre a presença de ideias
reencarnacionistas na Bíblia, por exemplo, compara traduções de trechos do
Antigo Testamento, como Isaías 26:19 e Jó 14:10 e 14, apontando problemas que
vão da escolha das palavras ao posicionamento da pontuação. Ao discutir o
diálogo de Jesus com Nicodemos (João 3:1-12), detém-se detalhadamente na
interpretação da palavra “água”, a partir de seu uso em textos do Antigo Testamento.
Além disso, compara e questiona traduções, defendendo como acréscimo posterior
a palavra “santo” antes da palavra “espírito”, com objetivos teológicos.
O próprio Kardec,
comprometido escrupulosamente com a tradução bíblica francesa mais difundida de
sua época, de Louis-Isaac Lemaistre Sacy, utilizou em O Evangelho segundo o
Espiritismo alguns textos de tradução hoje questionável, sem prejuízo de
sua interpretação, o que já destaca seu desapego da letra. Como no caso
anterior, na parábola do Mau Rico (Lucas, 16:19-31) há a inserção da expressão
“para sempre” em um trecho da tradução de Sacy (“Além disso, existe para sempre
um grande abismo entre nós e vós…”). Dessa forma, sem os pressupostos espíritas
e o desapego da literalidade, ficaria difícil para Kardec contrariar a doutrina
da eternidade das penas apenas a partir dessa passagem. Entretanto, em
traduções mais modernas, como da Bíblia de Jerusalém e da Tradução Ecumênica da
Bíblia, mais fiéis ao texto grego, “para sempre” não aparece.
Diante da incompatibilidade
entre frases atribuídas a Jesus e o que o Espiritismo espera dele, Kardec
também questionou a recomendação a que “odiássemos” ou “abandonássemos” nossos
familiares se realmente quiséssemos ser discípulos de Jesus (Lucas, 14:25 a 33
e Mateus, 10:37). Para ele, “é de se supor que, em casos como este, o fundo do
seu pensamento não foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido
primitivo, ao passar de uma língua para outra, pode ter sofrido alguma
alteração”. O ambiente cultural e as particularidades da língua original em que
essas expressões foram pronunciadas devem ser considerados, verificando se o
valor de certas palavras não se modificou com as traduções e o passar dos anos.
Nessas conclusões é possível observar a importância dada pelo Codificador à
língua e ao contexto de redação dos evangelhos, como propunha a pesquisa
bíblica do século XIX, sem deixar de lado os pressupostos espíritas como
norteadores de sua interpretação.
Redação
Questões talvez mais
incômodas para os que ainda se apegam à letra são as derivadas de possíveis
problemas de redação. Seria possível haver erros na própria escrita dos textos,
anteriores aos problemas de tradução? Em outras palavras, é possível que seus redatores
tenham errado em algum momento? Para Kardec, a possibilidade de equívoco é
admissível, o que o faz abordá-la sem rodeios e preocupações com qualquer
resistência mais literalista. Em Mateus, 12:46-50, por exemplo, levantou
possibilidades de erro de tradução e redação. Para ele, se certas proposições
suas [de Jesus] se acham em contradição com aquele princípio básico [lei de
amor e de caridade], é que as palavras que lhe atribuem foram mal reproduzidas,
mal compreendidas ou não são suas.
Todavia, isso não diminui a
importância do texto, que recebe discussão apropriada.
Em outro trecho, Jesus, ao
sentir fome, buscou frutos em uma figueira, ainda que não fosse tempo de figos.
Ao se aproximar, percebeu que só havia folhas, o que provocou nele certa
insatisfação: Que ninguém coma de ti fruto algum, o que seus discípulos
ouviram. No dia seguinte, ao passarem pela figueira, viram que secara até a
raiz. Pedro, lembrando-se do que Jesus havia dito, disse: Mestre, olha como
secou a figueira que tu amaldiçoaste (Marcos, 11:14 e 20-21; Mateus, 21:19).
Mais uma vez, partindo da
concepção espírita de Jesus, não é possível imaginá-lo amaldiçoando uma planta
por não encontrar nela frutos fora de época. Kardec, em consequência disso,
refere-se à passagem como “parábola da figueira que secou”, admitindo a
possibilidade de equívoco de redação. Para ele, isso não aconteceu: trata-se de
uma parábola mal compreendida. Contudo, nem por isso a passagem perde valor: o
ensinamento sobre fé que dela deriva é valorizado por Kardec.
Na obra A Gênese ,
vamos encontrar mais exercícios de liberdade de leitura bíblica.
Particularmente nos capítulos finais, que se referem aos milagres, aos fatos
extraordinários e às predições do Evangelho, Kardec propõe hipóteses
alternativas às leituras tradicionais. Algumas delas levam em conta as
explicações espíritas para os fenômenos, a partir dos conceitos de mediunidade,
logo não negam sua veracidade. Outras consideraram a possibilidade de
mal-entendido por parte dos autores dos evangelhos. Nesse segundo caso, por
exemplo, ao discutir as tentações de Jesus no deserto (Mateus, 4:1-11; Lucas,
4:1-13), o Codificador entende ser esse trecho uma parábola, como no caso da
figueira já discutido, visto que Jesus jamais poderia ter passado por
experiência semelhante. O mesmo ocorre na análise de outros episódios.
Enfim, como as leituras mais
liberais da Bíblia no século XIX, Kardec se permite contestar a inerrância do
texto, sem menosprezar sua importância. Admite possibilidades de entendimentos
equivocados dos discípulos, contudo, ao contrário de outros autores da época,
não relaciona “má fé” à causa desses erros.
Interpretação
Por fim, na comparação com
os demais entendimentos cristãos, mais comuns que os pontos acima são as controvérsias
de interpretação. Mesmo quando erros de tradução ou redação são admitidos, os
pressupostos religiosos são os definidores da interpretação escolhida.
Naturalmente, a leitura espírita não está isenta disso. Da mesma forma como faz
com alguns milagres, como apontamos, Kardec propõe uma leitura alegórica de
diversos trechos tidos por históricos por algumas tradições cristãs. Por
exemplo, em relação às narrativas da criação do mundo e do dilúvio, entre
outras, adota uma leitura alinhada ao “estado atual dos conhecimentos”, à
posição científica de sua época, negando qualquer abordagem literal. Afinal,
para ele, “o sentido literal de certas passagens dos livros sagrados,
contraditado pela ciência, repelido pela razão, produziu muito mais incrédulos
do que se pensa”.
Contudo, se passagens que
defendem as penas eternas e a ressurreição da carne, entendimentos contrários
aos postulados espíritas, como também as citadas acima, são vistas como
simbólicas, alegóricas ou equivocadas, Kardec se permite uma leitura confiante
e literal de passagens sobre a reencarnação, por exemplo. Para ele, um dos
argumentos mais fortes em favor da crença na reencarnação na Bíblia deriva das
considerações de Jesus sobre João Batista, em Mateus, 11:13-41 (“E, se
quiserdes dar crédito, ele é o Elias que deve vir”) e em Mateus, 17:11-13.
Diante da associação de João Batista ao profeta Elias que retornava, conforme
previam as tradições (Malaquias, 3:23,24), um católico ou um protestante
possivelmente verão uma alegoria. Para eles, João Batista apenas cumpria o
papel de Elias, mas jamais seria sua reencarnação. Kardec, ao contrário, fez
uma leitura literal: João Batista e Elias são a mesma pessoa/Espírito.
O mesmo ocorre na discussão
sobre o diálogo de Jesus com Nicodemos em João, 3 (“Em verdade, em verdade te
digo: quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus…”). Se “nascer de
novo” pode significar simbolicamente “tornar-se uma nova pessoa” ou “uma pessoa
melhor”, como entendem algumas leituras cristãs, para Kardec significa
literalmente “nascer de novo” em novo corpo, reencarnar. Assim, para ele, o
problema não está simplesmente em se fazer ou não uma leitura literal, mas em
se escolher quando fazê-la. Kardec não a faz porque entende o texto como
intocável ou inequívoco, mas quando há coerência com os pressupostos espíritas,
como já discutido acima.
Por fim, partindo de seus
pressupostos espíritas, Kardec exercita um olhar crítico sobre os textos
bíblicos. Mostra-se ciente da pesquisa bíblica de sua época, fortemente
influenciada por concepções iluministas, ao mesmo tempo se abrindo a leituras
mais liberais, livres de amarras dogmáticas. Aliando a essas conquistas suas
conclusões espíritas, busca ter um acesso mais profundo aos sentidos e
significados desses textos, sem se furtar em assumir a ignorância sobre certos
aspectos. Contudo, paira acima de seu interesse exegético sua preocupação em
compreender a proposta ética espírita, centrada na prática da caridade como
entendia Jesus. Assim, permite-se flexibilizar ou relativizar trechos que se
encaminhem na direção contrária, apresentando argumentos que justifiquem suas
escolhas. De qualquer forma, entendemos como clara a relevância dos textos
bíblicos para ele e para nós.
Fonte: IRC - Espiritismo, por Daniel Salomão Silva.
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